Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

O mundo insone

Este título foi usado pela primeira vez há 97 anos (18 de agosto de 1914), no principal jornal de Viena. A Primeira Guerra Mundial começara três semanas antes, os beligerantes já estavam alinhados (faltavam apenas os Estados Unidos), o jovem poeta austríaco que escreveu o texto parecia apenas perplexo sem saber situar-se diante das dimensões do conflito.

O mundo deixou de sofrer insônias: nestes quase cem anos de matanças em guerras mundiais, regionais, fratricidas, genocídios, holocausto, crises econômicas e fomes devastadoras percebe-se que hoje se dorme com mais facilidade. Graças a soníferos, tranqüilizantes ou recursos hipnóticos mais eficientes do que contar carneirinhos, parece que aprendemos a conviver com os fantasmas.

Paradoxalmente, isso não é salutar. Para o Nobel de Literatura Günter Grass, o homem contemporâneo sofre menos porque é informado demais – enfiam-lhe na cachola tamanha carga de dados e bites que suas percepções acabam embotadas. Livre das dores de mundo magoa-se apenas com aquilo que lhe afeta pessoalmente. Está de tal forma conectado no mundo digital que se desconectou do resto. Sobretudo das analogias. E assim dorme o pesado sono dos injustos.

Embalos lineares

Até a segunda-feira (1/8) a vilã era a falange proto-fascista americana, o Tea Party, atropelando não apenas o presidente Barack Obama, mas também o Partido Republicano e os próprios fundamentos institucionais do país. Afastada a possibilidade do calote da maior economia mundial, inscreveu-se no calendário das débâcles financeiras, 82 anos depois da primeira, outra quinta-feira negra: o violento desabamento das bolsas de valores do mundo inteiro (4/8).

Não foi um repeteco do crash de 1929, nem uma forte turbulência dentro da gangorra despenca-dispara do mercado financeiro. Muito mais grave: escancarou-se a noção de que a crise de 2008 não completou o seu ciclo. Tudo indica que estes dois anos de sonolência e dormência foram insuficientes para nos animar a re-arrumar o tabuleiro.

Estamos nos encaminhando para um novo fenômeno depois da recessão. Segundo Kenneth Rogoff o fantasma é mais pavoroso e atende a outro nome: contração – encolhimento, redução. Além dos efeitos dramáticos da freada na economia mundial, prenuncia-se a possibilidade de um estancamento. Será catastrófico. Com um agravante de alto teor explosivo: o quadro político torna-se cada vez mais volátil e imprevisível.

A paranóia ultradireitista americana acompanhada da fúria nacional-populista da Europa pode produzir fortes reações no mundo islâmico e asiático. A primavera árabe chegou ao verão e parece que não se deterá no outono. Bom para democracia, péssimo para aqueles que esperam dormir sossegados com os embalos lineares da história. Uma diminuição na demanda de commodities poderá jogar fagulhas num território ainda sujeito a incêndios: a América Latina.

De sonho em sonho

Convém reparar no todo, mesmo que o preço seja um sono menos regular. Convém juntar fatos, colar recortes, aparafusar fragmentos – crises não podem ser segmentadas como os cadernos dos jornais. As grandes mudanças na história – mesmo quando a humanidade era muito menor – ocorreram em diferentes direções, esferas e níveis. Para combater a lerdeza e o comodismo, recomenda-se alguma vigília, vigilância.

Um mundo insone é mais atento, criativo. A incômoda insônia levou o vienense Stefan Zweig, autor do artigo, a entrar em seguida na trincheira dos intelectuais pacifistas reunidos na Suíça para apressar o fim da Primeira Guerra Mundial.

De insônia em insônia, de busca em busca, de sonho em sonho, o jovem poeta tornou-se uma celebridade literária que em agosto de 1941, há exatos 70 anos, deslumbrado com o nosso país, publicou Brasil, um país do futuro. (segue).