Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

O nome da crise

Conferia a programação dos canais na TV quando me deparo com a TV Senado transmitindo ao vivo (22/3) a sessão do Supremo Tribunal Federal (agora antológica por seus desdobramentos, com direito a YouTube e assemelhados) em que se deu a discussão entre os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa.


Antes de ir dormir, resolvi espiar os sítios dos principais jornais e jornalistas que mantêm blogues sobre política para ver como estava se dando a repercussão. Josias de Souza (UOL) e Ricardo Noblat (Globo) davam os links para os vídeos e as transcrições do entrevero. Centenas de comentários mostravam a temperatura que o tema suscitava. Uma rápida olhada em duas dezenas de comentários em cada um desses blogues dava conta que o placar registrava ampliadíssima vantagem dos que opinavam estar o ministro Barbosa ‘coberto de razão’, bem como um verdadeiro dicionário de impropérios lançados contra o ministro Mendes.


No sítio do Jornal Nacional, encontrei o arquivo do William Bonner noticiando, no calor mesmo do evento, os principais trechos das ofensas trocadas entre os togados da corte máxima do país. Dos grandes jornais no eixo Rio-São Paulo-Brasília, apenas a Folha de S.Paulo deu manchete principal em sua capa da edição quinta-feira (23/4). A repercussão tem sido massivamente nos meios noticiosos digitais. E aí é um emaranhado de depoimentos de presidentes de entidades classistas do Judiciário, políticos com presença constante na mídia, comentaristas em geral.


Olho do furacão


No sítio da revista Veja, li o arrazoado do colunista Reinaldo Azevedo destacando, logo nos primeiros parágrafos, que não iria autorizar a publicação de comentários favoráveis ao ministro Joaquim Barbosa e recomendando àqueles que não fossem seus leitores que buscassem outra freguesia para postar comentários pró-Joaquim Barbosa. Ele escreveu assim:




‘Reitero: não publicarei manifestações de solidariedade a Barbosa. E a razão é simples: ele está errado. Está errado no fundamento. Está errado na postura. Está errado no vocabulário. Está errado no decoro – ou na falta dele. `Então não te leio mais´, tentam ameaçar. É um favor que me fazem. Há milhares de blogs por aí. Por que insistem em emplacar suas bobagens no meu?’


O que chama a atenção é a entrevista a vários canais de televisão em que o presidente do STF Gilmar Mendes (1) ‘nega a existência de uma crise institucional na Suprema Corte’, (2) afirma ‘que o assunto está superado’ e (3) sustenta que ‘vocês podem avaliar que a imagem do Judiciário é a melhor possível’.


Tais declarações não se fundam na realidade. Primeiro: porque existe sim uma crise, se é institucional ou não dependerá do ângulo que se deseje focar. Que há crise não resta dúvida, pois dois dos 11 ministros da Suprema Corte trocaram ofensas graves e deixaram ao largo virtudes que muito bem devem adornar uma corte de Justiça, quais sejam as de temperança, urbanidade, lhaneza e cortesia.


Segundo: o assunto não foi superado. Se tivesse sido, a sessão do Supremo do dia seguinte não haveria de ser cancelada e não se ouviu qualquer palavra do ministro Barbosa, mesmo após uma muito econômica nota assinada por 9 ministros do STF reafirmando seu apoio ao presidente da instituição. Mais protocolar impossível, mais formal, impensável.


Terceiro: nada mais dissonante que dizer que a imagem do Judiciário é a melhor possível. Nos últimos tempos o Poder Judiciário tem estado no olho do furacão em diversas polêmicas: a denúncia pelo presidente Mendes de estarmos em meio a um estado policial em face ao volume de telefones grampeados ao longo e ao largo do país; a denúncia de o MST ser um movimento ilegal e, portanto, não poderia ser beneficiário de dotações orçamentárias do governo; os dois habeas-corpus concedidos em brevíssimo espaço de tempo a Daniel Dantas, personagem central da Operação Satiagraha levada a cabo pela Polícia Federal.


Ausência de valores


Em nenhum dos casos pode-se dizer que exista amplo respaldo e apoio por parte da sociedade. Os próprios operadores do Direito divergem quanto às posições adotadas pelo presidente do STF em cada um dos casos e isso porque estamos destacando as polêmicas que mais ‘prosperaram’.


A verdade é que temos seres humanos, com emoções à flor da pele, em qualquer instância social, seja na administração de escola pública, na coordenação de campanha de vacinação infantil ou em sessão plenária da mais alta corte de Justiça do país.


Não faz muito o ministro Marco Aurélio Mello chamou o ministro Joaquim Barbosa para um duelo. Existe uma tendência para hipervalorizar o descompasso entre liturgia do cargo daqueles detentores dos poderes da República e suas ações cotidianas no exercício dessas mesmas funções e atribuições. Há uma busca pelo que sai do tom, pelo exótico, pelo rasteiro nas relações sociais, pela quebra das relações cordiais minimamente exigíveis de parte das autoridades.


Vivemos uma crise. E a imprensa, infelizmente, tem se tornado especialista em pautar o vácuo deixado pela ausência desses valores. É que a crise é de valores humanos. E é sem precedentes.

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo