Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O gol, a história e o eterno retorno

‘Na areia, a vitória deixou seus pés perdidos…’ (Pablo Neruda)

No instante em que começo a escrever este artigo, os fogos de artifício que festejam a vitória do Flamengo na Copa do Brasil de 2006 estão estourando nos céus. A intervalos regulares, a janela do quarto cintila sob o efeito dos rojões. Depois, o silêncio característico da pequena cidade da Zona da Mata mineira volta a reinar… Ao mesmo tempo, as cenas da glória italiana na Copa do Mundo de Futebol começam a se esgarçar em nossa memória. Junto com elas, vai-se a lembrança do contexto do jogo, da vibração dos vencedores, do choro dos derrotados, da euforia da torcida. Também isso já está ocorrendo com o Flamengo x Vasco desta noite, que já se encaminha para os desvãos do esquecimento.

Em seu lugar, entram novas cenas, em que os personagens se renovam: a cada dia, a epopéia da vitória e da derrota se repete nos gramados, ecoando nos corações apaixonados de milhões de torcedores: como não nos sobrou nada da vitória de ontem, o que vale de fato é o jogo que está por ocorrer. No momento em que o último pênalti era cobrado no estádio de Berlim, tudo voltava à estaca zero, e qualquer país do mundo já se tornava postulante à vitória em 2010. O mesmo ocorre com os times brasileiros em relação à Copa do Brasil. ‘Rei posto, rei morto’: disputa sem conseqüências na vida prática, o esporte inverte a máxima que vale para a política.

No entanto, a este fenômeno tão cerrado em si e tão repetitivo é dada uma cobertura jornalística das mais aprofundadas. Nela, a despeito da ausência absoluta de historicidade do objeto – ao menos no sentido moderno, que pressupõe uma linha de causas e efeitos –, o adjetivo ‘histórico’ é utilizado comumente. A final de hoje é histórica, como foi a de ontem e será a de amanhã, e amanhã, e amanhã. Como os campeonatos se sucedem ad infinitum, o mesmo ocorre com o ‘Dia D’ desta guerra, num processo que poderia facilmente ser definido como o ‘eterno retorno do mesmo’.

Tempestade e bonança

Ao mesmo tempo, voltemo-nos para a cobertura jornalística dos ditos ‘assuntos sérios’. Enquanto emissoras como a Rádio Globo do Rio de Janeiro mantêm, durante todo o ano, um repórter em cada um dos quatro maiores times de futebol da cidade, dando notícias diárias dos acontecimentos que os envolvem, o que ocorre em relação aos quatro maiores hospitais da cidade, por exemplo? Haverá alguém que fique no Hospital Souza Aguiar, dia após dia, para dar notícia dos erros e acertos dos governos, da evolução das técnicas, da qualidade dos equipamentos, dos nascimentos e das mortes, dos dramas silenciosos, da epopéia das curas, do heroísmo dos profissionais?

Não se trata aqui de defender a invasão da vida das pessoas pela mídia, mas de constatar que se um campeonato de futebol é acompanhado desde a preparação das equipes até a festa dos campeões, fenômenos imensamente importantes – e aqui o exemplo dos hospitais é excelente, pois neste caso game over é game over mesmo, não dá para reiniciar o jogo – são tratados de maneira pontual e sensacionalista.

Assim, o que temos na saúde – e em tantas outras áreas – é uma cobertura fragmentária que, pressionada pela obrigação com os índices de audiência, costuma até levantar poeira, mas já não está ali quando ela baixa e se torna possível ver melhor. Alguém duvida que o quadro seria diverso caso, da mesma forma que na porta do Clube de Regatas do Flamengo, houvesse um repórter plantado na entrada do Hospital Souza Aguiar, fizesse chuva ou fizesse sol, em tempos de tempestade e (sic) de bonança?

Imprensa cidadã

Outro exemplo interessante: quando houve a final da Copa, a famosa cabeçada do jogador Zidane foi notícia em todo o mundo. Rapidamente, traçou-se um perfil do jogador, mostrando atos de violência que marcaram sua carreira. O mesmo ocorreu a respeito do zagueiro italiano Materazzi. Na verdade, estes perfis são relativamente comuns nas coberturas esportivas: é mesmo normal que, antes do jogo, o telespectador seja convidado a ‘ficar de olho’ neste ou naquele atleta, que pode desequilibrar.

Agora, por que isso ocorre tão pouco no jornalismo político, por exemplo? Por que os ‘artistas do espetáculo’, usando um jargão do futebol, não são enumerados, em suas características, quando se faz a cobertura de uma CPI? Por que o histórico de deputados e senadores que sobem ao palanque para alardear honestidade – quase candura! – e criticar os adversários não é mostrado, como apontados foram os atos violentos que desacreditaram a ‘vítima’ Materazzi? Por que, de um escândalo para o outro, políticos deixam a posição de ‘réprobos’ para se tornarem ‘baluartes da democracia’, da mesma forma que atores deixam o papel de ‘vilão’ para assumirem o de ‘mocinho’ na novela seguinte, e isto é tratado de maneira tão superficial pela mídia?

Estas não são questões secundárias. São, isto sim, perguntas que devem ser levantadas o tempo todo, se é que temos de fato o ideal da construção de uma imprensa cidadã.

Apenas o ladrar dos cães

Na verdade, o exemplo acima nos recoloca diante do desafio da historicidade de que tratávamos no início deste artigo. Dia após dia, rios de notícias invadem nossas vidas através das mais diversas mídias. Os mortos na tragédia de avião na Ásia, o nascimento de um urso num zoológico, os discursos do presidente, os amores de um jogador de futebol, a guerra no Oriente Médio, o desfile de Miss Universo… Num amplo painel, eles se estruturam como um mosaico em que as pautas, o mais das vezes, são resultado de uma escolha do que há de mais notável – no sentido da impressão que é capaz de produzir – de forma a ganhar a briga pelo telespectador, pelo ouvinte, pelo leitor.

No entanto, o evento notável de hoje não tem, quase nunca, relação com o evento notável de ontem. Neste último, a poeira já estava baixando. O resultado é a perda da filiação histórica e a sensação, no cidadão, de impotência diante da complexidade desta colcha de retalhos. Como os fogos de artifício, os fatos estouram diante de nosso olhar atônito e somem, antes que possamos assimilá-los.

Falando em fogos, o silêncio já reina no momento em que escrevo estas últimas palavras. Lá fora, só ouço o ladrar dos cães vadios que passeiam pelas ruas. Os torcedores já voltaram para casa: vão recolher o que sobrou, além das coisas casuais. Como no poema de Neruda, as pegadas da vitória já começam a sumir na areia…

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Jornalista, mestre em Semiologia pela UFRJ e professor de TV e Rádio Pública e Educativa do curso de Comunicação da Universidade Presidente Antônio Carlos (Unipac), Juiz de Fora, MG