Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os jornalistas e os ‘quinze minutos de treino’

Em uma Copa do Mundo de futebol marcada pelo nivelamento tático das seleções participantes, parece evidente que a cobertura das empresas midiáticas seja também semelhante entre si. No entanto, para agravar ainda mais esse quadro, os treinadores – domados pelo receio de terem seus (poucos) segredos descobertos – usam e abusam do expediente de não divulgarem maiores informações acerca de seus selecionados. Dessa forma, a Copa de 2010 se torna, pelo menos no noticiário, a Copa dos treinos secretos e dos treinadores desequilibrados. O treino secreto, ou seja, o treino com portas fechadas para a imprensa, principalmente, se torna um expediente que acirra uma espécie de pacto tácito entre jornalistas e esportistas.

Durante a fase de grupos, quando o treinador brasileiro Dunga abusou do expediente dos treinos secretos, foi possível explicitar os termos desse acordo entre mídia e esporte. Em um dos seus boletins, os repórteres Fernando Fernandes e Luís Ceará, da Rede Bandeirantes, deixaram clara a insatisfação geral com a dificuldade de gerar imagens da seleção do Brasil. A reivindicação geral era que Dunga abrisse pelo menos alguns trabalhos para a imprensa coletar a agenda do dia da Seleção e, assim, tanto jornalistas como a comissão técnica seriam capazes de realizar seu trabalho. É o famoso ‘abrir quinze minutos de treino’.

Dunga cedeu os ‘quinze minutos de treino’ para a imprensa, mas foi graças ao pedido da Fifa. Tal como Alberto Helena Jr. escreveu em seu blog, ‘outro dia, a Fifa passou um sabão na CBF por causa dos tais treinos secretos. Não por razões nobres, tipo direito à informação, transparência, essas coisinhas que elevaram o homem à condição de cidadão. Nada disso: a justificativa da Fifa era meramente mercantil – fechando os treinos, Dunga não permitia que a TV divulgasse os patrocinadores da Seleção e da Copa. Logo, Dunga achou o meio-termo adequado: abriu para imagens quinze minutos de um treinamento inócuo, e fechou para todos a parte fundamental de seu exercício’.

Bobinho temos, bobinho comentamos

Ora, Dunga – e ele não é o único treinador a fazer isso nessa Copa – subverteu o protocolo ao se utilizar de um recurso ironicamente naïve para tanto atender às exigências do órgão regulador do esporte como para irritar aquele que é mais inimigo da Seleção brasileira do que as outras 31 seleções da Copa: a imprensa.

Assim, tal como as grandes cenas de um dia histórico – por exemplo, o choque do segundo avião no 11 de setembro de 2001 –, passamos a primeira metade da Copa vendo nos telejornais e programas esportivos uma grande roda de bobinho com os 23 jogadores do Brasil. Não bastando isso, os comentários – no rádio, na TV, no jornal e na internet – eram sobre aquele incrível bobinho. Com um mero jogo infantil, tentavam tirar grandes considerações sobre a situação de jogo de Kaká e Júlio César e acerca da pertinência de certas convocações pois, se um determinado jogador mal conseguia sair da posição de ‘bobinho’, com certeza não poderia fazer parte dos 23 escolhidos.

Essa ânsia de comentar e gerar imagens do que realmente foi possível ver no dia da seleção mostra a necessidade jornalística de estar no mesmo tempo e espaço do fato, especialmente no mesmo espaço. Bobinho temos, então bobinho comentamos.

Outra situação que deixa esse mecanismo jornalístico claro na Copa de 2010 é os jornalistas, na madrugada gélida da África do Sul, terem que entrar ao vivo nos seus telejornais bem na frente da concentração dorminhoca do Brasil. Ora, essa necessidade de dizer ‘estamos aqui’ do jornalista, além de não acrescentar nada, só prejudica a qualidade de trabalho e de transmissão da informação já que não é nada eficiente ver um jornalista tremendo de frio ao dar o boletim do dia.

Dunga e o seu trabalho com a seleção de 2010 proporciona um momento de mudança no jornalismo esportivo. É hora de parar de bajular essas ‘estrelas’ do futebol e começar a levantar pautas relevantes dentro da dimensão do evento esportivo. Para fazer isso nem precisamos fazer ‘pautas sociais’ sobre a pobreza do continente africano, por exemplo.

É a hora do jornalismo esportivo trazer profundidade para suas abordagens: lembrar do futebol do passado e não só de nomes congelados em uma escalação de ficha técnica; ver os torcedores não enquanto palhaços ou fait divers do espetáculo, mas enquanto fontes de histórias que são mais interessantes do que meramente gritar ‘Brasil!’ para uma câmera; e ver as potencialidades de um futebol futuro e até mesmo o que devemos esperar da Copa no Brasil em 2014. Eis, assim, o momento do jornalismo esportivo largar o tênue presente para olhar as brumas passadas e as potencialidades futuras.

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Jornalista e mestrando em Ciências da Comunicação da ECA-USP