Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

O retrato da crise americana

Pela primeira vez em 70 anos, a nota de classificação de crédito conferida pela agência Standard & Poor’s para o risco da dívida dos Estados Unidos foi rebaixada de AAA para AA+. A medida, adotada na sexta-feira (5/8), foi conseqüência do aumento do limite do endividamento acertado entre a Casa Branca e o Congresso após meses de impasse sobre o orçamento. Parlamentares republicanos exigiam cortes de US$ 40 bilhões, enquanto os democratas queriam cortar US$ 33 bilhões. Os dois partidos divergiam ainda sobre quais setores sofreriam mais perdas. A negociação entre governo e oposição foi prejudicada pela radicalização comandada pelo movimento ultraconservador Tea Party. O acordo final evitou o calote da dívida externa, mas não a crise.

No primeiro dia útil após o rebaixamento, as principais bolsas de valores de todo o mundo registraram os piores índices desde a crise de 2008. O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, tentou acalmar os mercados e transmitir otimismo; disse que não precisa de uma agência de risco para afirmar que o impasse ocorrido em Washington nos últimos meses não foi construtivo. Para a presidente Dilma Rousseff, a medida da Standard & Poor’s foi precipitada. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (9/8) pela TV Brasil analisou a cobertura da imprensa brasileira sobre a crise econômica e política norte-americana e os possíveis reflexos para o Brasil.

Para discutir o assunto, Alberto Dines recebeu no estúdio de Brasília o cientista político David Fleischer. Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), Fleischer é norte-americano naturalizado brasileiro e tem mais de 20 livros publicados. Em São Paulo, o convidado foi Rolf Kuntz, articulista e repórter do Estado de S. Paulo. Jornalista há 50 anos, Kuntz passou por várias publicações, como Jornal do Brasil e Folha de S.Paulo, e é colunista do Observatório online. Há mais de três décadas escreve sobre política econômica e economia internacional. O programa contou também com a presença da jornalista Sandra Cohen, editora do jornal O Globo, no Rio de Janeiro. Sandra trabalha no jornal há mais de quinze anos e foi correspondente em Portugal.

Política ou Economia?

Antes do debate no estúdio, em editorial, Dines criticou a cobertura da imprensa na crise de 2008 e disse que a atual turbulência é reflexo daquele período. “Quando a imprensa deixa de questionar, trai seus compromissos com a sociedade. Se tivesse sido mais rigorosa em 2008, parte dos dissabores atuais teriam sido evitados. É preciso não esquecer que a agência Standard & Poor’s, que acaba de castigar Obama com a perda do triplo “A”, nunca foi cobrada pela incapacidade de prever o que aconteceria em 2008.Aqui é preciso examinar os procedimentos jornalísticos antes do dia 2 de agosto, quando venceu o prazo para a ampliação do teto para o endividamento dos EUA: o noticiário foi todo transferido para as páginas de economia mas o problema era fundamentalmente político: a intransigência do Tea Party, falange da ultra-direita”, avaliou.

Ainda antes do debate ao vivo, a reportagem produzida pelo Observatório mostrou diversas opiniões. Reinaldo Gonçalves, professor de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), comparou o desenvolvimento da crise ao movimento de um trem: “Os Estados Unidos são a locomotiva do sistema econômico internacional e o Brasil é um vagão. Quando a locomotiva desacelera significa que, em primeiro lugar, ela compra menos da gente e a nossa renda cresce menos. Outra coisa é que ela tenta vender mais para nós, e isso significa que a gente vai vazar a nossa renda para os Estados Unidos”. Há ainda, na opinião do professor, outro mecanismo importante: os fluxos de capitais. O mundo financia o Brasil e, com a crise, há menos dinheiro para bancar a “farra de gastos que o Brasil está envolvido”.

