Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Omissão apenas da imprensa?

Alberto Dines publicou no Observatório da Imprensa, em 27 de abril, um relato sobre a perseguição ao juiz espanhol Baltasar Garzón em seu país, por uma concertação de forças políticas, empresariais e religiosas que lhe movem seguidos processos por ‘prevaricação’ e ‘abuso de poder’ (ver ‘Opus Dei não quer o juiz Garzón na mídia brasileira‘). E fecha o relato com um comentário crítico, apontando a ausência desse assunto nos jornais e revistas do Brasil, em flagrante dessintonia com o resto do mundo, onde preenche as páginas de noticiário e empolga as de opinião, em defesa do corajoso juiz.


Não li, então, o texto de Dines. Tampouco observei a indicada abulia da mídia nacional. Isto porque estava na Europa, sem ler edições impressas de jornais e revistas do Brasil e com acessos intermitentes e curtos à internet. Mas pude observar que o assunto aparecia com mais ou menos destaque em todas as emissoras de TV noticiosas da Europa. E, como estive na Espanha, pude constatar que lá era tema de primeira grandeza, recebendo reportagens amplas, debates ao vivo, além de matérias e entrevistas com pessoas que não conseguem sequer enterrar seus mortos da guerra civil de 1936-39 e do terrorismo de Estado do regime de Franco.


São duas causas principais. Uma, que me parece um tanto fabricada, pretende inculpá-lo de prevaricação. Garzón esteve licenciado durante um tempo, anos atrás. Nesse período, deu aulas, organizou cursos e participou de eventos na Universidade de Nova York. Segundo alega, sua participação, remunerada, foi exclusivamente acadêmica. Um dos eventos para o qual ele contribuiu academicamente teve patrocínio do grupo Santander. Garzón alega que não participou das negociações que conduziram à concretização desse patrocínio e, especialmente, que não recebeu dinheiro do Banco Santander.


Mais tarde, ao reassumir a magistratura, ele julgou uma causa em que esse grupo financeiro era parte e sua sentença foi favorável ao grupo. Agora, uma organização de direita, denominada ‘Manos Limpias’, quer que o Tribunal aceite a tese de que o patrocínio do Santander era pagamento antecipado da sentença e condene Garzón.


Virtual aposentadoria


Tudo o que li sobre o andamento desse processo parece indicar que a acusação não terá êxito. Os depoimentos formais de dirigentes e representantes da universidade, do grupo Santander e do Centro Rey Juan Carlos (entidade parceira da universidade no evento), além das alegações do próprio Garzón, vão todos na mesma direção. Ação semelhante, movida pela mesma organização, mas tendo como pivô La Caja, entidade financeira catalã, foi arquivada pelo Judiciário no início deste mês.


Contudo, é verdade que me dediquei mais a ler El País do que, por exemplo, El Mundo. Esses dois jornais, como se sabe, vivem em mundos diferentes. Aceitando-se o que se lê num ou noutro, forma-se noção bem diversa, e até antagônica, de um mesmo tema.


A outra imputação a Garzón alega sua incompetência jurisdicional para apreciar os casos suscitados pela Lei da Memória Histórica, que prevê a restauração da verdade sobre os crimes ocorridos sob o franquismo. Não sei avaliar o perigo que representa para o indiciado. O juiz relator, Luciano Varela, ex-aliado de Garzón em diversas causas, agora defende a aplicação da pena máxima prevista para o suposto delito: 10 a 20 anos de suspensão, isto é, sua virtual aposentadoria ou proscrição do Poder Judiciário espanhol. Varela chegou a ser provisoriamente afastado do caso, no final de abril, a pedido do advogado de defesa, mas recuperou a relatoria dez dias depois.


Recado do presidente do ICC


Condenado ou não nessa causa, ela já converte Garzón num ‘pato manco’ enquanto durar a discussão e, possivelmente, mesmo depois, ainda que se venha a absolvê-lo. No entanto, esses episódios não são fatos demarcáveis que começam e terminam em determinadas datas. Fazem parte de processos que continuam se desenvolvendo enquanto há forças sociais capazes de politizar o tema e mantê-lo na agenda pública e nos espaços institucionalizados do debate. Nesse sentido, meu sentimento é de que as iniciativas de Garzón vão produzir algum avanço na aplicação da lei, que, até a intervenção dele, motivada por ações impetradas por diversas associações de vítimas e familiares de vítimas, só estava existindo no papel.


