Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O que precisa ser dito

Como sói acontecer, a imprensa iraniana – como toda imprensa oficial, manietada e a serviço do governo de plantão – é unânime em repercutir o apoio do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao desenvolvimento do programa nuclear do Irã. A verdade é que bem poucos líderes ocidentais se dispõem a visitar Teerã em um tempo como o atual, marcado pela queda de braço entre o Irã e o Ocidente, e que tem como olho do furacão a possibilidade, não tão remota assim, de o regime dos clérigos xiitas que desde 1979 governam o Irã poder usar armamento nuclear.


É fato que, desde as nebulosas eleições presidenciais iranianas de junho de 2009, a crise iraniana vem sendo coberta por repórteres que não podem sair dos hotéis de Teerã – e que são obrigados a recolher material para suas reportagens recorrendo a fontes indiretas e com escassa possibilidade de verificação, como mensagens transmitidas invariavelmente por correio eletrônico, vídeos colocados no Youtube e posts no Twitter, o microblog que virou uma febre mundial e artigo de primeira necessidade no Irã dos dias que correm. Não à toa que revistas semanais pelo mundo já batizaram a crise no Irã de ‘Revolução Twitter’.


Rédea curta


Os limites impostos pelo governo iraniano para a locomoção da imprensa estrangeira em Teerã são apenas a menor parte do problema, conforme reconhece Brian Murphy, da agência Associated Press. Praticamente todas as publicações internacionais substituíram seus correspondentes por autônomos (fotógrafos, cinegrafistas, iluminadores e repórteres) iranianos, mesmo antes da proibição governamental.


Como em toda ditadura, teocrática ou não, as versões são infinitamente mais importantes do que os fatos, e encontrar alguém que se disponha a dar entrevista a jornais estrangeiros é uma façanha e tanto. Não que as pessoas não desejem expressar sua visão à mídia de outros países. Muito pelo contrário, elas sabem que relatar as privações a que são submetidas pode simplesmente justificar sua prisão por vários meses, muitas vezes sem que o devido processo legal – e ainda mais aflitivo: sem que os familiares saibam de seu paradeiro.


As organizações Repórteres Sem Fronteiras e a Anistia Internacional têm regularmente denunciado o cerceamento à liberdade de imprensa no país. Pior. No Irã os meios de comunicação que têm carta branca para funcionar são habitualmente utilizados para violar os direitos humanos de sua maior minoria religiosa, os membros da religião bahá´í, que conta com cerca de 300.000 adeptos em todas as províncias do país.


A mídia oficial iraniana é orientada a incitar o clero e a população a perseguir os bahá´ís. O jornal diário oficial Kayhan já publicou mais de 30 artigos nas últimas semanas, todos difamatórios, para provocar a ira dos leitores contra os seguidores da fé bahá´í. Emissoras de rádio e televisão também transmitem notícias e programas tendenciosos contra os bahá´ís e suas convicções.


Há menos de um ano, o Ministério do Exterior iraniano acusou a BBC e a Voz da América de atuarem como porta-vozes de seus respectivos governos e de procurarem orquestrar os protestos realizados após a eleição presidencial. O governo do Irã também ameaçou tomar ações severas contra as redes de TV e rádio britânicas, caso elas continuassem a ‘interferir’ nos assuntos domésticos.


A ameaça veio após o anúncio de que o Serviço Mundial da BBC aumentaria o número de satélites que usa para transmitir notícias em persa e estenderia as horas de transmissão, a fim de combater a interferência do governo do Irã. Portanto, pode-se afirmar sem medo de errar que no Irã a mídia é tratada com rédea curta. E a externa é sempre alvo de ameaças, algumas veladas, outras nem tanto.


História de vida


É curioso que seja justamente Lula – presidente brasileiro que mais recebeu prêmios no exterior e alvo contumaz de louvação desbragada de norte a sul e de leste a oeste do planeta – o referido como poderosa voz solitária a apoiar a pretensão nuclear dos aiatolás. Há que se ter em conta que nosso presidente não é apenas mais um na cena internacional. Longe disso. Pode ser que Lula não tenha descoberto o Brasil, como tantos de seus críticos apontam em suas falas, principalmente aquelas de improviso, mas é certíssimo afirmar que o mundo descobriu Lula. E, por tabela, o mundo focou o olhar sobre o Brasil. O país deixou de ser visto como aquele país do futuro inatingível para vir a ser o país do presente; e no máximo o país do futuro próximo, coisa de 10, 15 anos, não mais do que isso.


Como Lula foi descoberto pelo mundo? Por sua história de vida e por suas falas, sempre em defesa dos injustiçados, dos miseráveis, dos anônimos, sejam eles brasileiros ou indianos, ugandenses ou haitianos, paquistaneses ou angolanos. Ainda hoje é citado como o pai do programa Fome Zero, programa que morreu durante o parto que trouxe à luz o Bolsa-Família, em versão ampliada. Depois disso foi só correr para o aplauso, isto é, para receber prêmios, a maneira palpável, física, com que o mundo lhe reverencia.


