Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O melhor jornalismo, sem viseiras e bitolas

A profissão de jornalista é uma das poucas regulamentadas no corpo da Consolidação das Leis do Trabalho, a muito corporativa CLT. Como o básico dessa regulamentação foi estabelecido diretamente pelo Estado, através de decretos-leis e portarias, seria indicação do apreço dos governantes pela liberdade de imprensa. Objeto de cuidados especiais, o jornalista brasileiro estaria em condições de exercer com dignidade e independência sua importante profissão, sem a qual não há democracia que valha a pena.


O ponto-chave dessa regulamentação é a exigência de diploma de curso de comunicação social para os candidatos a jornalistas. Antes, a liberação era total, aduzida de vantagens que atraíam oportunistas e aproveitadores, formando uma massa de manobra, ao lado de um exército de reserva de mão-de-obra, ambos manobrados pelos patrões. De 1969, quando a terrível Junta Militar impôs o diploma universitário, para cá, a busca é da regulamentação completa. A última iniciativa reduziria a quase nada o contingente de colaboradores da imprensa, que ainda drena as vocações naturais para as redações. Todos teriam que ser jornalistas profissionais, com canudo na mão, inclusive na internet.


Só alguém de má-fé defende a desregulamentação da profissão de jornalista. Sem a formação superior, o jornalista voltaria a ser técnico de nível médio, sujeito a salário rebaixado. Mas por que exigir só o diploma de comunicação social? Por que não admitir graduados de todas as formações?


Em todos os lugares onde há imprensa de nível há também cursos de comunicação, em geral, e de jornalismo, especificamente (estes, raros no Brasil). Mas não a reserva de mercado. Ainda assim, os cursos específicos são bem procurados e suprem as redações. Não com a exclusividade do canudo de comunicação social, inovação do jornalismo ‘à brasileira’ (como a própria democracia ‘à brasileira’ dos ditadores mal-assumidos). Sabem que o forte componente vocacional do jornalismo não é compatível com essa obtusidade, que acaba por empobrecê-lo, como tem acontecido no Brasil, não por mais uma conspiração das elites e sim pelos males atávicos desse ‘modelo’ corporativo-autoritário.


Exemplo de milenarismo


Cada vez mais jovens procuram as multiplicadas faculdades de comunicação social na ilusão de que seus lugares nas redações estarão a esperá-los depois da diplomação, sem a ameaça dos predadores destituídos de formação universitária. Depois de uma rica experiência de sete anos como professor em um desses cursos, na Universidade Federal do Pará, não tenho dúvida de que os apóstolos dessa cruzada vão rodar em círculo concêntrico até morder a própria cauda – nada luminosa, por sinal.


Na voragem sindicalista de combater todas as maquinações dos patrões, reais ou imaginárias, terminarão por consagrar uma política de terra arrasada. A profissão pode ser salva, a corporação engrossará, mas o jornalismo continuará a se deteriorar e sua contribuição à democracia, a se enfraquecer. Um dia, o jardim da fantasia desaparecerá, de novo.


Muitos dos jornalistas em atividade, os dirigentes sindicais e os seus aliados políticos parecem incapazes de ver o mundo antes da nefanda regulamentação imposta manu militari pela Junta, em 1969. Havia vícios, fraudes e misérias no jornalismo antecedente, de 1946 a 1968 (o AI-5 delimita o início da era do terror). De lá para cá, sem e com democracia, o que há é uma formação unilinear, daquele tipo de sincronismo (hoje fala-se em ‘pensamento único’) que aprendemos a rejeitar com a ajuda do filósofo Herbert Marcuse (embora sua argúcia atirasse em outra direção, atingiu-nos em cheio com sua apaixonada defesa da liberdade).


