Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Obsessão pelos ‘fantasmas’

Encerrada a 32ª Reunião de Cúpula do Mercosul (a grafia está consagrada, apesar de haver desajuste em relação às normas ortográficas da Língua Portuguesa, que exigiriam hífen ou a duplicação do ‘s’), impõe-se uma avaliação quanto ao enfoque conferido por alguns dos principais jornais do país, ao lado dos não menos importantes telejornais, ao encontro das lideranças políticas da América do Sul, realizado no Rio de Janeiro.

Tenho dúvidas se a imprensa pautou o acontecimento na medida adequada. A julgar pelo modo com que manchetes ocuparam as primeiras páginas, há forte suspeita quanto a um certo desvio. Ilustremos com alguns exemplos extraídos das edições de sábado (20/1):

** ‘Brasil vai ajudar Bolívia para neutralizar Chávez’ (O Globo);

** ‘Brasil vai de Bolívia contra Chávez’ (primeira página do caderno ‘Economia’ – (O Globo);

** ‘Brinde do Mercosul: o gás vai aumentar’ (Jornal do Brasil);

** ‘Integração abalada por rixas’ (Jornal do Brasil – A2/A3)

** ‘Países menores do Mercosul exigem tratamento especial’ (Folha de S. Paulo);

** ‘Cúpula acaba com críticas de pequenos e bate-boca’ (Folha de S. Paulo – A4).

Não é exercício indecifrável a tentativa de compreensão quanto às inclinações semânticas das manchetes. A primeira favorece o propósito de tensionar as relações entre os governantes do Brasil e da Venezuela e, por extensão, enfraquecer a parceria entre Morales e Chávez, ainda mais reforçada pela segunda. A terceira tenta acentuar, no leitor, a ameaça que Morales encarna contra os interesses brasileiros. A quarta põe em evidência a supremacia dos impasses contra os acordos. A quinta aposta no divisionismo a explorar as diferenças entre países ricos e pobres na América do Sul. A sexta, finalmente, reduz o encontro a coisa nenhuma.

Cautela necessária

Antes da questão que pretendo abordar, cabe o reconhecimento prévio do quanto contribuíram alguns chefes de Estado, ora com atitudes histriônicas, ora com discursos próximos da fanfarronice. A começar pelas corridas no calçadão de Copacabana, passando por alfinetadas retóricas e, por fim, o surrado clichê roteirístico, marcado pela exibição de alas e baterias de escolas de samba, a Reunião de Cúpula do Mercosul se encerrou sem sabermos quase nada a respeito dos reais propósitos que a fizeram existir. No tocante, pois, aos pontos narrados pela mídia, não há o que dela se cobrar. Afinal de contas, com algumas exceções, os principais líderes da América do Sul não perderam a oportunidade de reviverem cacoetes do caudilhismo.

O que, na verdade, faltou à mídia terá sido a sensibilidade em perceber a importância para os países do subcontinente, e, adiante, quem sabe, para o conjunto da América Latina, como única abertura possível na direção da formação de um efetivo bloco, à altura da fixação de políticas de integração e de intercâmbio, a despeito das diferenças – que não são poucas.

Compreendamos que a União Européia, até a implementação do projeto de unificação, percorreu inúmeros obstáculos, além de, por diversas vezes, adiar a padronização de sua moeda (euro). Muitos entraves, tanto econômicos quanto culturais, alimentaram rodadas de negociação. Não se pode, portanto, esperar que, na montagem do Mercosul, se alcance o propósito em ritmo acelerado. Não é improvável que a maturação necessária ao destino histórico do Mercosul requeira tempo superior a uma década. É nesse olhar de viés que a mídia (impressa e eletrônica), talvez premida pela excessiva carga de subordinação a fatos concretos, tenha negligenciado a percepção das mutações lentas que estão sendo processadas na América do Sul.

Há uma armadilha na qual a mídia brasileira se porta de maneira meio ingênua. Ela não sabe lidar ainda com o perfil de Chávez e, por extensão, seus fiéis escudeiros, a exemplo de Morales, Vásquez, Correa e o redivivo Ortega (este, da América Central). Digamos, grosso modo, que Chávez está para o olhar da América do Sul, assim como Mahmoud Ahmadinejad está para o contexto internacional. A propósito, a primeira página do caderno ‘Mais!’ (Folha de S.Paulo, 21/1) é bastante reveladora, ao dedicar, como chamada principal, a foto na qual se encontram, lado a lado e em clima amistoso, Ahmadinejad e Evo Morales, por conta da posse de Rafael Correa.

Exemplos de ‘esquerda-saúde’

O que se pretende observar criticamente é a seguinte indagação: em que aspectos, estruturais e estratégicos, Chávez representa um fantasma a abalar o mundo? Ele diz o que diz, mas o petróleo venezuelano permanece garantido para os Estados Unidos. Que obstáculos a figura de Chávez traz aos interesses da União Européia? Não é diferente o olhar do mundo para o Irã.

Não é igualmente preocupante a figura de Luiz Inácio Lula da Silva. O mundo do capital financeiro sabe muito bem neutralizar os perigos quando eles verdadeiramente surgem. Essa talvez não seja a leitura mais agradável aos fervorosos combatentes, o que não significa que se trate de uma inverdade histórica.

Em conclusão, pois, resta à mídia um comportamento menos enfático, no que diz respeito às ‘fantasmagorias’. Os ‘novos fantasmas’ não dispensam uma ‘corridinha marqueteira’ na orla de uma das praias mais famosas do mundo. Pelo calçadão, no frenesi da Reunião de Cúpula do Mercosul, como melhor exemplo da ‘esquerda-saúde’, desfilavam Morales, Uribe e Tarso Genro.

Em síntese, pois, a mídia deve temperar melhor o prato a ser servido aos receptores. Para tanto, convém não minimizar as tentativas de articulação quanto ao que envolve a ‘engenharia’ do Mercosul, bem como não maximizar as ‘marqueteiras’ manobras, sejam de Chávez, sejam de Morales, ou de outros mais cujo mapeamento já está feito.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ e professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)