Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

O importante não é quem sai vencedor

À grande imprensa caberia esmiuçar detalhadamente as crises deflagradas nos últimos anos, conduzindo a opinião pública a um profundo exame de consciência. Mas o clima eleitoral intermitente empobrece os debates e transforma o noticiário em panfleto. A mídia de aspirações oposicionistas coloca interesses particulares acima de seu papel social, levando o país a desperdiçar oportunidades históricas. Passa-se ao largo de questionamentos prementes, deixando um rastro de problemas irresolutos; o público recebe algumas certezas tolas e repousa satisfeito.

A descoberta de caixa dois nas campanhas petistas evidenciou não apenas que a esmagadora maioria dos partidos comete ilicitudes, mas também que os operadores dessas transações são os mesmos para os mais variados grupos, configurando um megaesquema de corrupção. Entretanto, quando Marcos Valério confessou ter iniciado sua carreira em candidaturas do PSDB mineiro, o tom das análises mudou drasticamente. A prática generalizada de ilegalidades eleitorais não era tão grave quanto o fato de o PT envolver-se nelas. E o assunto virou ‘mensalão’.

Mais uma vez evita-se o principal. Os comentaristas preferem disseminar a enganosa expressão forjada por Roberto Jefferson a discutir o fato de um presidente eleito por sessenta milhões de brasileiros ter sua governabilidade sujeita a pressões de deputados pouco representativos. Contemplar essas demandas compensa a aplicação de um programa de governo escolhido pela maioria? Ou a legalidade serve sempre ao interesse público, mesmo redundando em paralisia administrativa? Questões semelhantes não absolveriam o governo Lula; antes permitiriam que nosso presidencialismo de fachada fosse discutido sem hipocrisia e revanchismo.

Crônica premonitória

Outra omissão contemplou a atuação da Polícia Federal no caso do dossiê sobre José Serra. Ninguém teve coragem de dizer abertamente o que motivou a prisão dos petistas em São Paulo, sem haver evidências que justificassem o flagrante. Tolerou-se até a aura de clandestinidade e intriga que envolveu a distribuição das fotos à imprensa. Nunca é demais lembrar que, às vésperas da eleição, um procurador e um delegado federal endossaram atividades irregulares contra uma candidatura a governador. À soberania dos valores democráticos seria muito mais valioso elucidar aquele tétrico episódio do que insistir em acusações frágeis e na sistemática ocultação do dossiê.

A crise aérea é a mais recente chance perdida pela irresponsabilidade jornalística. Assim como a palavra ‘mensalão’ embute conotação não embasada oficialmente (pagamento mensal e regular) e alude à compra de votos para aprovar a reeleição de FHC, o termo ‘apagão’ tenta forjar uma catástrofe sistêmica, simulando a abrangência dos danos causados pela pane elétrica de 2001. Para operar a falsificação, os comentaristas são obrigados a embaralhar informações e tecer juízos contraditórios.

O caos nos aeroportos não surgiu agora. A premonitória crônica ‘Aeroporto de Congonhas, uma, duas, várias vergonhas’, de Carlos Eduardo Novaes, foi publicada em 1976. Filas imensas, funcionários grosseiros, estrutura despedaçada, atrasos inclementes, bagagens extraviadas e cancelamentos por excesso ou falta de reservas sempre fizeram parte da rotina dos passageiros. E não apenas no Brasil. Para citar exemplos díspares, nos EUA, na Itália e na Argentina os problemas do sistema aéreo são proverbiais, muito piores que os brasileiros.

Simbiose entre mídia e governo

No começo, raros analistas defenderam a aplicação de sanções legais sobre os controladores, tratados como vítimas indiretas do trágico acidente com o avião da Gol. Mas, ao mesmo tempo, a contemporização do governo pareceu sinal de incompetência e desrespeito às autoridades militares. Afinal, Lula deveria ou não autorizar a punição dos amotinados? Já que a resposta conveniente passou a ser afirmativa, cabe indagar: tratava-se realmente da melhor saída para a normalização do tráfego aéreo? Uma rigorosa e imediata aplicação do Código Penal Militar compensaria o absoluto colapso resultante? Quem substituiria os sargentos afastados?

Há muitas perguntas submersas. O noticiário finge que esgotamentos infra-estruturais dessa monta são originados em apenas cinco anos. Omite os bilionários interesses que movimentam os bastidores da aviação civil e hoje municiam a campanha pela desmilitarização. Ignora que as empresas aéreas aproveitaram o motim para maximizar lucros, agravando a confusão e os prejuízos dos passageiros. Promove uma ‘CPI do apagão’ que repetirá as aberrações das CPIs anteriores, transformando-se em pizzaria assim que as investigações atingirem os burocratas das gestões PSDB-PFL. E incentiva o acirramento dos ânimos envolvidos, criando um falso ambiente de ruptura institucional – aliás, em todo desentendimento com militares, Lula parece estar prestes a sofrer um golpe de Estado.

A crueldade do apagão jornalístico reside numa simbiose estabelecida entre mídia e governo, acomodados um ao outro, alimentando-se mutuamente de ataques inconseqüentes. O importante aqui não é quem sairá vencedor, mas que o combate permaneça, interminável, estéril. Enquanto o nível da imprensa for medíocre, os governantes estarão à vontade para imitá-la. E vice-versa.

******

Historiador e escritor. Colaborador da revista Caros Amigos e autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela)