Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O sangue e o horror revisitados

O governo de Salvador Allende entrou para a história no dia 11 de setembro de 1973, quando jatos da Força Aérea chilena bombardearam a sede do governo levando o presidente socialista ao suicídio. Começava um novo ciclo da história do Chile. Allende e o governo da Unidade Popular foram surpreendidos pelo golpe, que se anunciava desde que o socialista foi eleito e assumiu o poder, em novembro de 1970. Aquele 11 de setembro inaugurou anos de chumbo no país que tinha a reputação de contar com as Forças Armadas mais legalistas do continente.

Para marcar os 40 anos do golpe militar a imprensa francesa publicou entrevistas, artigos e mesmo cadernos especiais sobre o Chile. Numa das entrevistas do Le Monde, o cineasta Patricio Guzman, autor da premiada trilogia A batalha do Chile, filmado entre 1973 e 1979 – obra monumental que cobre os três anos da presidência de Salvador Allende –, diz que o presidente socialista nunca reivindicou a construção de uma “ditadura do proletariado”. O que não impediu que a dupla Nixon-Kissinger decretasse, de Washington, a morte da primeira experiência de um socialismo democrático na América Latina.

A batalha do Chile foi considerado pela revista americana Cineaste como um dos dez melhores filmes políticos do mundo. Guzman – que realizou ainda duas obras em torno da história recente de seu país, o maravilhoso documentário sobre Allende (Salvador Allende) e o premiadíssimo Nostalgia da luz – viveu diretamente a repressão sangrenta do regime Pinochet: seu diretor de fotografia Jorge Müller Silva foi sequestrado, em 1974, pela polícia da ditadura. Müller Silva faz parte da lista de 3 mil pessoas “desaparecidas” no Chile.

Na entrevista, Guzman diz que durante o governo Allende 70% das emissoras de rádio e dos jornais eram de oposição ao governo da Unidade Popular. Ele destaca que, verdadeiro democrata, Allende nunca tentou impedir a livre circulação de nenhum órgão de imprensa. O cineasta lamenta que o Chile ainda não tenha realizado uma verdadeira reflexão nacional, um verdadeiro “trabalho de memória” sobre os anos da ditadura, como fez a Argentina.

Brasil campeão

Nos diversos balanços publicados na imprensa sobre o governo da Unidade Popular, que fez sonhar milhares de exilados brasileiros instalados no Chile depois do golpe no Brasil, a imprensa destacou o quanto a experiência chilena inspirava a esquerda francesa, que naquele início dos anos 1970 também buscava a união entre socialistas e comunistas. A “Union de la gauche” tinha como modelo o grande arco de alianças que levou Allende ao poder. François Mitterrand, então secretário-geral do Partido Socialista Francês, foi a Santiago ver de perto a experiência vitoriosa. Voltou entusiasmado. Mas apenas uma década depois, em 1981, a aliança com os comunistas deu bons frutos levando-o a conquistar o primeiro mandato de presidente.

Entre as diversas manifestações realizadas na França para marcar os 40 anos do golpe de Pinochet, o colóquio internacional “Chile, 11 de setembro de 1973: um evento mundial”, discutiu durante três dias seguidos diversos aspectos do golpe, do governo da Unidade Popular e do governo Pinochet. No colóquio, realizado em conjunto pela prestigiosa Sciences Po (Institut d’Etudes Politiques de Paris), Université Versailles-Saint-Quentin e pela Université Sorbonne Nouvelle-Paris 3, pesquisadores e professores universitários vindos de diversas partes do mundo abriram novas janelas na percepção da história recente do Chile. O pré e o pós-golpe, com a implantação de uma política econômica liberal que criou o que se passou a chamar de “modelo chileno” implantado pelos “Chicago boys”, tudo foi minuciosamente debatido no colóquio que teve a participação de um dos mais conhecidos e prestigiosos sociólogos franceses, Alain Touraine.

Num grande debate aberto a perguntas, Touraine destacou momentos e aspectos da história chilena. Em uma frase sobre as desigualdades, ele ressaltou: “Mas o campeão de desigualdades sociais foi sempre o Brasil. Ele acaba de perder seu título com as políticas sociais de Lula, mesmo que elas ainda sejam insuficientes. Mas o Brasil continua sendo um país de corrupção no qual o tecido social continua gangrenado por esse mal”.

A Argentina foi apontada pelo sociólogo como um país “que pratica um autoboicote permanente”, fazendo o que pode para impedir seu próprio desenvolvimento.

Um e outro

Um pesquisador de origem chilena constatou que, hoje, Pinochet é o chileno mais conhecido fora do Chile. “Mais que Allende, mais que Neruda”, disse ele. Ponderei com meus botões que Hitler deve ser o alemão mais conhecido fora da Alemanha, mais que Goethe, mais que Bach. “It’s so, but what a pity it’s so”, como disse, a propósito do mundo tal qual existe, o grande escritor inglês Thomas Hardy.

No colóquio, aprendi duas coisas edificantes sobre Pinochet: primeiramente, que ele é o autor da frase sobre a “ditabranda”, proferida em 1983 para se referir à sua própria ditadura. “Esta não é uma ditadura, é uma ditabranda” diz ele, num vídeo que vimos em tela grande, numa das conferências do último dia.

Em segundo lugar, aprendi que o ditador, que se apresentou sempre aos chilenos como exemplo de austeridade e honestidade, detinha contas na Suíça em nome de diversos parentes. O detalhe mais divertido é que essas contas foram descobertas somente em 2003, como consequência do cerco às contas suíças feitas pelo governo dos Estados Unidos para explicar o financiamento dos atentados do 11 de setembro de 2001.

Um 11 de setembro ajudou os historiadores a conhecerem melhor o outro. A História acabou driblando o velho ditador. 

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Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris