Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Palpiteiros profissionais e amadores, a tortura

Sai a Copa do Mundo, voltam a Copa do Brasil e o Campeonato Brasileiro e a bola continua rolando. Numa programação recheada de programas de auditório, o futebol tem sido, ao longo dos últimos anos, a habitual salvação televisiva de todos os domingos. Isso não quer dizer, todavia, que ele não possa ser uma bomba considerável. E não é só pela indigência técnica de algumas partidas, mas por aspectos que se relacionam muito mais à própria transmissão do que ao jogo em si. Mais que com a mensagem, o problema tem sido com o meio.

O ruído já começa na própria divulgação das partidas. Como veículos comerciais que são, as emissoras de TV costumam promover o seu produto, o que as faz, muitas vezes, dourar a pílula de peladas inomináveis, apresentando-as como grandes clássicos do futebol mundial. Um jogo entre dois sérios candidatos ao rebaixamento, disputado num gramado em péssimas condições, é anunciado com pompa: ‘O tricolor carioca vai a Belém enfrentar o Papão em mais um grande clássico do nosso futebol; prepare o seu coração para Fluminense e Payssandu! Neste domingo às 4 da tarde!’. Sem falar na promoção indireta, pelo noticiário. A emissora que transmite o campeonato brasileiro lhe dá absoluta prioridade nos programas esportivos, enquanto outros canais dão prioridade aos campeonatos europeus, cujos direitos de transmissão lhes pertençam.

Já se chegou ao cúmulo de uma final de torneio Rio-São Paulo entre Flamengo e Santos, com Maracanã lotado, ser completamente ignorada no noticiário esportivo da principal emissora carioca, tão somente porque outra rede de televisão era a principal promotora do certame.

‘Mamãe, tô na Band’

Além disso, ainda temos que lidar com o sofrível grau de conhecimento dos profissionais encarregados de transmitir e comentar as partidas. Com a agravante de que narradores e comentaristas têm que se referenciar nas modernas cartilhas de jornalismo, em que a imparcialidade absoluta, apesar de inalcançável, é a meta. Não é à toa que alguns gigantes da crônica e da transmissão esportiva, como Ari Barroso e Nelson Rodrigues, sempre chutaram a neutralidade para escanteio, comemorando vitórias e chorando derrotas de seus clubes através dos veículos de comunicação sem nenhum pudor. Essa pretensa imparcialidade empobrece sobremaneira as discussões, visto que não se diz com todas as letras quando uma das equipes é absolutamente favorita ou quando algum time está sendo ostensivamente prejudicado pela arbitragem. As polêmicas envolvendo os juízes, aliás, estão na raiz do mais hediondo modismo das transmissões futebolísticas na TV: a dispensável figura do comentarista de arbitragem. Estes senhores, normalmente ex-árbitros, imbuídos do mais deslavado corporativismo, não fazem outra coisa além de referendar as sandices perpetradas pelos juízes em ação nos jogos transmitidos. Não é raro que, diante de um erro crasso da arbitragem, eles continuem endossando a equivocada decisão, mesmo que essa já tenha sido posta abaixo pela repetição do lance.

O imenso repertório de bobagens à disposição de quem detém os microfones ainda inclui as patriotadas, tão comuns em jogos da seleção brasileira. O escrete sempre conta com a defesa incondicional dos palpiteiros de luxo, por mais que apresente um futebol aquém de suas tradições, o que ficou evidente na vexaminosa participação brasileira nesta Copa. A torcida que, como já foi dito, é natural e inevitável, pode e deve vir acompanhada de um mínimo de senso crítico.

O pior é que, não satisfeita com o baixo nível dos seus profissionais, a maioria das emissoras abre espaço, durante as partidas, para que os telespectadores opinem ou façam perguntas via internet. Se levarmos em conta que os comentários são feitos por cidadãos tão pouco afeitos ao jogo a ponto de navegar na internet durante a partida, não causa espanto o alto nível de asneiras proferidas pelos internautas. E essa não é única forma de participação popular que torna o espetáculo ainda mais esdrúxulo. Já são quase obrigatórias, em qualquer transmissão futebolística, as indefectíveis tomadas das arquibancadas, oportunidades perfeitas para que uma horda de exibicionistas patológicos possa dar vazão ao seu fetiche, exibindo cartazes que imploram a atenção das câmeras, tipo ‘Galvão, filma a gente!’ ou ‘Mamãe, tô na Band’. Muitos deles com impiedosos ataques à gramática.

Susto e adrenalina

Diante de tudo isso, o que nos faz sentar diante da TV, com religiosa assiduidade, a cada tarde de domingo?

Pra começo de conversa, se o jogo for algo entre razoável e bom, tudo o que foi descrito nos parágrafos anteriores poderá ser relevado. Uma boa troca de passes, uma falta cobrada no ângulo ou um drible desconcertante podem redimir qualquer bobagem dita por comentaristas ou torcedores online. Além disso, a pobreza de alternativas televisivas ao futebol, pelo menos na TV aberta, é constrangedora. Via de regra, só restam os dramalhões apelativos reinantes nos programas de auditório dominicais. Quem não quer ver futebol fica quase que intimado a dar uma passada na videolocadora.

Também não se deve esquecer que o grau de exigência quanto ao nível técnico da partida é inversamente proporcional ao envolvimento afetivo. Um jogo do time de coração, mesmo que se trate da pelada mais desavergonhada, costuma se tornar um programão. Em muitos casos, substitui um bom filme, nem que seja pelos sustos e pela adrenalina.