Enquanto estive lá, houve muita manifestação em prol de Garzón, inclusive uma, no dia 24 de abril, com eventos acontecendo simultaneamente em muitos lugares diferentes da Espanha. Nesse dia, eu estava em Sevilha, que realizava sua ‘Feira de Abril’, um dos principais eventos festivos locais (mutatis mutandis, um carnaval). Mas mesmo assim a manifestação por Garzón aconteceu, reuniu gente e rendeu matéria na mídia local e nacional. O que os defensores de Garzón ressaltam é esse paradoxo: o único juiz que pôs para funcionar a Lei da Memória Histórica está na iminência de ser o primeiro condenado.


O desdobramento mais recente foi o convite a Garzón para que atue por sete meses como assessor do Tribunal Penal Internacional (ICC, na sigla em inglês), a corte sediada em Haia, Holanda, que julga genocídios, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. O convite foi aceito, mas para que assuma o cargo, Garzón precisa de autorização do Conselho Geral do Poder Judiciário. Se a autorização for dada, o prazo pode reverter em favor do indiciado, esfriando as pressões. A iniciativa de Luis Moreno-Ocampo, presidente do ICC, tem o condão de dar esse recado: se a Espanha rejeita Garzón, o mundo o quer.


‘Parte da Humanidade’


Por não estar aqui, fico um pouco prejudicado quanto à capacidade de avaliar o tamanho e a qualidade da omissão da mídia brasileira em relação a esse tema em seu momento mais ‘quente’, a última semana de abril.


Entretanto, penso que nossa análise permanecerá capenga se nos limitarmos à crítica da grande imprensa. O problema é mais profundo e, portanto, mais grave. Refiro-me ao que me parece ser a perda de capacidade da esquerda brasileira de se mobilizar e mobilizar a sociedade em torno de causas humanistas. Falar em ‘silêncio dos intelectuais’ seria distorcer e baratear a questão.


Quero lembrar aqui uma fala do inesquecível Darcy Ribeiro, em aula sua que assisti na UnB em 1990 (proferida a convite da professora Arcelina Publio Dias, em disciplina regida por ela, na graduação de Jornalismo). A certa altura da exposição, Darcy julgou necessário fazer uma digressão, por avaliar que a garotada que o ouvia com embevecimento podia não alcançar o significado de determinado episódio que estava recapitulando, de mobilização da sociedade por um tema estrangeiro. Disse ele então algo mais ou menos assim (vai de memória, não anotei nada):




‘Naquele tempo, nós todos éramos comunistas. O comunismo fez muita coisa ruim, mas também tinha muita coisa positiva. Uma era que tudo o que acontecia, fosse em que parte do mundo fosse, nos interessava, nos mobilizava. Éramos internacionalistas, nos sentíamos parte da Humanidade. Então, por exemplo, uma perseguição a operários ou a prisão de um intelectual progressista, em qualquer país, dava lugar a manifestações, a atitudes e ações políticas.’


E a nossa ‘sociedade civil organizada’?


Na mesma linha vão depoimentos como os de Gianfrancesco Guarnieri e Maurice Cappovilla, reproduzidos no livro de Jalusa Barcellos sobre o CPC da UNE. Ali, eles falam da capacidade do antigo PCB manter uma rede de filiados e simpatizantes no meio intelectual e artístico e de mobilizá-la em apoio a causas de interesse social, em sustentação à première da peça teatral de um filiado (ou simpatizante) que correspondia à linha do partido, ao vernissage de um artista plástico e assim por diante. Embora as mais das vezes permanecendo ‘invisível’, o partido ‘influía mesmo’, ‘tinha força’.


Hoje, parece-me um tanto difícil reproduzir tal fenômeno entre nós. A esquerda fragmentou-se. Suas facções parecem mais votadas à disputa de hegemonia umas sobre as outras do que à arregimentação conjunta, mais vocacionadas à divisão do que à soma, mais vocacionadas a exibir suas ‘marcas’ (bandeiras) do que a deixar-se em estudada ‘invisibilidade’. Também ficamos, quiçá, mais egoístas.


Então, sempre invocando o defeito liminar resultante de minha ausência do país naqueles dias, ouso supor que não apenas a grande imprensa se omitiu em relação ao episódio Garzón. Além disso, pouca ou quase nenhuma mobilização política terá havido no Brasil capaz de gerar pauta. Na França e na Espanha, a televisão mostrou – e ouviu – gente da Argentina, do Chile, da Inglaterra, da Espanha e da França (salvo engano meu, também da Itália). Teriam o que mostrar, caso acionassem uma equipe aqui no Brasil para registrar a mobilização da nossa ‘sociedade civil organizada’ em face do ataque concertado a Garzón?

 

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Servidor público, mestre em comunicação, doutor em Sociologia