Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os países invisíveis

A mídia brasileira iniciou este primeiro mês da nova década caracterizada pela manutenção de equívocos que perpassam gerações. Isso está claro em dois assuntos em voga neste janeiro de 2010: a persistência dos grandes jornais na cobertura discriminatória acerca da pessoa do presidente Lula e o atentado contra a seleção do Togo em Angola. São, na aparência, assuntos desconexos, mas remetem à reflexão sobre desconhecimentos e preconceitos das redações quanto a questões nacionais e internacionais.

Foi com certo desconforto que li, na Folha de S.Paulo (edição eletrônica) a repercussão da indicação de Lula como ‘uma das 50 personalidades que moldaram a última década’ pelo Financial Times. Desconforto porque a Folha, com seu anti-lulismo, insiste em ser um jornal apartado da realidade do país (e provavelmente de boa parte de seus leitores). Na matéria, a Folha não omite opiniões e limita-se a reproduzir, via BBC Brasil, o que saiu no Financial, que não poupou elogios a Lula, bem como fizeram, na última semana de 2009, outros dois grandes jornais europeus, Le Monde (França) e El País (Espanha), que igualmente distinguiram Lula como ‘personalidade do ano’.

Há mais de dois anos vivendo em Portugal, aqui é hábito a imprensa em geral (jornais e TV) se referir a Lula como ‘Lula da Silva’, num tom entre o respeito e admiração. Bem ou mal, o reconhecimento das ações sociais de Lula acontece mais na mídia do exterior que na brasileira, com redações sediadas nos grandes centros urbanos do Sul e sempre distantes da realidade das populações de outras regiões (sobretudo do Nordeste) e mesmo da periferia das capitais. Pois é nesse amplo universo que se dá a aprovação de quase 80% do governo Lula em quase oito anos de administração. O que as políticas sociais do governo (Bolsa Família à frente) fizeram foi, queiram ou não, tornar Lula no que disse Hobsbawm (Carta Maior, 29-03-2009): ‘É o verdadeiro introdutor da democracia no Brasil. No Brasil há muitos pobres e ninguém jamais fez tantas coisas concretas por eles.’

Os porquês da melhoria de vida real

Primeiro no Nordeste, depois nas médias e grandes cidades de todo o país. Mas a mídia e os jornalistas parecem insistir em denegar um Brasil que sobrevive e cresce em meio ao caos urbano, talvez por preconceitos de seus jornalistas chefes, que negam ao pobres a capacidade de ser feliz (Casoy e os garis) ou vêem no público uma massa ignara e incapaz de discernimento (William Bonnner e o seu ‘Homer’). É bom que lembremos a previsão do Ipea nesses meados de janeiro: a continuar como está, em seis anos cessa a pobreza extrema no Brasil. No rastro, virá a capacidade ainda maior da população interpretar discursos enviesados elaborados pela mídia.

Pior ainda, a postura da mídia revela um traço de ‘colonialidade do poder’ (conceito do intelectual peruano Aníbal Quijano) assimilada nos anos de neo-liberalismo, que ainda não desapareceu por completo da mentalidade dos jornalistas que fazem a grande mídia do Centro-Sul. Uma mentalidade que não cansa de aplaudir o ‘estado do bem-estar social’ europeu (tão problemático hoje), mas que condena a implantação de políticas sociais no próprio país. O risco é grande, pois, distantes da realidade, os jornais adotam uma retórica reacionária e anacrônica que desconsidera aspectos negativos do passado (a ‘tal ditabranda’ da Folha, por exemplo) e apoiam políticas reacionárias que não têm respaldo popular (ver o recente discurso do presidente nacional do PSDB, Sérgio Guerra, defendendo mudanças na política econômica).

Não se trata aqui de defender que a mídia nacional abandone perspectivas críticas às muitas mazelas deste ou de qualquer outro governo, mas de alertar para a perda de credibilidade, o que seria ruim para todo o jornalismo, ‘essa invenção fantástica do século 19’, para dizer como Foucault. Ao contrário de insistir na denegação do próprio país, a mídia do Sul bem podia aproveitar esse momento para conhecê-lo melhor, para interiorizar-se e saber os porquês da melhoria de vida real que aumenta as potencialidades (humanas e econômicas) e assim evitar riscos sociais e ambientais futuros que o crescimento de agora pode causar.

A ausência da ‘tradução intercultural’

O segundo caso tem a ver com a abordagem do atentando aos jogadores de futebol do Togo na África e traz igualmente caracteres de desconhecimento e preconceitos da mídia em relação a contextos distantes das redações. A começar pela própria apresentação da situação de Cabinda, enclave angolano no Congo. Em geral, os jornais apresentaram o atentado como enfrentamento do governo de Angola a um movimento emancipatório, sem que se analisasse o estabelecimento do território de Cabinda, que remete ao século 19 e ao colonialismo europeu na África, que até hoje lega ao continente problemas e conflitos que se devem muito mais à exploração ao longo de seis séculos empreendida pela Europa do que por embates ‘étnicos’.

Argumentar falta de espaço e de fontes para preencher essa lacuna (no caso, mais informações acerca de Cabinda) não seria desculpa, pois mesmo uma consulta breve à Wikipedia bastava para situar melhor a questão (sugiro que se leia aqui). Mas o atentando na África evidencia a ausência completa, na mídia nacional, do que o português António Sousa Ribeiro chama de ‘tradução intercultural’, que é, resumidamente, a capacidade de estabelecer parâmetros reais entre contextos diferenciados. A África, em geral, é representada no Brasil como um conjunto caótico e homogêneo de ‘Estados falhados’, o que está longe de ser realidade diante das especificidades de cada país e das diferentes aplicações do colonialismo europeu sobre eles. No caso de Angola, acontecimentos como esse podem servir de pre-texto para levar ao público brasileiro mais informações de um país que, como o nosso, fala português e tantas outras afinidades tem conosco nos campos da literatura, da política e da economia.

Fraquezas fundamentais dos jornais

Concordo que o público não necessita ser ‘importunado’ com notícias factuais tratando de ‘colonialidade’, ‘tradução intercultural’ etc. Isso cabe a nosoutros, que caminhamos a instável linha entre jornalismo e universidade. Mas jornalistas, enquanto profissionais que defendem a formação acadêmica, não podem prescindir de conhecer mais acerca do que noticiam para se tornarem melhores interlocutores com o público e para esvanecer seus próprios preconceitos.

Gosto sempre de lembrar uma parte da entrevista do historiador britânico Asa Briggs a Maria Lucia Garcia Palhares-Burke (ver As muitas faces da História, Campinas, Editora do IFCH-Unicamp,1996), para dizer que jornais e jornalistas se governam por opiniões e interesses pessoais ou coletivos pré-estabelecidos. O que consta nas páginas de todo e qualquer jornal está quase sempre imbuído do que Briggs chama de ‘certas fraquezas fundamentais dos jornais que nos obrigam a suspeitar bastante do que dizem e utilizá-los com imensa cautela. Jornais costumam ser muito tendenciosos, são tremendamente mal-informados e só abordam uma pequena parcela da realidade’.

Questões a serem pensadas para que os jornais parem de inventar países que não existem, seja o nosso ou os outros.

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Jornalista, historiador e doutorando em Sociologia na Universidade de Coimbra, Portugal