Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O golpe de Pinochet, revisto pela mídia

Em setembro de 1973, oito anos e nove meses depois do golpe militar que derrubou o presidente João Goulart, em nome do combate ‘à corrupção e à subversão’, a grande imprensa brasileira preferiu a derrubada – e o suicídio – do presidente Salvador Allende à ‘comunização do Chile’.


E em outubro de 1998, treze anos e sete meses depois do fim da ditadura no Brasil, houve na mídia nacional quem a rigor condenasse a decisão da Alta Corte de Justiça, na Grã-Bretanha, que então mandou o prender o já ex-ditador chileno Augusto Pinochet, em Londres para tratamento de saúde, a pedido do procurador espanhol Baltazar Garzón. [Seus advogados conseguiriam que ele voltasse a Santiago, sob a alegação de que não tinha condições mentais de enfrentar um julgamento.]


O argumento era o de que Pinochet, independentemente do que viesse a fazer depois com os chilenos, tomou o poder com o apoio da maioria do seu povo, temerosa, com razão, de que Allende era uma espécie de Kerensky, um dos líderes da derrubada do czarismo, em fevereiro de 1917, afinal tragado pela Revolução leninista de outubro daquele ano. ‘Kerensky chileno’ foi uma expressão recorrente da direitona para insuflar o golpe.


Nessa ótica, Pinochet foi dos males o menor para o Chile – e não é que ele também colocou o seu país na vanguarda da modernização econômica na América Latina, com as suas políticas radicalmente pró-mercado?


Tendo em vista, portanto, que só um tarado justificaria hoje o inferno pinochetista, parece apropriado ler os editoriais de hoje [terça, 12/12] dos jornalões brasileiros sobre a morte do general sanguinário – no Dia Internacional dos Direitos Humanos – para ver o peso que neles ocupa, passadas essas três décadas, a contrafação histórica de que Allende colheu o que plantou.


É o que a direita quer fazer crer para borrar da memória coletiva a realidade de que o primeiro presidente marxista democraticamente eleito na América do Sul, compassivo e reformador, embora não raro confuso e fustigado por pressões contraditórias de seus próprios partidários, foi apeado por uma bem-sucedida aliança entre a grande burguesia, a classe média e o governo de Washington.


Com todas as suas reformas e conflitos, por sinal, em nenhum momento Allende atentou contra a Constituição chilena.


‘Nunca mais’


Convém comparar os textos do Globo, da Folha de S.Paulo e do Estado de S.Paulo não apenas entre si, mas com os do londrino Guardian, de centro-esquerda, e do liberal New York Times, dois dos dez melhores jornais do mundo, por qualquer critério que se escolha.


Em nenhum dos dois, ocupam espaço além do estritamente necessário os processos sociais e políticos que levaram ao bombardeio do palácio de La Moneda, em 13 de setembro de 1973.


O Guardian observou que ‘as circunstâncias em que Pinochet tomou o poder se entrelaçavam fatalmente com a confrontação global da Guerra Fria, na qual os Estados Unidos atuavam desapiedadamente para esmagar o tipo de desafio esquerdista que enxergavam em Salvador Allende’.


O NYTimes, sob um título de primeira ‘O ditador destro’, menciona basicamente que a presidência Allende, além de ‘caótica’, foi desestabilizada pela administração Nixon.


No Brasil, a Folha também fala da polarização ideológica da Guerra Fria, ‘exacerbada após o advento de uma ditadura socialista em Cuba’, num período em que ‘à esquerda e à direita, a adesão à democracia sucumbia diante de projetos ditatoriais’ e quando ‘militares arrebataram o poder em todas as nações sul-americanas, à exceção da Venezuela e da Colômbia’.


O jornal sustenta ainda que, ‘tomando proveito da radicalização de Allende rumo ao populismo de esquerda, ancorado na repulsa que parte relevante da sociedade e da elite chilenas nutria por aquela opção, e apoiado por Washintgon, Pinochet traiu o presidente que o nomeara chefe do Exército e liderou o golpe’.


No fecho, a Folha adverte: ‘Ditadura, seja de direita, seja de esquerda, nunca mais’. Está à vontade para fazer a exortação, porque aprendeu com a história e não saiu com um editorial aplaudindo o golpe, afinal fracassado, contra o venezuelano Hugo Chávez em 2002.


Multinacional do terror


Bom sinal dos tempos, também O Globo termina exclamando: ‘Volta ao passado, jamais’. Isso, depois de alertar: ‘O desafio dos líderes moderados e responsáveis da região é promover a modernização, o crescimento econômico e a redução das desigualdades sociais em plena vigência da democracia’. Impossível discordar.


O Globo de certo modo surpreende ao colocar entre aspas a expressão ‘perigo comunista’, precedido do expressivo verbo ‘esconjurar’, antes de falar das barbaridades do pinochetismo. E quase se desculpa ao dizer que ‘o ditador acertou a mão ao oferecer o país às teorias liberais’. A frase começa com um ‘Forçoso reconhecer que…’.


E mais: dos cinco editoriais examinados, apenas o do Globo lembra que ‘Pinochet se tornou o principal protagonista da Operação Condor, que uniu as ditaduras do continente, inclusive a brasileira, numa multinacional do terror’.


Perspectiva democrática


De todos, o do Estado de S.Paulo é o que mais se estende ao tratar, à sua maneira, do pré-Pinochet:




‘Em 1973, o Chile estava à beira da guerra civil. Salvador Allende, eleito presidente por apenas cerca de 25% dos eleitores [como se isso tornasse menos democrática e legítima a sua eleição] tentava impor ao país um regime socialista, promovendo expropriações de bancos, empresas e terras [como se isso não fizesse parte das reformas que prometeu na campanha]. Sua eleição havia trazido para o Chile os radicalismos típicos da guerra fria, que anos antes haviam sido o caldo de cultura para os movimentos militares que, na Argentina e no Brasil, se contrapuseram ao avanço das forças de esquerda que, sob a inspiração geral do regime comunista cubano, tentavam exportar a revolução para o Cone Sul. [No Brasil, os militares se ‘contrapuseram’ a um presidente que poderia dizer como Lula, agora, que ‘não tem outro jeito, se você conhecer uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque ela tem problemas‘.]


Nenhuma palavra sobre o papel dos Estados Unidos no golpe, muito menos sobre o empenho do então secretário de Estado Henry Kissinger em persuadir o chefe Nixon a respaldar por todas as formas a tirania militar chilena, muito menos ainda sobre a ‘multinacional do terror’ da Operação Condor, em boa hora lembrada pelo Globo.


Já a descrição do que foi o horror dos anos Pinochet não mede palavras e vai rigorosamente ao encontro da verdade. O que talvez não se possa dizer da afirmação segundo a qual do convívio entre democrata-cristãos e socialistas no Chile pós-ditatorial ‘resultou uma forma de socialismo – que alguns chamam de social-democracia…’.


Mas isso é detalhe. De uma perspectiva democrática, o importante foram os editoriais dos outros dois jornais brasileiros. Um, porque falou do passado como ele foi, em geral; um e outro, porque cravaram que o futuro não pode repeti-lo.


***


P.S. – Amanhã, 13 de dezembro, o Ato Institucional nº 5, que calcificou a ditadura militar brasileira, faz 38 anos. Perguntem-se os jornalistas quantos brasileiros já chegaram a essa idade para entender, se é que precisam, o imperativo de manter a história viva – e bem contada.


[Texto fechado às 8h10 de 12/12]