Em 2007 recebeu o Prêmio Nehru. Em 2008 recebeu em Paris o Prêmio Félix Houphouët, oferecido pela Unesco, um prêmio que segundo lembrou Alioune Traoré durante a cerimônia na sede da Unesco ‘ao menos um terço dos vencedores anteriores ganhou depois o Prêmio Nobel da Paz’. No mesmo ano foi à Espanha receber o 1º. Prêmio Internacional Dom Quixote de La Mancha. Em 2009, Lula ser premiado virou lugar comum: recebeu em Paris o 1º World Telecommunication and Information Society Award; em Londres, depois de participar de encontro com a rainha Elizabeth II, no Palácio de Buckingham, o Prêmio Chatham House 2009 por sua atuação na América Latina; e em Nova York foi agraciado com o Prêmio Woodrow Wilson for Public Service. Ainda na cidade americana, em solenidade na sede da Organização das Nações Unidas, recebeu de Federico Mayor Zaragoza o Prêmio Sucesso Internacional (ISP, na sigla em inglês).


É pouco? Então, tem mais. Em Roma, durante a Cúpula Mundial da Alimentação das Nações Unidas recebeu o Prêmio Contra a Fome, da ActionAid, e um par de luvas de boxe pelo sucesso na luta contra a fome no Brasil. Neste 2010 recebeu um prêmio inédito no Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça: Estadista Global. Justificativa: Lula foi eleito para o prêmio por ser um líder político que usou o mandato para melhorar o mundo. Detalhe: foi a primeira vez que o Fórum concedeu um prêmio, em 40 anos de existência. E na segunda-feira (10/5), em Brasília, o diretor-geral do Programa Mundial de Alimentação da ONU entregou a Lula o prêmio de Campeão Mundial da Luta contra a Fome.


Além de todas estas distinções internacionais, o presidente brasileiro recepcionado pelo colega iraniano Mahmoud Ahmadinejad tem sido também amplamente bafejado pela mídia. Refiro-me à mídia internacional, é bom ressaltar. Em sua edição de 23/9/2009, a revista americana Newsweek afirmou ser Lula ‘o político mais popular do mundo’ e que ele era nada menos que a maior estrela da 64ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York. ‘As câmeras podem focar na personificação do americano descolado, Barack Obama, ou nos autocratas exibicionistas e despeitados como o iraniano Mahmoud Ahmadinejad e o venezuelano Hugo Chávez, mas a maior estrela disponível será o duro, barbado e ex-torneiro mecânico’, diz o texto.


‘É um longo caminho do faminto Nordeste do Brasil para a sala da Assembleia Geral das Nações Unidas, mas o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, conhece cada passo desse caminho’, afirmou a Newsweek, completando que o presidente ‘é considerado agora o líder de uma potência regional e um porta-voz autodesignado para as nações emergentes de todo o mundo’.


Para não ficar para trás, em sua edição de 29/4/2010 a Time, revista semanal de maior circulação no mundo, elegeu Lula um dos 25 líderes mais influentes do planeta. E no perfil publicado, escrito pelo controvertido cineasta Michael Moore, destaque é feito ao programa Fome Zero (praticamente substituído pelo Bolsa Família), citado como uma das conquistas para levar o Brasil ao ‘primeiro mundo’. A história de vida de Lula também é ressaltada por Moore, que chama o presidente brasileiro de ‘verdadeiro filho da classe trabalhadora da América Latina’.


Na prateleira


Com tanta exposição internacional, sendo tão reverenciado nos fóruns mais respeitáveis do mundo, é natural que o mundo cole o ouvido à boca de Lula em sua breve estada na capital iraniana. O que chama a atenção é que sendo aclamado pela mídia e pelo mundo da política, Lula esteja em um país cujo presidente tenha o desplante de afirmar que ‘o holocausto judeu jamais existiu’, que no Irã ‘não existem homossexuais (que isso é coisa do Ocidente)’ e em uma postura claramente belicista disse a quem quisesse ouvir que ‘Israel deveria ser varrido do mapa’.


Penso que os ouvidos do mundo gostariam de ouvir de Lula uma firme convocação ao presidente Ahmadinejad para que ele demonstre, com ações e não palavras, a adesão irrestrita da República Islâmica do Irã às cláusulas da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Com isso, dezenas de problemas seriam superados: direitos de expressão (jornais, revistas, rádios, tevês, internet), direitos de gênero (as mulheres não seriam discriminadas), direitos de crença (nenhuma religião seria proscrita), direitos de associação (clubes, sindicatos, templos, academias).


O mundo daí advindo seria muito melhor para se viver. E, quem sabe, Lula poderia aumentar sua sala de prêmios internacionais (sim, a essa altura já deve existir a sala dos troféus) com mais um: Campeão Mundial da Luta pelos Direitos Humanos.

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter