Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Para gestores e mídia, arma da política partidária

Imagine-se com um problema de saúde crônico, seja qual for (pressão, diabetes, ortopedia etc.); imagine que este problema impeça-o ocasionalmente de realizar suas atividades diárias, não lhe permita cumprir com suas obrigações empregatícias, ainda mais caso demandem extenuante esforço físico e psicológico; agora, imagine que você não tem o direito de recuperar-se deste problema porque, legalmente, ausências por tais motivos não podem ser justificadas.


Imagine ainda que, ao longo de todo um ano, você só tenha o ‘direito’ de enfrentar dois dos seguintes problemas: uma forte gripe e apenas um problema estomacal, uma infecção qualquer (como a conjuntivite, por exemplo), um problema dentário ou nos óculos, para quem deles necessita; e imagine que dois destes vários possíveis problemas de saúde de menor gravidade só possam ocorrer, em semanas diferentes, para que você não sofra as conseqüências (desconto salarial, perda de folga remunerada, ou outros).


Imagine também que você trabalha não raramente 15 ou 16 horas por dia, não raramente em três ou quatro lugares diferentes, comumente muito distantes de sua residência, e assuma que você não sofrerá ao longo do ano momentos de estafa. Afinal, você não tem o direito… Imagine também que você não tem um atendimento de saúde digno, já que há um só local, um só centro de saúde, para atender 70 mil profissionais numa região metropolitana de 20 milhões de habitantes e na qual mais de 10 milhões de pessoas têm direito a receber atendimento; imagine que você ainda é obrigado a pagar por este atendimento, mesmo que jamais o utilize. Imagine (parece que não acaba nunca, não é?) que, em seu emprego, você receba como ‘reajuste das perdas’ pela inflação de um ano todo um acréscimo de 0,1% em seu salário (o que equivale a 1 real a cada 1 mil reais ganhos).


Vagabundos com mordomias


Para terminar seu exercício de abstração, imagine que você é obrigado a suportar idéias imbecis – mas ditas científicas, que nunca se baseiam na observação da realidade, que são excrescências de uma academia que nunca desceu das cátedras ou esqueceu como é estar próxima do trabalho prático – e imagine-se sempre de mãos atadas, sem poder de ação, sem respaldo, vítima de um sistema público que tem uma visão absolutamente economicista e estatística de eficiência – nem que, para atingir o patamar ideal, estuprem-se a verdade e os fatos em prol de percentuais fictícios, meros números frios –, que vai impedi-lo de observar resultados efetivos no seu trabalho e o submetem a uma sensação de frustração angustiante e depressiva.


Se você leu até aqui e conseguiu imaginar-se nesta situação, você se sentiu como um professor da rede pública do município de São Paulo. Quem não necessitou fazer grande esforço, com certeza, é professor da rede pública do município de São Paulo. Professores públicos, de qualquer rede e em qualquer ponto do país, senão do mundo, em geral são vítimas de calúnias por parte dos próprios administradores públicos, da população que não utiliza o serviço e aceita pagar por uma alternativa àquilo que é obrigação do Estado e, especialmente, por parte da mídia, genericamente falando.


São corporativamente adjetivados vagabundos, dizem que não trabalham, afirmam sobre eles que têm ‘mordomias’ por serem funcionários públicos e, principalmente são considerados unanimemente incompetentes (quando se diz, via de regra, que a culpa dos extremamente graves problemas de educação pública no país é exclusivamente destes profissionais). Até empregadores (governadores, prefeitos, secretários e vereadores) têm a audácia de vociferar nestes termos, mesmo alguns deles tendo sido professores públicos. Pois bem.


O objetivo é criticar


Não bastasse essa visão pobre e costumeira, desapegada dos fatos, os professores do município de São Paulo em especial têm sido vítimas de uma surda e discreta campanha difamatória, via imprensa, por parte da administração pública. Na realidade, estão sendo utilizados numa idiota e inconseqüente campanha político-partidária de crítica a administrações anteriores ou, em especial, à administração anterior.


E a administração anterior no município foi muito cruel no que se referiu a salário, carreira e na estrutura de trabalho dos profissionais de educação – usando a falácia de uma democracia em que todos tinham sempre assegurado o direito de falar, participar das discussões e decisões, mas em que também sempre e sempre prevalecia a palavra final do gabinete, dos secretários, da prefeita, independentemente das discussões ‘de base’; petistas paulistanos usaram desavergonhada e descaradamente a educação pública como peça publicitária em campanha eleitoral, muitas vezes sugerindo meias-verdades ou afirmando completas mentiras.


