Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Para abolir o aborto

Ao longo das duas últimas semanas, a questão do aborto inflacionou os discursos nas páginas do jornalismo impresso e virtual. Apontado por uns como ‘obscurantismo’, ‘oportunismo’ ou ‘demagogia’, o tema emergiu no embate eleitoral entre Serra e Dilma como se fosse esse o principal problema da nação.

Grave o é, sem dúvida, pois, tal como o jogo do bicho e o consumo de maconha, o aborto segue como prática comum e criminalizada num país que conserva a hipocrisia ao tratar mazelas sociais representadas como tabus. Entretanto, a criminalização do aborto não tem os mesmos contornos das drogas leves ou jogos ilegais. Trata-se de caso de saúde pública e, sobretudo, de limitação da mulher brasileira na autogestão de um espaço sobre o qual incidem as normatizações do controle do bio-poder (Foucault), negando à mulher a deliberação sobre o que lhe diz respeito única e individualmente: o próprio corpo.

Em Portugal, um apoio expressivo

O que mais espanta é que a grande (?) mídia, alinhada ao neocristão José Serra, não informa detalhadamente acerca do aborto clandestino (estima-se que ocorram mais de um milhão por ano), que se tornou o maior problema de saúde pública da mulher, ultrapassando, inclusive, o câncer de mama como fator de morte em algumas regiões do país (segundo destacou Carta Maior de 07-11-2010). Também não se estabelecem comparações exatas entre o Brasil e outros contextos sociais com matiz católico-cristã parecidas (como Portugal e Espanha), nos quais aborto e casamento gay não são mais considerados crime ou ilegalidade.

Em Portugal, nosso exemplo cultural mais próximo, o aborto foi liberado em 2007, num plebiscito popular onde a maioria dos que compareceram à votação (cerca de 60%) aprovou o procedimento em rede pública de saúde (há detalhes, como o direito do médico se negar à prática). Lá, os partidos políticos acordaram que respeitariam o resultado da consulta popular fosse qual fosse o resultado, desde que mais da metade da população comparecesse à votação. ‘Apenas’ 43,5% dos eleitores portugueses deram opinião, mas diante do apoio expressivo à medida, a lei foi aprovada. Nenhuma mulher portuguesa ou estrangeira que recorre ao aborto em hospital português deixa de ser atendida – e mortes não há mais.

Sem traumas ou hipocrisia

Em Portugal, tal qual no Brasil, a prática clandestina era disseminada e a descriminalização não foi motivo de cisão social ou institucional, embora vez ou outra haja algum grupo conservador (católico, em geral) que sugira contestações. Provavelmente o mesmo ocorreria por cá se a mídia fosse menos parcial e mais informativa, e os políticos menos oportunistas.

Aborto não é método contraceptivo defendido por quem quer seja. É um último recurso, dadas as implicações físicas e psicológicas de mulheres (e homens) que não encontram outra maneira de evitar filhos que não podem criar. Daí o ato necessitar de acompanhamento clínico interdisciplinar, no que o Estado deve ser interventor competente.

Creio que há um elemento positivo em meio ao pseudo-debate atual: a negação do aborto por parte dos políticos interessados no voto conservador e o mutismo estratégico é de fato uma forma de ‘dizer o indizível’ (Lins) acerca de um problema que a grande (?) mídia não tem coragem de encarar. É também um sinal de que, aí sim, tal qual as drogas leves, o casamento gay e o jogo ilegal, em breve podem vir a ser práticas regulamentadas, sem traumas ou hipocrisia.

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Jornalista, historiador e doutorando no CES/Universidade de Coimbra, Portugal