Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O poder da transparência

Em torno da corrupção nos negócios e na política gravita um complexo sistema que substitui o combate frente a frente e as estratégias claras e diretas traçadas contra o que se condena como o ‘mal’. Nos anos Lula parece evidente, como nunca no Brasil que esse sistema funciona e opera em parceria com a mídia – o que muitos atribuem ao exercício da democracia –, que lhe dá plena, ou quase plena transparência.


Na denominada Operação Navalha, tomada como um pequeno exemplo de nossa hipótese materializada nas linhas anteriores, a PF prendeu 47 pessoas, entre eles Zuleido Veras, dono da construtora Gautama, e José Reinaldo Tavares, ex-governador do Maranhão, acusados respectivamente de chefiar e de participar no esquema de desvio de dinheiro público e pagamento de obras superfaturadas ou inexistentes. Com o seu envolvimento no escândalo e na iminência de ser preso, o ministro de Minas e Energia, que teria recebido uma propina de 100 mil reais, se afastou do governo no dia 22 de maio.


Na mesma semana, um de seus ministros tomou o depoimento de 11 acusados e desses apenas o ex-chefe de gabinete da Secretaria de Agricultura do Distrito Federal continuou preso porque contra ele também pesava a acusação de posse ilegal de arma. Na sexta-feira, 25 de maio, 35 pessoas já haviam sido libertadas.


Espetáculo e efeito moral


À ciranda de prisões, um grupo de advogados reagiu criticando a ‘forma açodada e descriteriosa com que o Judiciário tem deferido medidas de força’. Segundo dizem o direito ao preso de saber os motivos de sua prisão ‘está sendo reiteradamente descumprido’ e ‘todas as diligências estão sendo baseadas exclusivamente em escuta telefônica, em interpretações subjetivas’.


O diretor do Conselho Federal da OAB, Alberto Zacharias Toron chamou atenção para outro efeito de poder que circula na luta contra a corrupção e que abriga a intenção de construir, graças à eficiência da PF, a imagem de um país livre da corrupção, retirando daí alguma força moral.


Para Zacharias, as prisões temporárias a granel, que se seguem às operações da PF, mais do que uma ação efetiva contra a corrupção, são uma forma de exibir indivíduos algemados desnecessariamente como um troféu em horário nacional. ‘É um escracho. O que se fazia antes contra o preto, pobre e puta é feito com outros presos, e há quem aplauda.’


Na Folha de S. Paulo de sexta-feira (25/6), o ministro do STF Marco Aurélio Mello engrossou o coro afirmando que a banalização da prisão preventiva é retrocesso. No jornal do mesmo dia, Lula reconheceu os excessos da PF durante reunião do conselho político e ouviu reclamações dos participantes da reunião em relação ao grau de ‘espetáculo’ e de ‘estardalhaço’ das ações da polícia.


De certo modo, uns e outros retiraram do episódio algum proveito para estender a sua ação como conflitualmente oposta à classe política. Juízes e advogados, que também criticam, se criticaram entre si, posicionaram-se como os regeneradores de sua legitimidade. Mas o sistema de que participam e o volume que a corrupção ganha no noticiário indica que o próprio problema da corrupção está longe de ser resolvido.


Baudrillard, que nos acompanhou nesta pequena reflexão, sugere cinicamente que o combate do mal – segundo as práticas correntes – conduz simultaneamente a reativar essa energia. ‘Podemos dizer aqui o que afirmava Mandeville, dizendo que uma sociedade funciona a partir dos seus vícios ou, pelo menos, a partir dos seus desequilíbrios. Não em relação com as suas qualidades positivas, mas antes das suas qualidades negativas. E, se aceitamos esse cinismo, podemos compreender que o político seja também a inclusão do mal e da desordem na ordem ideal das coisas. Assim, não é necessário nega-lo, mas jogar com ele e denunciá-lo’ (2000, p. 31-34).


Como jogar com o político nesses termos e criticar os efeitos de poder que a transparência provoca é um enigma para o jornalismo.


Referência


BAUDRILLARD, J. 2001. Palavras de ordem. Porto, Campo das Letras.

******

Jornalista, professora e pesquisadora da Unisinos, doutora em Jornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona, autora de Prostitutas, jogadores, pobres e vagabundos no discurso jornalístico (2004, Editora Unisinos)