Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O técnico Zangado

Que o treinador da seleção brasileira não tem jogo de cintura com as críticas todos já sabiam, antes mesmo da convocação do time para a Copa do Mundo na África do Sul. Sempre arredio ao contato com a imprensa, Dunga deixou claro que a relação com os jornalistas durante o campeonato seria apenas protocolar. Proibidos de conceder entrevistas exclusivas, jogadores e comissão técnica vivem uma ‘lei da mordaça’ informal. Também não foi surpresa a implicância com os humoristas. Às vésperas da convocação, Dunga chamou a polícia para retirar da porta de sua casa integrantes do programa Legendários, da Record. Logo depois, programas de humor foram vetados das entrevistas coletivas e proibidos de acompanhar os treinos da seleção. O único autorizado foi o CQC, da Rede Bandeirantes, por ser jornalístico.


Mas o destempero mostrado pelo comandante da seleção durante o jogo contra a Costa do Marfim no domingo (20/6) e os palavrões dirigidos à imprensa na entrevista coletiva após a partida surpreenderam a mídia brasileira e ganharam repercussão internacional. Uma punição ao técnico – como a imposta ao treinador da seleção argentina, Diego Maradona, durante as eliminatórias para o mundial – chegou a ser estudada, mas a Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa) decidiu não abrir um processo disciplinar contra o treinador. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (22/6) pela TV Brasil discutiu a polêmica relação do técnico com jornalistas e humoristas.


Galvão e vuvuzela


Participaram do debate no estúdio, em São Paulo, Marcelo Tas e Eugênio Bucci. Jornalista, ator e roteirista, Tas é o âncora do programa CQC, da TV Bandeirantes. Foi repórter e colunista na Folha de S.Paulo e em O Estado de S.Paulo. Na TV, criou o repórter ficcional Ernesto Varela e a série infantil Rá-Tim-Bum. Bucci é professor-doutor da Universidade de São Paulo (USP), colunista deste Observatório e do Estado de S.Paulo. Foi secretário editorial da Editora Abril, presidente da Radiobrás e conselheiro da Fundação Padre Anchieta, que administra a TV Cultura. No Rio de Janeiro, participou o cartunista, escultor e roteirista Ique. Chargista do Jornal do Brasil há mais de 20 anos, Ique é autor-roteirista do humorístico Zorra Total, da TV Globo.


Antes do debate no estúdio, o apresentador e mediador Alberto Dines discutiu temas recentes de destaque na mídia. O primeiro assunto da seção foi a rápida disseminação da frase ‘Cala a boca, Galvão’ na rede de microblogs Twitter. ‘Um vídeo falso dizia que se tratava de uma campanha para salvar um papagaio da extinção. Com isso, a mensagem chegou a ser a mais tuitada no mundo inteiro’, explicou. Em seguida, comentou a participação de um músico profissional em um programa da BBC para mostrar que o som vuvuzela pode ser agradável.


Dunga vs. mídia


Em editorial, Dines disse que, para Dunga, ‘humoristas não são jornalistas e, sendo assim, podem ser barrados na concentração’. O jornalista avalia que, a partir deste precedente, foi ‘instalado um autêntico sistema de intimidação e censura’. O técnico não gosta de ser contestado e não tolera a imprensa porque a função desta é, justamente, indagar. ‘A rigidez que se viu no início dos dois jogos da seleção reflete claramente um comando pouco maleável, que contraria frontalmente a essência do futebol brasileiro, onde as táticas são temperadas pela criatividade’, disse.


A reportagem produzida pelo Observatório mostrou que a relação de Dunga com os programas humorísticos já era conturbada antes mesmo da convocação dos jogadores. Por conta das limitações impostas por Dunga, o Casseta e Planeta, da TV Globo, decidiu ficar no Brasil. A equipe avaliou que, se não tivesse acesso aos jogadores, o investimento não compensaria. ‘O que pesou para a gente não ir para a África foi basicamente este sistema de ‘concentração de segurança máxima’ que o Dunga está promovendo. É um cara muito mal humorado, não dá bom dia para ninguém’, reclamou o humorista Hélio de La Peña.


