Monday, 18 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

O factóide como fenômeno

A capa da revista Veja com Ronaldo ‘Fenômeno’ pode ser considerada, em si mesma, um fenômeno de mídia. É, no mínimo, extraordinário que um incidente de tamanha banalidade possa suscitar um tratamento dessa magnitude por parte de uma publicação de âmbito nacional. Isto faz do imbroglio do jogador com os travestis uma espécie de questão nacional.

Por que isso ocorre? Uma resposta possível por parte da pauta jornalística imediata seria: a fama do craque justifica o interesse da mídia e de seu público. Mas é possível questionar esta perspectiva com a hipótese de que o ‘caso Ronaldo’ tenha adquirido tal abrangência, não por um natural interesse do público, e sim, pelo agendamento impositivo de um grupo profissional, o dos jornalistas. É um agendamento ‘mitologista’.

É preciso dar a esse tipo de ‘mito’ um sentido particular, que tem a ver, de fato, com as fantasias ideológicas criadas ou alimentada pela indústria da informação e do entretenimento. Um mito midiático – propunha Roland Barthes mais de meio século atrás – funciona, em resumo, do seguinte modo: uma forma real (palavra, imagem, ente) é semanticamente depurada, como uma casca de noz vazia, e preenchida por significações oriundas de um outro campo lingüístico, parasitário. Naturaliza-se assim o que é da ordem da História.

Um simulacro ativo

A ‘forma real’ Ronaldo é o craque em sua vicissitude histórica de sucesso profissional, enriquecimento, vida amorosa agitada e doenças sucessivas. Por outro lado, como outros jogadores célebres (Maradona, Ronaldinho Gaúcho etc.), ele passou por Barcelona, que é uma cidade sedutora em todos os sentidos. A sociabilização pela sedução ilimitada pode ter efeitos devastadores sobre almas simples elevadas ao panteão da fama.

Ronaldo, pelo que consta, é um rapaz simples do subúrbio carioca de Bento Ribeiro que se sociabilizou rápido demais na realidade movediça da celebridade. Nesse meio tempo, cresceu demais em imagem pop e jogou de menos no terreno popular, isto é, no gramado dos estádios. Como diria o espírito das massas, ‘está batendo um bolão, mas fora do campo’. Desde há muito tempo, não joga futebol realmente.

Então, o mito. No discurso da mídia, a história real do jogador é esvaziada em favor de uma semiose mitologista, que o entroniza como pop star. O público habituou-se a vê-lo em destaque na sua sucessão de namoradas, contratos milionários, sobre o pedestal de uma imagem midiática, um verdadeiro simulacro ativo, apropriado por marcas empresariais, em vez de um corpo humano real.

Um ciclo previsível

Uma forma vazia pode, entretanto, inflar-se como um balão e perder-se nos ares ou nos mares, sem nenhum GPS salvador. A mídia, que deu a forma e o gás para o ‘balão’, inflou-se agora também até os ares, sem que se possa mapear a situação real do craque. Para a Veja, é o início da decadência, similar à de Maradona. De fato, ao que tudo indica, são grandes os danos reais (prejuízo financeiro, transtorno emotivo etc.) e de imagem. Principalmente de imagem, porque é disto mesmo que se trata. O homem real/jogador, a suposta base da fama, não foi posto em questão. E decidir sobre a verdade do que se passou no motel entre o homem e os travestis não tem nenhuma relevância pública, é um balão publicitário – no mau sentido da expressão.

No limite, a mídia está falando de si mesma – e não do indivíduo Ronaldo. Tal é o verdadeiro fenômeno. Um sistema tecnicamente sofisticado, caro, de produção de discursos sociais – sinteticamente designado como ‘mídia’ – define-se cada vez mais como fenômeno autoconfirmativo: cria uma realidade por excesso de imagem e finge nela acreditar como objeto informativo, assim como a celebridade termina acreditando em suas refrações no espelho tecno-narcisista. O benefício suposto não é o esclarecimento, nem mesmo a orientação social, mas o aumento do índice de atenção expresso em números de tiragens e audiências.

Nessa mitologização desabrida, perdem-se o sentimento e o sentido real dos acontecimentos. E os simulacros se reproduzem à maneira de um vírus. Tão logo sobe ao ar um balão, outro aparece no horizonte virtual da mídia, gerando um círculo nada virtuoso de sensações. O círculo tem um ciclo, temporalmente previsível: na iminência de cansaço do ‘caso Isabella’, por superexposição, tira-se o Ronaldo do banco de reservas.

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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro