Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O capital vai à guerra

A grande mídia não sabe o que fazer com as guerras. Nega-se terminantemente a cobri-las e analisá-las do ponto de vista econômico enquanto atividades econômicas destrutivas, como necessário complemento das atividades produtivas, sob o capitalismo, no pós-laissez faire de 1929.


Seria reconhecer que a destruição sistemática das guerras, na produção de não-mercadorias (produtos bélicos e espaciais), mediante gastos governamentais, tornou-se fundamental para as atividades produtivas, indispensáveis à reprodução do sistema.


A destruição se transformaria em oxigênio para a sobrevivência da criação? Esse é o preço para o capitalismo conseguir uma situação de relativo pleno emprego, como disse Keynes, em 1936, em artigo no New Republic destacado em A crise da ideologia keynesiana, de Lauro Campos.


‘Penso ser incompatível com a democracia capitalista que o governo eleve seus gastos na escala necessária para fazer valer a minha tese – o pleno emprego – salvo em condições de guerra. Se os Estados Unidos se insensibilizarem para a preparação das armas, aprenderão a conhecer a sua força.’


Escudo bélico-espacial


Portanto, segundo Keynes, o maior economista do século 20, é a economia de guerra, a produção de mercadorias destrutivas, ou não-mercadorias, assim caracterizadas por Lauro, que puxa a demanda global, de modo a sustentar, contraditoriamente, a sobrevivência dos setores produtores de mercadorias – bens de consumo e bens de produção –, mantendo-os sob relativa escassez, de modo a garantir taxa de lucro constante.


Do contrário, sem a destruição patrocinada pela economia de guerra, ou seja, sem a produção de não-mercadorias bancadas pelo dinheiro estatal, não haveria renda para dinamizar equilibradamente a produção de bens de consumo e bens de produção, já que, sob o laissez faire, entram em colapso recorrente de superprodução e deflação, que destroem a taxa de lucro.


Nada mais importante do que a guerra para a economia capitalista, que o jornalismo econômico literalmente desconhece em sua dinâmica interativa, dialética.


O exemplo gritante é a corrida espacial em curso. O presidente dos Estados Unidos, nesse momento, entra em conflito com o presidente da Rússia por conta da corrida armamentista no espaço do leste europeu. Bilhões e bilhões de dólares em jogo. Os russos não querem ingerência no seu espaço e ameaçam o oeste europeu se norte-americanos e europeus não mudarem de idéia. O escudo bélico-espacial que Bush quer construir representa demanda do governo norte-americano às grandes indústrias de mercadorias destrutivas.


Déficits de US$ 10 trilhões


Evidentemente, joga-se mais dinheiro estatal na destruição do que na produção, porque produzir a destruição tornou-se necessário à reprodução do capitalismo, segundo o raciocínio keynesiano que sustenta a Casa Branca – enquanto finge ser neoliberal, pregando equilibrismo macroeconômico para a periferia capitalista endividada. Contradições inerentes à reprodução capitalista global em convívio contraditório com a divisão internacional do trabalho, imposta, no pós-guerra, pelo dólar, cuja força está se esgotando.


A tendência do sistema à superprodução, no compasso do desenvolvimento científico e tecnológico, que aumenta a produtividade e a competitividade global, exige a superdestruição, para gerar relativa escassez, capaz de manter constante a taxa de lucro relativamente à taxa de juro. Malthus, Marx, Keynes e Schumpeter são unânimes nesse diagnóstico. Caso contrário, emerge a abundância da oferta relativa à demanda e os preços desabam. As guerras evitam os desabamentos dos preços.


O prêmio Nobel de economia Josef Stiglitz destacou, recentemente, que a guerra imperialista norte-americana no Iraque representa gastos superiores a 2 trilhões de dólares. Ele projetou, para cinco anos, desembolsos do governo norte-americano – déficits – de 10 trilhões de dólares, com a disseminação do conflito no Oriente Médio. Seria o suficiente para colocar de prontidão as indústrias bélicas e espaciais no sentido de produzir não-mercadorias destrutivas. Tremenda economia de guerra que não se vê retratada nos jornais e revistas, muito menos na televisão.


Complementos do laissez faire


Stglitz destacou que as guerras são fundamentais para o capitalismo gerar renda na produção da destruição que se destina ao consumo de bens de produção e de consumo. O FMI já disse também que a disseminação de pequenas guerras ajuda o sistema capitalista a reproduzir suas forças, naturalmente, destrutivas. Detalhe: ‘pequenas guerras’. As grandes são um perigo, envolvem os grandes, que evitam brigar entre si. Lauro Campos destaca que a economia de guerra cria a renda sem aumentar a produção, que poderia, sem a guerra, elevar-se e autodestruir-se, no ambiente da concorrência global exacerbada.


A corrida espacial no espaço do leste europeu, que, certamente, incomodaria os vizinhos, como a China, que, também, está na corrida armamentista, é a grande pauta econômica que a mídia capitalista se recusa a cobrir por entender ideologicamente que esse setor não diz respeito à economia real.


Os jornais o tratam como tratam a economia meramente financeira, como se ela estivesse ao largo da realidade. A chamada economia real não se misturaria nem com a economia financeira nem com a economia guerreira. No entanto, elas estão imbricadas.


A especulação financeira e a corrida armamentista, que sobrevivem da moeda estatal inconversível, pois seus ganhos se dão em cima do endividamento governamental, são complementos necessários do capitalismo do laissez faire, que não sobrevive apenas do equilíbrio da produção dos bens de consumo (D2) e dos bens de produção (D1).