Restringir a troca de informações e as piadas, na opinião do humorista, é ‘uma tremenda bobagem’ porque quem está em evidência sabe que será alvo de brincadeiras. ‘O que desperta a vontade de implicar com o Dunga é a maneira como ele arma a seleção. Aquilo, realmente… Ele não quer nenhum tipo de alegria nem dentro de campo, nem fora dele. Ele não quer que os humoristas façam piada. O único que pode fazer piada é ele, quando bota um time sem criatividade em campo. Isso, realmente, dá uma vontade louca de zoar com ele’, disse Hélio.


Cultura brasileira


Para o humorista, futebol, samba e humor combinam. ‘Essa coisa de querer achar que futebol é uma coisa séria e sisuda é uma tremenda bobagem. Esses treinos secretos do Dunga… não sei o que ele está tentando esconder. Não sei se é o figurino que ele usa. A última notícia que eu tive é de que ele fez um treino tão secreto que proibiu até os jogadores de irem’, brincou. Chico Caruso, cartunista do jornal O Globo, comentou que Dunga é ‘carregado e sem cintura’. Um ‘prato cheio’ para os humoristas, desde o cabelo despenteado até o figurino elaborado pela filha.


Para o jornalista Guilherme Fiuza, autor da recém lançada biografia do humorista Bussunda, a situação é um retrocesso. Fiuza lembrou que, desde 1994, quando começou o credenciamento oficial de humorísticos, os técnicos da seleção não tentam limitar a atuação desses programas. Parreira, Luiz Felipe Scolari e Zagallo são exemplos de treinadores que aceitaram as piadas. ‘Zagallo foi forjado no ambiente do futebol ainda na ditadura militar. É um cara que poderia ter hábitos ou princípios que poderiam levá-lo a querer cercear. No entanto, não fez isso. Aceitou a crítica’, afirmou.


O jornalista e humorista Ricky Goodwin, roteirista do Casseta e Planeta, ressaltou que humor e futebol são elementos tão entrelaçados que é impossível separá-los. ‘O brasileiro criou o seu estilo de futebol exatamente quando decidiu brincar com a bola’, argumentou. Ricky considera tolo o argumento de Dunga de que o humor passou dos limites. ‘A função do humor é passar dos limites. O humor tem que ser crítico. Até existe, mas não tem validade o humor a favor’, disse. Dunga, na opinião de Ricky, quer controlar os jogadores dentro e fora do campo, os jornalistas e até as piadas.


O peso do passado


Antônio Nascimento, editor de Esportes do jornal O Globo, criticou o discurso patrioteiro de ‘ame-o ou deixe-o’ de Dunga. É um discurso ‘velho, horroroso, já ultrapassado’. Daniel Bortoletto, editor regional do jornal esportivo Lance!, sublinhou que a imprensa tem que dizer que o Brasil jogou mal e Dunga não pode se chatear com isso. O treinador ‘se apega’ muito ao passado e o rancor transforma as entrevistas em uma guerra contra a imprensa. As barreiras impostas por Dunga prejudicam também a relação com os patrocinadores da seleção. Gilmar Ferreira, editor de Esportes do Extra, contou que, das oito páginas reservadas para as notícias sobre a atuação do Brasil na África do Sul, no máximo três são preenchidas.


Wellington Campos, repórter enviado pela Rádio Itatiaia à África do Sul, explicou que o único contato da imprensa com os jogadores é na véspera e após o jogo. Mesmo assim, é um encontro rápido porque há mais de 200 jornalistas de todo o mundo concorrendo pelas notícias. ‘Aquele contato de puxar o cara em um canto e fazer quatro ou cinco perguntas para ele, isso acabou’, disse. Wagner Menezes, repórter da rádio Tupi, comentou que o jogador Robinho foi repreendido pela comissão técnica por ter concedido uma entrevista fora do horário após passear em um shopping.


Cobertura séria


No debate no estúdio, Dines perguntou aos participantes a razão da atitude ‘zangada’ de Dunga em relação à imprensa e aos humoristas. Marcelo Tas questionou se a mídia em geral não estaria sendo muito séria na cobertura da Copa do Mundo. Para ele, as discussões parecem um ‘congresso de física quântica’. ‘O pessoal fica analisando a panturrilha do Elano, o púbis do Kaká, não me parece que a gente está falando de futebol’, disse. É preciso, na opinião de Tas, inverter o ângulo. ‘Se o Dunga está sendo tão zangado, será que a gente não está sendo zangado demais com o Dunga?’. Ique ponderou que ninguém está levando a sério demais o futebol: ele é a alma do povo brasileiro. ‘O coração do brasileiro pula com a Jabulani’, avaliou.


