Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

‘Pagou, tocou’ é corrupção da grossa

Jabaculê é uma palavra esperta. Macunaímica. Vincula humor, ironia, deboche e até uma certa leveza a sua essência hedionda. Jabaculê, ou jabá, é corrupção. Ativa e passiva. Não necessariamente nessa desordem. Há uns dias entrevistei o músico Rodrigo Quik. Ele toca numa banda chamada Perdidos na Selva. Perguntei sobre sua sobrevivência no mercado e ele contou, tranqüilo que, certa vez esteve com um músico numa rádio. Levava o CD da banda anterior para tocar. O programador da rádio, sem cerimônias, propôs: ‘Você me paga 3 mil reais por semana e eu toco uma música desse CD três vezes por dia durante um mês. Se o CD estourar, você se dá bem’. Rodrigo ficou meio zonzo, agradeceu e foi embora.

O que deixou Rodrigo indignado não foi só a proposta cotidiana do programador e nem o fato de o jabá ter virado uma instituição em muitas emissoras de rádio musicais. Ele não entende essa equação tão simples que beira o bizarro. ‘Se eu que não sou nada sei, claro que o Ministério da Cultura sabe, o Ministério da Justiça sabe, que a polícia sabe que para muitas rádios a lei é pagou tocou. Isso em rádios cujos canais são concedidos pelo governo. E ninguém faz nada’. Mais: ‘Todos os artistas sabem, mas fingem que não sabem’. Mais: ‘Por não ter grana para pagar pra tocar, 90% dos músicos, a maioria boa, estão fora das rádios, logo do mercado’. Mais: ‘Agora chamam o jabá de ‘verba de promoção’ ou ‘budget de marketing’. Coisa de milhares de reais que os independentes não têm como competir.’

Evidente que a corrupção no rádio, concessão do governo federal, não é nenhuma novidade. Mas o seu gigantismo e profissionalismo nos tempos modernos assustam, chocam, enojam. O magistral músico Gilberto Gil está ministro da Cultura. Quando não estava, ele sabia disso? E agora que está, ele sabe disso? Sabe que o antigo ‘jabá’ virou um monstro com planilhas, custo-benefício, budget, tudo isso para manipular o que, em tese, é do governo, logo, nosso? Ou as concessões são ‘conceições’?

Quem responde por isso?

Insisto: a corrupção não é lei em todas as rádios, mas o fato de uma mesma música tocar 10 vezes por dia é ‘limitação do sistema’, como tentou me explicar um cara de rádio? Pois é, ele disse que a emissora onde trabalhava tocava 50 músicas por dia porque ‘o sistema de software foi programado assim’. Entendi. Entendo que deve ser sistema similar ao de muitas empresas que quando ligamos para reclamar de alguma coisa lamentam: ‘O sistema está lento’. Para cobrar? Nunca.

Não é preciso ser Einstein para concluir que em muitas rádios não ouvimos músicas que os profissionais de lá julgam boas. Ouvimos quem paga e toca. E quem não paga? Onde estão as milhares de músicas de qualidade que não pagam? E os milhares de músicos de qualidade que não pagam? Até que ponto esse jogo sujo avilta a cultura? Pior: omite a cultura. Pior: amordaça e censura a cultura.

O AI-5 teria se fantasiado de cheque ao portador? É isso que preciso entender? Se Debussy ou Mozart fossem vivos teriam que morrer numa grana para tocarem três vezes por dia? Quais são as rádios que achacam? O que o governo tem a explicar sobre achaques em concessões suas? Quem responde por isso? A que tipo de punição um chantagista fantasiado de executivo de rádio está sujeito por achacar, barganhar, obstruir abusando do poder concedido? É impressão minha ou essa sim é uma boa pauta sobre jabá?

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Jornalista e escritor