Tensões progressivas


O jornalismo econômico nacional está no século 19, quando o capitalismo vivia sob a chamada economia bisetorial, em que D1 – setor produtor de bens de produção – e D2 – setor produtor de bens de consumo – preponderavam, sob o padrão-ouro, metálico, até que as contradições do sistema monetário metálico foram pelos ares, exigindo socorro de um novo setor que entrou em cena: D3, o governo. Como capital emissor, passou a puxar a demanda global em decorrência da falência do laissez faire, isto é, de D1 e D2.


Ambos, deixados ao livre curso das forças produtivas, ao livre jogo competitivo, se autodestruíram. Caíram no mundo da deflação, no qual a taxa de lucro cai a zero ou abaixo de zero, no curso de uma só geração, como alertou Keynes. A deflação é um erro eterno, disse.


D3, que o jornalismo econômico não leva em consideração por entender que ele, ou seja, os gastos do governo, é algo que rola no exterior da realidade dos setores de produção de bens de consumo (D2) e de bens de produção (D1), é, na verdade, o dínamo do capitalismo, como comprova a disposição cada vez mais agressiva do governo norte-americano de ir em frente com a economia de guerra, expressa, atualmente, em duas frentes: primeiro, agressão ao Iraque; segundo, insistência na corrida espacial no cenário do leste europeu e asiático.


Criam-se, simultaneamente, tensões progressivas, tanto no Oriente Médio como no Leste e no Sudeste Asiático, em quantidade suficiente que assegura, graças aos gastos governamentais, a crescente antecipação da eficiência marginal do capital (lucros) aos fabricantes de armas.


Transferência dos problemas


Certamente, a situação está mudando porque a capacidade de endividamento norte-americano desperta desconfiança generalizada na praça global, que se traduz na desvalorização do dólar, do qual todos fogem para buscar outros ativos mais seguros em todas as partes do mundo, especialmente, onde existe juro alto, como no Brasil.


Demonstra tal fragilidade relativa dos Estados Unidos, dada pela desconfiança do mercado na capacidade de endividamento norte-americano, que há limite para Washington continuar sangrando a poupança mundial, para transferir renda aos terceiros setores (D3) que produzem para a guerra bancada pelo tesouro norte-americano.


Para os países mais pobres, a solução keynesiana expressa em D3 não existe mais, enquanto ela persiste como principal arma de ação do governo norte-americano na sustentação da guerra. Solução de rico que pobre não pode mais ter acesso. Lula, no entanto, fala em rearmar as forças armadas, seguindo os mesmos passos de Bush, no norte, de Hugo Chávez, no sul, assim, como, também, tal solução se eterniza no Oriente Médio.


A economia de guerra, de um lado, deixou de ser solução para os países capitalistas periféricos endividados e, de outro, continua sangrando a periferia, porque é da periferia que sai o dinheiro que banca a guerra, por meio das transferências dos problemas – dos pobres para os ricos – que levam ao dólar barato, como preço para sustentar a economia guerreira, a única, segundo Keynes, capaz de assegurar o pleno emprego capitalista.


Hora da humildade?


Onde está o jornalismo que estuda a guerra do ponto de vista econômico e financeiro, de modo a mostrar a realidade dos fatos, que demonstram o claro-evidente: o capitalismo necessita da guerra como arma de dissuasão das forças produtivas que, sob intenso desenvolvimento científico e tecnológico, não cabem mais nos limites estreitos do próprio sistema capitalista?


Não é apenas a falência de D1 e D2 que emerge, como aconteceu em 1929; é também a falência de D3, que entrou no jogo econômico com a moeda estatal, depois do crash de 29, para salvar D1 e D2. Agora, no entanto, suas forças demonstram esgotamento, dada a desconfiança dos mercados nos grandes déficits, seja dos países ricos, seja dos países pobres.


A solução é intensificar a guerra para ir empurrando com a barriga uma situação explosiva ou chegou a hora da humildade para convocar tanto os estruturalistas como os monetaristas, eternos adversários em torno das suas verdades relativas, para ver o óbvio: novo paradigma se impõe com a necessidade de que ambos os contendores flexibilizem suas ideologias fracassadas, a fim de buscar uma nova? Ou o negócio é ir mesmo aos limites da eternidade guerreira, enquanto se finge que se busca a paz?


Retrato de Dorian Gray


Qual a tarefa do jornalismo nesse contexto: mostrar que as ideologias construídas no espaço da subjetividade faliram, fazendo boas investigações sobre o fenômeno da guerra, ou continuar perdido no mecanicismo ideológico de pautar a cobertura da economia como se o capitalismo ainda fosse, meramente, bisetorial, dependente de D1 e D2, enquanto desconhece, historicamente, o papel de D3, isto é, a guerra?


Lamentavelmente, o pensamento ideológico maniqueísta-neoliberal-mecanicista impera, aprisionando as mentes em limites estreitos, fingindo a ilusão de que a guerra é uma mercadoria que não pode ser contabilizada no universo da produção e do consumo como formadora do PIB. Tal pensamento bate contra a realidade que mostra que a produção da destruição é indispensável para a sobrevivência da produção e reprodução das forças produtivas.


A escravidão do capital à ideologia da escassez relativa, para garantir sobrevivência do capitalismo em sua fase senil, é um retrato de Dorian Gray do qual a grande mídia foge por ver nele a sua própria face. Não foi à toa que Malthus considerou a economia – o capitalismo bisetorial, no qual não acreditava – uma ciência lúgubre. Imagine o que não estaria falando, com sua proverbial sinceridade, do colapso conjunto de DI+D2+D3!

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Jornalista, Brasília, DF