Bucci afirmou que é difícil separar humor de jornalismo e criticou o espetáculo comercial que a Copa do Mundo se tornou. ‘Isso faz com que, cada vez mais, a cobertura, além de jornalística, fique como um programão de auditório, um grande reality show‘, disse. Tas comentou que outras seleções – como a do midiático técnico Diego Maradona – também impõem restrições ao acesso aos jogadores. ‘A Copa do Mundo é um show. Até as entrevistas são encenadas para ser um show, com [a marca dos] patrocinadores atrás’, ressaltou. Para driblar a falta de espaço para a imprensa, é preciso criatividade. ‘O espaço antes era meio anárquico. Eu cobri algumas Copas em que todo mundo entrava no treino. Agora é mais controlado e isto exige mais criatividade’, explicou.


Guerra


Ique sublinhou que a necessidade de Dunga em agredir os jornalistas é muito maior do que a necessidade de armar um time realmente criativo para colocar em campo. ‘O Dunga acha que virou o centro do universo’, criticou. Bucci disse que Dunga vira o personagem central da vida pública brasileira durante a Copa. ‘A gente evoluiu – ou involuiu – daquela caracterização da pátria de chuteiras para a chuteira como pátria’, disse. O poder subiu à cabeça do treinador, que está criando a estética de um estilo autoritário e intolerante.


Dines perguntou se o estilo guerreiro que Dunga incorpora na propaganda da cerveja Brahma cria uma espécie de tensão que se reproduz na atuação dos jogadores dentro de campo. Para Marcelo Tas, o comercial é de mau gosto. Não simboliza o futebol brasileiro, mas sim o argentino, ‘que gosta de drama e derrota’. Ique destacou que o treinador não convocou os craques santistas Neymar e Ganso para não correr o risco de levar o bom humor para dentro de campo. Bucci comentou que o futebol, naturalmente, adota uma linguagem bélica em termos como ataque, retaguarda, tiro de meta. E Dunga leva a sério as metáforas. ‘Ele é um pouco o chefe político e militar. É como se estivesse comandando a invasão da Normandia’, comparou.


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Humor e Copa do Mundo


Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 551, no ar em 22/6/2010


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


Há um bom tempo o verbo tuitar vem sendo conjugado ao redor do mundo. As mensagens curtinhas se disseminam numa velocidade incrível. Que o diga Galvão Bueno. A frase cala a boca, Galvão correu o mundo graças a uma gaiatice de brasileiros. Um vídeo falso dizia que se tratava de uma campanha para salvar um papagaio da extinção. Com isso, a mensagem chegou a ser a mais tuitada no mundo inteiro. O New York Times e o El País deram matérias explicando a história. E até o próprio Galvão Bueno entrou na brincadeira.


E a vuvuzela, som em forma de pesadelo para todos os jornalistas que cobrem a Copa do Mundo, ganhou destaque em um jornal da emissora britânica BBC. A produção do telejornal convidou um músico profissional para mostrar que, ao invés de poluição sonora, o cornetão poderia emitir sons bem mais agradáveis.


O anãozinho da Branca de Neve era uma gracinha, mas não falava. O nosso chama-se igualmente Dunga, mas não chega a ser uma gracinha: não gosta que os outros falem. Não gosta nem de risos ou sorrisos.


A implicância do técnico da nossa seleção com a imprensa começou quando ele estabeleceu a doutrina segundo a qual humoristas não são jornalistas e, sendo assim, podem ser barrados na concentração. Começou assim a clássica dinâmica da censura: proíbe-se uma coisinha aqui, outra ali e de repente está instalado um autêntico sistema de intimidação e censura.


As grosserias e agressões de Dunga aos jornalistas nos últimos dias não podem ser creditadas apenas a surtos ocasionais de mau humor. Na realidade, Dunga não gosta de ser arguido, questionado e contestado. E, como a função dos jornalistas é justamente arguir, questionar e contestar, Dunga evidentemente não gosta da imprensa. Nem da sátira, nem do humor.


Esta tensão transcende o campo dos relacionamentos e se transfere aos próprios esquemas táticos adotados pelo técnico. A rigidez que se viu no início dos dois jogos da seleção reflete claramente um comando pouco maleável, que contraria frontalmente a essência do futebol brasileiro, onde as táticas são temperadas pela criatividade.


Enfrentar o bom humor com o mau humor geralmente produz espetáculos de péssimo gosto.