Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os deuses e os anjos da bola

O Brasil saiu da Copa mas o campeonato mundial continua. Infelizmente sem a seleção dos pentacampeões. Era uma hipótese, apesar do favoritismo. Mas um país que deu ao mundo o futebol de Pelé e de dezenas de craques que fizeram sonhar – mais que isso, delirar – várias gerações não tem que se envergonhar de perder. Por isso, o título do Jornal do Brasil (‘Vergonha’) na primeira página no dia seguinte (2/7) à vitória da França soa, no mínimo, ridículo.


Quem compete pode ganhar, mas também pode perder. Por que o Brasil seria o único país que não pode perder num campo de futebol? E que tal se começássemos a querer ganhar em outros campos? Que tal se puséssemos nossas crianças nas escolas em tempo integral, com ensino obrigatório (de qualidade e universal) até os 16 anos, como na França? E se investíssemos em pesquisa científica em vez de comprar patentes e vender matérias-primas, como fazemos há séculos? Começaríamos, quem sabe, a aspirar a prêmios como um Nobel de medicina, de física etc.


Nesse sentido, vale a pena transcrever o comentário de Vinicius Mota (2/7), colunista da Folha de S. Paulo:




‘Escola em tempo integral para todos. Como disse Thierry Henry, o atacante francês que carimbou o passaporte de volta dos canarinhos para o ninho (quem se lembra do hit da Copa de 1982?), ‘o Brasil é um celeiro de craques porque os meninos aqui ficam jogando bola o tempo todo, enquanto os franceses têm de ficar na escola o tempo todo’’.


Pelé


Entrevistado no caderno especial de Libération que circulou no sábado (1º/7), dia do jogo, o eterno Rei Pelé desconversou quando o repórter perguntou quem ganharia o jogo, Brasil ou França. Pressionado pelo jornalista, que repetiu a pergunta, respondeu: ‘O Brasil ganhou o Mundial em 1958 na Suécia, depois de vencer a França. Mas, desde então, numa Copa do Mundo o Brasil nunca mais venceu a França! Alors…’.


Alguns dias antes, o mesmo caderno de futebol do Libé, publicou uma foto de junho de 1958 de um garoto negro de 17 anos. Ele passeava abraçado com duas crianças lourinhas. Uma delas dava a mão a uma terceira lourinha.


O texto-legenda de Libération dizia:




‘Junho de 1958 – Este garoto de casaco de jogging não é o baby-sitter de uma família sueca modelo. Também não faz o papel de um jovem empregado negro de um filme americano, numa América rural pós-guerra de secessão. Não, esse menino de apenas 17 anos se chama Edson Arantes do Nascimento. Apelidado de ‘Pelé’. Ele se prepara para ridicularizar a França na semifinal (5-2, dois gols dele). Pelé fez uma entrada triunfal na história desse jogo. Tornou-se depois o maior jogador do mundo, um gênio insuperável, jogador do século, primeira estrela em nível mundial e lenda de direito divino: o ‘Deus’ Pelé. O primeiro, antes de Maradona, antes de Cruyff, antes de Best. Pelé não jogava futebol. Ele era o futebol’.


Nada a acrescentar.


Zidane


O enviado especial do jornal L’Humanité (ligado ao Partido Comunista Francês mas não mais seu porta-voz), em texto publicado na segunda-feira (3/7), faz um perfil do maior craque da história do futebol francês, Zinedine Zidane, prestes a se aposentar. Esse craque genial, que brilhou no jogo contra o Brasil como o grande articulador da equipe francesa, é definido pelo Rei Pelé (sim, ele, com a autoridade de ‘Deus’) como ‘o maior jogador do mundo dos últimos dez anos’.


O jornalista Stéphane Guérard, que assina o texto, escreve:




‘Sábado, o verdadeiro brasileiro não era nem Ronaldinho nem Ronaldo, muito menos Kaká. Era Zidane’.


Na tarde de sábado, a televisão francesa mostrara imagens do Rio na expectativa do jogo. Um rapaz entrevistado numa praia elogia Zidane, reconhece o grande craque que ele é e resume: ‘Ele merecia ser brasileiro’. Condescendente, irônico, o garoto não imaginava que esse jogador genial iria ser responsável pela eliminação do favorito Brasil, mesmo não tendo marcado o gol decisivo.


Genial, inteligente, modesto, patrono de grandes causas humanitárias como a que arrecada fundos para a pesquisa de uma doença rara que atinge sobretudo crianças, pai de família exemplar, Zidane – que já foi eleito, por dois anos seguidos, o francês mais querido dos franceses numa votação feita pelo Journal du Dimanche – poderia ser declarado brasileiro honorário. Por que não?


Luiz Fernandez, Just Fontaine, Lilian Thuram


Grande destaque francês da Copa de 1986, juntamente com o craque Michel Platini, Luiz Fernandez relembrava — numa entrevista ao L’Humanité, publicada no sábado (1º/7) de amarga lembrança — os principais lances do encontro daquele ano em que o Brasil perdeu para a França nas quartas-de-final. Ele conta em detalhes o clima entre os jogadores franceses naquela época e como fez o gol em Taffarel.


À pergunta ‘por que gostamos tanto do futebol brasileiro?’, Luiz Fernandez, Lilian Thuram (jogador da equipe francesa que venceu a final contra o Brasil, em 1998, e que atuou também na Copa da Alemanha) e Just Fontaine, atacante da seleção francesa derrotada pelo Brasil, em 1958, na Suécia, responderam o seguinte:




Luiz Fernandez – O Brasil é o Rolls Royce do futebol. Qualquer que seja a geração, quando nós os encontramos, temos vontade de entrar e deixar correr. Nós todos queremos ficar no nível deles e desfrutar também daquele futebol.


Just Fontaine – Porque qualquer que seja a geração é um futebol bonito. O Brasil é sempre mais simpático de ver do que a Itália e seu catenacio. Não há nunca brutalidade. Em 1958, eles nunca tinham ganho nenhum mundial. Mas a equipe brasileira já tinha uma aura pelo fato de ter jogadores muito bem preparados tecnicamente.


Lilian Thuram – Quando eu era criança, eu era sempre brasileiro quando jogava futebol. Porque eles eram os melhores. Para mim, o Brasil é o futebol.

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Jornalista