Para o economista Sérgio Besserman, ainda não é possível avaliar a influência dos movimentos ultraconservadores no campo político, mas deve-se observar que a imprensa brasileira não tem enfatizado como deveria o impacto do Tea Party na mídia dos Estados Unidos. “Eles têm muito apoio midiático, eles vão até as raízes americanasmais profundas tendo por detrás uma fonte avassaladora de disseminação das suas opiniões, seja por meios mais modernos, na mídia eletrônica, da internet, seja dos velhos meios de comunicação”, ressaltou Besserman. Momentos de crise econômica e de elevado desemprego, na avaliação do economista, são períodos propícios ao crescimento de extremismos políticos, principalmente de direita, que se opõe aos imigrantes muitas vezes com fundamentos racistas.

Radicalismo na berlinda

“Nós temos assistido ao crescimento deste movimento ‘territorialista’ na Europa. O Tea Party nos Estados Unidos é parecido. Uma das lições que aprendemos dos anos 1930 é que não se deve contemporizar”, sublinhou Besserman. A vida política exige tolerância, mas teses radicais merecem enfrentamento político firme: “Não é garantido que este tipo de movimento vá fazer mal, mas é garantido que ele pode fazer se não houver uma reação”.

Na avaliação do jornalista William Waack, do ponto de vista político o Tea Party é formado em grande medida por pessoas irresponsáveis que não levam em conta as conseqüências das suas exigências para os Estados Unidos. “Não me parece que sejam reivindicações racionais se a gente considerar como racional uma conta mais ou menos equilibrada de custo-benefício”, disse. No entanto, Waack acredita que é um exagero considerar que esse movimento seja uma ameaça ao sistema capitalista. “O Tea Party tem a sua importância no campo dos valores e das idéias, não importa que a gente esteja de acordo com as idéias e valores que eles defendem”, ponderou.

Clóvis Rossi, colunista da Folha de S.Paulo, classificou o comportamento do Tea Party como “fundamentalista” e de “Estado-fobia extremado”. O jornalista acredita que, por conta da fragilidade da recuperação da economia norte-americana, é um “tiro no pé” a postura de exigir cortes de gastos e o bloqueio das tentativas de elevar as receitas dos Estados Unidos. “Em cima deste fundamentalismo veio o fundamentalismo da Standard & Poor’s, hoje até criticado por agentes de mercado. No momento em que você tem a turbulência dos mercados, você rebaixa a nota americana, evidentemente na segunda-feira ia ser o pânico que se viu em todo o mundo, batendo forte no Brasil”, comentou o colunista. Mesmo descartando teorias conspiratórias, Rossi acredita que por trás da atitude a agência de classificação há uma espécie de tocaia para o presidente Obama ficar com a marca do único presidente dos Estados Unidos a perder o triplo A.

De olho nas eleições

No debate ao vivo, Dines comentou que durante a maior parte do tempo a crise foi coberta apenas pelos cadernos de Economia, porém é um confronto político e ideológico de grandes proporções. O cientista político David Fleischer concordou que o problema pertence ao âmbito político, uma vez que o objetivo dos republicanos é derrotar o presidente Obama nas eleições de 2012, mesmo que o preço seja arrastar a economia americana “para o bueiro”. Ao reduzir os gastos com o sistema de Previdência Social e a área de saúde, atinge-se mais da metade do eleitorado. Fleischer relembrou que em 1995 o então presidente Bill Clinton chegou a suspender os pagamentos dos aposentados porque o orçamento não havia sido aprovado. Com medo da reação da população, os republicanos voltaram atrás a aprovaram o orçamento. “A mesma coisa pode acontecer em 2012, o feitiço pode virar contra os feiticeiros do Tea Party”, advertiu Fleischer.

Fleischer explicou que o Tea Party é uma facção dentro do Partido Republicano que conseguiu eleger seus deputados em 2010 derrotando republicanos menos conservadores nas eleições primárias. E, em alguns distritos, derrotaram democratas mais liberais. Na avaliação de Fleischer, o debate político norte-americano está extremamente polarizado. “O objetivo dos republicanos é derrotar o Obama e ganhar a presidência em 2012”, disse. O cientista político chamou a atenção para o fato de que a proposta sobre o limite da dívida e os cortes de gastos foi costurada pelos líderes dos dois partidos no Senado e na Câmara e, mesmo assim, os integrantes do Tea Party votaram contra. Este fato mostra como o Partido Republicano está dividido e esta situação deve perdurar durante o próximo ano.           