Os teóricos defensores do diploma como pedra de toque da regulamentação (um dos vocábulos mais antijornalísticos que há, com sua matriz burocrática) repetem litanias e palavras de ordem, num catecismo refratário à demonstração, à controvérsia, ao contraditório. Falam como professores ex-cathedra, se não inquisidores, prontos a despachar os hereges aos ferventes óleos purificadores. À maneira do dogmatismo redundante das resenhas, não há espaço em suas manifestações para a exuberância humana, sempre sujeita a meios-tons, paradoxos, mistérios e contradições.


Um exemplo desse milenarismo é a nota com a qual a Federação Nacional dos Jornalistas reagiu aos ataques de que se considerou vítima em editorial do jornal O Estado de S.Paulo. Destacando que o jornal é ‘conhecido por seu conservadorismo’, devolve-lhe a pecha de golpista (por trabalhar pela aprovação do projeto de lei que ampliou as funções privativas dos jornalistas), lembrando que ‘adeptos de golpes são o Estadão e outros veículos de comunicação de massa do País. Eles, sim, apoiaram a ditadura militar, desde o primeiro instante do golpe ocorrido em 1964, e continuam a apoiar, cotidianamente, os mais diversos golpes que a elite brasileira desfere contra o povo’.


Escuro unidimensional


É verdade. Quase toda grande imprensa apoiou o golpe de Estado que depôs o presidente João Goulart. No dia 2 de abril de 1964, porém, o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, já criticava asperamente os novos donos do poder, que na véspera incentivara a colocar o presidente para fora. O Jornal do Brasil, um pouco menos, e O Estado de S.Paulo, um tanto mais comprometido, acabaram por se realinhar em relação ao regime quando o AI-5 rasgou de vez o pano já roto da democracia.


O próprio Júlio de Mesquita Filho, o homem de imprensa mais metido nas conspirações golpistas, escreveu o editorial ‘Instituições em frangalhos’, que provocou a censura do jornal. Poucas vezes um texto jornalístico foi tão duro contra os militares até então. Teria sido muito melhor para o segundo Mesquita no controle do jornal paulista maneirar nas palavras e contemporizar. Júlio Mesquita Filho era um conservador, autoritário, às vezes confuso e equivocado, além de presunçoso, mas tinha um pensamento atrás de seus movimentos e agia conforme pensava, na defesa dos seus princípios.


Pela segunda vez, em 1964, cometeu o erro de achar que os militares reformariam a República e a devolveriam aos civis mais impolutos. É uma visão elitista, que tem sua matriz em Sócrates. Mas não se deve chegar a condenar quem assim pensa a beber a cicuta para prevenir nova tirania. A democracia deve ter solidez para absorver uma heterodoxia dessas.


Julinho não era uma bête-noire do progressismo, como faz crer a Fenaj. A realidade, felizmente (ou infelizmente, para os jansenistas), é mais complexa. A respeito do segundo condutor da dinastia jornalística dos Mesquita é recomendável a leitura de Cartas do exílio (Editora Albatroz, Loqui Editora e Editora Terceiro Nome, 375 pp.), a reunião das cartas que entre si trocaram Júlio e sua mulher, Marina (e algum coadjuvante), durante os cinco anos de exílio (em duas etapas) do dono do Estadão durante a ditadura de Getúlio Vargas.


Espero ter tempo de comentar esse livro, editado com carinho por um dos seus netos, Ruy Mesquita Filho. Mas desde já recomendo essa obra, rara na bibliografia brasileira, que ignora os exílios, exceto quando eles tangem langorosos versos, deixando de lado, sobretudo, a mulher do exilado, conforme Marina Mesquita protesta, com sua pena irônica, enérgica e doce.


Se conseguirem evitar o uso do diploma como espada cega, nossos guerreiros do jornalismo corporativo também apreciarão o livro, talvez aprendendo a ver o horizonte com todas as suas tonalidades e não só pelo bipolar preto-e-branco, freqüentemente degradado ao escuro unidimensional. Algo definitivamente contrário ao melhor do jornalismo.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)