Por sua vez, a atual administração, tucana – que nem disfarça e nem se preocupa em ouvir –, com seu objetivo de criticar tudo o que foi feito pela administração anterior, apoiada por largos setores midiáticos, utiliza-se de ataques aos profissionais da educação pública do município de São Paulo como instrumento.


Apuração esquecida


Nessa ridícula e descabida campanha destaca-se, por exemplo, o Grupo Estado e seus jornais. A última peça de artilharia fez-se em matéria assinada pela jornalista Aryane Cararo, batizada de ‘A epidemia de faltas acabou’, no Caderno A do Jornal da Tarde de 12/9/2005, referente ao Decreto 46.113, de 21 de julho de 2005, que regulamenta o afastamento de profissionais de educação por motivos de saúde.


Afirma o texto que as licenças diminuíram bruscamente em virtude das chamadas licenças de curta duração terem sido alteradas de sete para três dias consecutivos, e limitadas a dois afastamentos anuais, obrigando os servidores a comparecer ao DSS (Departamento de Saúde do Servidor, antigos Desat e Demed) para perícia caso tenham mais de dois problemas por ano, quaisquer que sejam. Afirma ainda a matéria que ‘(…) a queda brusca de licenças em um só mês pôs em xeque a alegação da doença de alguns professores’, e dá a entender, ainda, que os alunos da rede pública do município ficavam (e não ficam mais!) sem aulas em virtude da diminuição das licenças por doenças ‘fictícias’.


Esqueceu-se a jornalista, entretanto, de averiguar quantos professores deixaram de apresentar atestados para licenças de curta duração – ou porque preferem trabalhar doentes (crises de pressão alta ou baixa, bursite, tendinite, conjuntivite, gripe e quaisquer outros problemas de saúde, nada incomuns para quem costumeiramente tem contato com centenas de crianças por dia em ambientes fechados) para resguardar-se de uma necessidade maior; ou ainda os que não podem mais solicitar tais licenças porque já esgotaram a ‘enorme’ cota de duas licenças no ano; ou ainda os que se submetem a aguardar meses e meses por uma simples consulta médica no Hospital do Servidor Público Municipal, o que pode agravar um problema e provocar um afastamento por período maior, mesmo periciado.


Abono e desinformação


Encontra-se na matéria, ainda, posição do secretário municipal de Educação, José Aristodemo Pinotti, que ‘adotou outras medidas para aumentar o número de professores nas escolas, tirando cerca de 1.100 docentes de serviços administrativos’, mas omitiu-se a autora da matéria de folhear o Diário Oficial do Município dos últimos oito meses para constatar que, se 1.100 profissionais foram retirados dos serviços administrativos, outros tantos incontáveis, diariamente, foram designados para ‘prestar serviços técnico-educacionais’ – fora das salas de aula, em serviços administrativos ou ‘pedagógicos’ – nas coordenadorias de ensino do município, de onde saíram levas e levas de petistas para dar lugar a levas e levas de tucanos.


Por fim, o texto parece defender a idéia do ‘abono’ pago pelo governo do estado de São Paulo (curiosamente, também de administração tucana), que evita faltas por prometer um pagamento anual ao servidor assíduo, a título de prêmio. Só esquece a Sra. (ou Srta.) Aryane de informar (será que sabe?) que o salário do professor estadual beira o ridículo: consegue ser ainda pior do que o dos professores do município de São Paulo.


E não informou (será que sabe?) que tal abono é pago justamente para que não seja incorporado seu valor anual em 13 partes ao salário, podendo, portanto, na forma em que é pago, ser suspenso a qualquer momento (sem falar que apresenta uma discrepância de valores de região para região, de escola para escola, de professor para professor, de maneira que torna impossível constatar uma proporcionalidade para cada caso).


‘Doença misteriosa’


Sobre os alunos passarem a ter todas as suas aulas regulares, há aí um absurdo. A dita repórter deveria visitar algumas escolas, e não apenas uma, em diferentes regiões da cidade, que não central, para saber qual é a verdade. Com isso, não pôde ponderar, certamente por completa ignorância sobre o tema, como, ao longo de muitos e muitos anos, a gestão dos recursos humanos na educação pública do município de São Paulo primou pela mais grosseira incompetência – e a administração atual nada fez para modificar este panorama, e caminha no sentido de aprofundá-lo: faltam muitos professores em várias escolas.


Mas vários professores efetivos, chamados adjuntos, e que, entretanto, trabalham como regentes titulares, estão sem aulas porque vinculados às coordenadorias de ensino, e a burocracia municipal não permite o melhor aproveitamento desta mão-de-obra: mesmo querendo trabalhar, para conseguir cumprir uma jornada mínima têm que trabalhar em quatro ou cinco escolas, sem auxílio-refeição, sem auxílio-transporte e sem contar o provável acúmulo com outro cargo ou outro emprego, com jornadas que superam, em extensão, a dos primeiros operários britânicos e europeus, séculos atrás, caracterizadas como de super-exploração.


E o mesmo grupo de mídia, no mesmo jornal, apontou em matéria de uma semana antes os problemas de saúde comuns aos professores públicos, e não uma ‘doença misteriosa’. Portanto, os professores adoecem, acima da média, mas não têm o direito a tratamento digno, não têm o direito a se ausentarem por problemas de saúde caso não se submetam a filas quilométricas num único local de atendimento em toda a Grande São Paulo.


Idéias ‘brilhantes’


Mas não é a primeira vez que um veículo do Grupo Estado depõe contra os profissionais de educação do município, e não tem a exclusividade da prática: a Editora Abril também publicou, na edição de 3 de agosto de 2005, na revista Veja S. Paulo, matéria com o título ‘É muita folga’, onde o próprio prefeito de São Paulo defende seu decreto de número 46.113, publicado dias antes, aproveitando-se para criticar (mais uma vez) os profissionais de educação e alfinetar a administração anterior. E o secretário municipal de Educação seguiu a mesma linha do prefeito, dizendo que tal ‘permissividade’ com as licenças foi construída porque a administração anterior preferiu esta saída ao invés de ‘negociar uma pauta salarial’ com a categoria.


O que é verdade, diga-se. Mas foi o mesmo Sr. José Aristodemo Pinotti, em sintonia com a administração da qual ele faz parte, que concedeu este ano ‘fantástico’ 0,1% de reajuste, na sua pauta salarial muitíssimo bem negociada!


E é curioso, também, constatar que ninguém na imprensa critica ou aborda com seriedade as últimas idéias ‘brilhantes’ para a educação do município: contratar ONGs para atuar nas escolas, instituir parcerias com a iniciativa privada, cogitar de usar os alunos como peças publicitárias ambulantes… Não é aceitável nem admissível que a prefeitura de São Paulo queira isentar-se de sua responsabilidade na gestão da administração pública: profissionais de educação não podem aceitar a interferência do privado no público, em âmbito nenhum – basta o recolhimento correto e isento dos impostos em vez da ‘crise de filantropia’ de umas e outras grandes empresas.


Maioria comprometida


Mais que isso, num momento em que se discute largamente, em nível nacional, a promiscuidade entre o público e o privado, por que a prefeitura pode pagar ONGs para trabalhar na educação pública e não pode investir seus recursos na melhora efetiva da educação pública? Quem se beneficiará da entrada de ONGs na educação municipal, alunos e cidadãos ou gestores de instituições ligadas a este ou àquele partido político?


A educação pública tem, sim, inúmeros e gravíssimos problemas, mas todos eles passam pela indiferença absoluta dos gestores públicos e pela falta de seriedade com a qual se lida com o tema. Portanto, os profissionais de educação não podem ser considerados o maior ou um dos maiores obstáculos a uma boa educação – pelo contrário! Como em todas as áreas, há excelentes e péssimos profissionais, mas, costumeiramente, vemo-los atirados à mesma vala comum, considerados medíocres e incapazes, o que é criminoso, uma inaceitável injustiça.


Não há uma única atitude de dignidade, de procurar verificar – e constatar – que a maioria dos professores é atuante e está comprometida, preocupada com a educação pública gratuita e de qualidade, e que sofre com as conseqüências do enorme descaso com o qual a educação pública é tratada pelos administradores do Estado, independentemente da esfera pública, do partido ou da coloração ideológica.


Círculos de amigos


Sugiro, portanto, a repórteres e jornalistas que, antes de prepararem artigos, ensaios, matérias ou reportagens referentes à educação pública, visitem as unidades, tenham contato com a realidade das escolas públicas e conversem, pelos canais convenientes e permitidos – já que professores não podem criticar livremente a gestão pública, sob pena de serem exonerados ‘a bem do serviço público’, no simulacro de democracia em que vivemos –, com os profissionais de educação. Só assim a atuação jornalística na abordagem e até mesmo na crítica à escola pública pode ser séria e responsável.


A imprensa, enquanto instituição, não pode aceitar servir de palanque ou de espaço político-publicitário, ainda mais quando ataca, sem buscar a verdade, um setor específico da sociedade civil, simplesmente para agradar ou corroborar seus alinhados ideológicos e/ou financiadores.


E os profissionais de ensino público, seja de qual for a esfera, não podem mais aceitar o uso da educação pública nem como ferramenta de benefício a restritos círculos de amigos nem como falsa propaganda ou tampouco como instrumento de política partidária.

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Ex-professora pública