Há uma “demonização” dessa facção republicana, de acordo com Rolf Kuntz. Os críticos do Tea Party estão exagerando a importância do movimento no desfecho da negociação para a elevação do teto da dívida dos Estados Unidos, pois não é a única corrente que tem interesse em colocar o presidente Obama em uma posição desconfortável nas próximas eleições. “O interesse é de todo o Partido Republicano. É preciso levar isto em conta”, sublinhou. Focar as críticas unicamente nessa corrente política é desconhecer os outros problemas e atores políticos envolvidos no processo. Dines perguntou a Rolf Kuntz se a mídia brasileira está conseguindo mostrar uma visão “transcendental” da crise econômica ou se está se detendo apenas no sobe-e-desce das cotações das bolsas de valores. Kuntz acredita que os leitores que acompanham o noticiário pelos cadernos de Economia estão dispostos a fazer um esforço adicional em busca de informações mais complexas do campo político.

O peso da polarização

O jornalista enfatizou que a decisão de rebaixar a nota de crédito foi tomada na sexta-feira e estampada nos jornais do dia seguinte, mas os detalhes políticos só foram divulgados posteriormente. A nota comunicando o rebaixamento deixou claro que o fundamento da decisão era político e não fiscal. “O argumento decisivo e que aparece em primeiro lugar na nota é que entre o dia 11 de abril, quando a agência pôs em observação com viés negativo a situação americana, e o momento do acordo a situação política se deteriorou”, disse Kuntz.

A editora de Internacional do jornal O Globo Sandra Cohen destacou que o Tea Party tem sido tema de reportagens desde a sua criação e que agora o assunto migrou para a área de Economia por conta da votação do orçamento. “O debate político americano sempre foi muito polarizado. Desta vez, a gente viu uma radicalização deste debate”, analisou Sandra. Para a jornalista, este movimento representa um problema para os republicanos e no próximo ano, durante a campanha eleitoral, ficará mais evidente pois o partido terá uma forte divergência interna no momento de escolher o seu candidato à Presidência, ao contrário dos democratas. “E aí é que nós vamos ver qual é o peso desta radicalização”, disse.

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Crise, economia e política

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV n. 605, exibido em 9/8/2011

A imprensa sabe reviver a história; muitas vezes, porém, não sabe vivê-la. Testemunhá-la. A cobertura da crise de 2008 foi claudicante, sobretudo porque a imprensa mundial, a reboque da americana, apostava todas as fichas na pronta recuperação da economia.

O preço desse otimismo prematuro, infundado, está sendo pago agora, dois anos depois, quando se juntaram os destroços da crise anterior – a recessão dos Estados Unidos – com a crise fiscal nos países da União Europeia.

Quando a imprensa deixa de questionar, trai seus compromissos com a sociedade. Se tivesse sido mais rigorosa em 2008, parte dos dissabores atuais teriam sido evitados. É preciso não esquecer que a agência Standard & Poor’s, que acaba de castigar Obama com a perda do triplo “A”, nunca foi cobrada pela incapacidade de prever o que aconteceria em 2008.

Aqui é preciso examinar os procedimentos jornalísticos antes do dia 2 de agosto, quando venceu o prazo para a ampliação do teto para o endividamento dos EUA: o noticiário foi todo transferido para as páginas de economia mas o problema era fundamentalmente político: a intransigência do Tea Party, falange da ultradireita.

O leitor das páginas de Economia é geralmente um empresário mais interessado em sair do vermelho do que encarar as sutilezas do processo político. Só nas últimas semanas é que colunistas do porte do prêmio Nobel Paul Krugman começaram a chamar a atenção para os aspectos políticos do impasse econômico, sugerindo, inclusive, que o rebaixamento dos Estados Unidos pela Standard & Poor’s pode ter motivações políticas.

O crash de 1929 reforçou os movimentos fascistas europeus. Isso é um dado que não deve ser esquecido. A economia não anda sozinha e geralmente está mal acompanhada.