Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O jornalismo aloprado

A divulgação açodada e estrepitosa de suposto ‘dossiê’ sobre gastos sigilosos do governo Fernando Henrique Cardoso expõe a grande imprensa, mais uma vez, ao descrédito e ao ridículo.

‘Aloprados’ e sabujos nunca faltaram no jornalismo brasileiro, cumprindo a função de assumir a responsabilidade por iniciativas infames com as quais os seus patrões, ou mesmo seus superiores imediatos, não desejam sujar suas sujas mãos. O exemplo mais recente desse tipo de jornalismo, uma vez que são variados/diversos os exemplos e estes se acentuaram, curiosamente, a partir do ano de 2003, início da gestão Lula, é a repercussão do episódio do suposto ‘dossiê’ sobre os gastos miúdos do governo FHC. A tapioca do ministro dos Esportes já não rendia um beiju ou cuscuz, quero dizer, uma notícia.

Decerto que o alopramento da nossa imprensa já fez coisas piores que dar repercussão, com o devido estardalhaço e forçada gravidade, a um papelucho de 13 páginas contendo registros de gastos miúdos de um ex-presidente da República e batizado de ‘dossiê’. Nesse alentado ‘dossiê’ constam coisas como o custo de codornas desossadas que abastecem a cozinha do Planalto, de lixas de unha, passagens aéreas internacionais, de garrafas de champanhe etc. Teve até gente que se apressou (e se alegrou) em divulgar, numa outra ocasião, a aquisição de um pênis de borracha, como se esse artefato pudesse ter sido utilizado para fins outros que não aulas sobre reprodução humana ou ensinamentos correlatos. É, enfim, de uma baixaria atroz, indigna do grande país que pretende ser o Brasil e de suas respeitáveis instituições.

Um bafejar pestilento

Assim como o presidente Lula e a primeira-dama Marisa Letícia merecem todo o respeito dos cidadãos deste país (o que deveria incluir aí também os jornalistas), Fernando Henrique, apesar de seu governo sabidamente deletério e Ruth Cardoso merecem igual respeito, sigilo e privacidade em seus pretéritos (ou atuais) gastos com miudezas no exercício do poder. A quem interessa, a essa altura do campeonato, inverter e apequenar a pauta do país? Ao governo Lula? A grande imprensa, ao que parece, se apraz e se regozija com essa infame e indesejável inversão – não só da pauta, como de valores.

Para quê uma CPI para investigar gastos com miudezas? Para quê expor a intimidade e os pequenos pecados, nada originais, cometidos pelos mandatários e demais ocupantes de palácios – seja do Alvorada, seja do Bandeirantes, seja do…? Para quê perder tanto tempo e gastar tanto espaço no noticiário com esses ‘escândalos’ de ocasião? Para quê essa rotineira ‘escandalização do nada’? Será que o que se deseja, de fato, é a moralização do gasto público, seja ele ínfimo, pequeno ou grande? A resposta é soprada pelo vento. Por um vento fraco, como um bafejar pestilento, mas que se pretende avassaladora ventania.

Muito barulho por nada

Enquanto desviamos nossa atenção para esses fatos tão ‘relevantes’ da vida nacional, a corrupção campeia nas compras e contratos na esfera dos governos e segue sangrando escassos recursos públicos; o caixa 2 prossegue a alimentar as ‘caixinhas’ dos partidos (de todos eles); os governos continuam a aumentar seus gastos com publicidade nos grandes veículos e agências de publicidade – mesmo depois das ‘edificantes’ (e, pelo visto, negligenciadas) lições que nos legou Marcos Valério e seus diligentes serviços prestados na arrecadação de recursos para as campanhas do PSDB, do PT e de seus aliados de ocasião.

Enquanto nos escandalizamos com o nada, a reforma tributária rasteja preguiçosa nos (des)caminhos do Legislativo, já não se fala sobre a tão necessária reforma política, diversos outros projetos de lei de interesse da nação caminham a passos de tartaruga no Congresso. Enquanto nos escandalizamos com o nada, a mídia nos prepara, nos domestica, sub-repticiamente, para um aumento [desnecessário] dos juros na próxima reunião do Copom. Ou será que nos adestra para a volta da escória ao poder em 2010?

Não tenho nenhuma ligação ou vínculo com a ministra Dilma Rousseff, sequer a conheço, mas reconheço nela, além da sua trajetória pontuada por brava luta contra a ditadura, um indubitável talento e competência a serviço do país – aliás, diga-se, um dos parcos e raros exemplos de talento e competência que se coloca a serviço da coisa pública nesse país. Agora, pretender derrubar a ministra ‘no grito’ a partir desse episódio, e se falar, ou dar manchetes, sobre um suposto e descabido ‘Dilmagate’, só pode ser coisa mesmo de amalucados da imprensa. Talvez para fazer jus aos aloprados que bramem discursos raivosos e vazios na tribuna do Congresso – ou para servir como um arcaico alto-falante ou caixa de ressonância desses garotos propaganda do atraso.

Até parece ser muito barulho por nada. Até parece.

Qualquer semelhança entre os primeiros dois parágrafo deste artigo e o editorial de sábado, 29/03, de certo ‘jornalão’ paulista terá sido mera coincidência, ou, quem sabe, uma singela ‘recriação’ sarcástica, na linha make it new.

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‘Serjão’ [Sérgio de Souza, editor da Caros Amigos, recém-falecido], este texto é em homenagem a você, meu caro! Um grande e saudoso abraço!

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Economista, poeta e cronista, colaborador da Caros Amigos e da Agência Carta Maior