Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Patronato discute autorregulamentação





Pela primeira vez em trinta anos de atividade,
integrantes da Associação Nacional de Jornais (ANJ) divergiram publicamente
sobre uma questão. Durante o 8º Congresso Brasileiro de Jornais, promovido pela
ANJ nos dias 19 e 20/8 no Rio de Janeiro, foi proposta a adoção de um código de
autorregulamentação para os 140 filiados à entidade patronal. De acordo com a
instituição, até o fim do ano deverá ser criado um conselho, formado por sete
integrantes, para aplicar o Código de Ética
existente na ANJ. A proposta surpreendeu os participantes do encontro e


dividiu as
opiniões. O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (31/8) pela
TV Brasil discutiu a autorregulamentação do setor de mídia impressa.

Para discutir esta questão, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de
Janeiro o jornalista Aluízio Maranhão. Editor de Opinião do jornal O
Globo
há nove anos, Maranhão tem 40 anos de profissão. Em São Paulo, o
programa contou com a participação da advogada Taís Gasparian, bacharel em
Direito e graduada pela Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas pela
Universidade de São Paulo (USP). O convidado de Brasília foi o jornalista Sidnei
Basile, vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Abril, da Associação
Nacional dos Editores de Revista (Aner) e do Comitê de Liberdade de Expressão da
Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP/Iapa).


Antes do debate no estúdio, na coluna ‘A mídia na semana’, Dines comentou o
fim da edição impressa do Jornal do Brasil, ocorrido naquela terça-feira,
depois de 119 anos; a atuação da mídia de extrema-direita dos Estados Unidos,
onde, com a proximidade das eleições para o Congresso, colunistas de rádio e
televisão evangélicos atacam o presidente Barack Obama; e a estreia da
jornalista Marília Gabriela no comando do programa de entrevistas Roda
Viva
, da TV Cultura de São Paulo. Dines criticou a participação da
apresentadora em comerciais e afirmou: ‘Longe de servir de estímulo ao bom
jornalismo, o novo Roda Viva escancarou a degradação daquela que já foi
chamada de última profissão romântica’.


Polêmica inédita


No editorial que abre o programa, Dines comentou que, ao propor o código, a
direção da ANJ, provavelmente não examinou todos os possíveis desdobramentos da
questão. Pretendia elaborar normas genéricas e não imaginava que o tema fosse
produzir ‘uma inédita discordância interna e que esta discordância tornar-se-ia
pública’. Para Dines, a quebra de unanimidade da associação é positiva porque a
imprensa livre precisa ser plural para ter legitimidade. ‘Esta discordância
envolve princípios e estratégias que uma vez reveladas não podem ser esquecidas
ou enfiadas na gaveta’, disse.


A reportagem exibida pelo Observatório entrevistou jornalistas e
especialistas em imprensa. Ricardo Pedreira, diretor-executivo da ANJ, disse que
a autorregulamentação é importante diante do amadurecimento da democracia
brasileira. Pedreira ressaltou que o Conselho de Autorregulamentação
Publicitária (Conar) é um exemplo na área de publicidade seguido em outros
países, mas ponderou que a instância de regulação proposta pela ANJ será
diferente porque a imprensa trata com matéria subjetiva. De acordo com o
representante da ANJ, a associação pretende estabelecer um padrão geral de
normas. ‘Temos pronto há vários anos um código de ética no nosso Estatuto e todo
o jornal que se filia à ANJ assume o compromisso de respeitar os preceitos deste
código de ética. Recentemente, este código de ética passou também a ser um
código de autorregulamentação e nós estamos dando mais um passo, que é buscar
mecanismo, por meio deste conselho, para que todos os jornais possam cumprir
isto’, explicou.


Autorregulação no mundo


O advogado e jornalista José Paulo Cavalcanti Filho, que presidiu o Conselho
de Comunicação Social (CCS) – atualmente inativo – do Senado Federal nos dois
primeiros anos de funcionamento do órgão (2002-2004), vê com ceticismo a
proposta da ANJ. Ele comentou que os Estados Unidos têm instituições semelhantes
que funcionam ‘de maneira razoável’. No entanto, uma experiência nos mesmos
moldes da ANJ foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte daquele país. ‘A
Inglaterra tem uma Press Complaints Commission (PCC) [Comissão de Queixas
Contra a Imprensa, órgão de autorregulamentação da imprensa escrita
] que de
alguma forma se assemelharia a isto. Mas as experiências são diferentes’,
disse.


O advogado ponderou que, no Brasil, uma experiência como esta poderia
funcionar na área de publicidade, mas precisaria ser mais aprofundada para ser
aplicada ao setor de comunicação. Cavalcanti sublinhou a necessidade de uma
legislação adequada e um fórum que congregue todas as partes envolvidas na
questão, como emissoras de televisão e sociedade civil. ‘Eu imagino que é uma
proposta cheia de boas intenções, mas que não vá passar disto’, avaliou.


De Londres, o jornalista Silio Boccanera contou que entrevistou o
editor-chefe da revista inglesa The Economist, John Micklethwait, para o
programa Milênio, da Globonews, e que Micklethwait endossou a atuação do
PCC (ver ‘Por que
The Economist ganha leitores
‘). Defensor da liberdade de imprensa, o
editor da revista – que segue uma linha editorial liberal – não acredita que o
PCC seja um impedimento à livre manifestação de opinião. ‘Na verdade, a
dependência que ele gostaria de ter seria apenas dos tribunais. Mas a prática,
disse ele, demonstra que os tribunais britânicos não têm dado conta do recado de
maneira eficaz’, explicou Silio. O PCC não aplica multas, mas o ‘efeito moral’
das manifestações da comissão é alto.


Baseado em Buenos Aires, o jornalista Ariel Palacios explicou que a mídia
impressa argentina não tem autorregulamentação e que o assunto sequer consta na
agenda das empresas, nem dos jornalistas da área acadêmica ou do mercado de
trabalho. ‘Alguns analistas indicam que o assunto não esteve na agenda nos
últimos anos porque a imprensa esteve muito atarefada com outros problemas
urgentes na última década, entre eles a crise econômica, financeira e social de
2001 e 2002, que levou diversos meios de comunicação à falência’, contou.


Questão antiga


Venício A. de Lima, jornalista, colunista do Observatório da Imprensa
online e professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), disse que
autorregulamentação de instituições patronais é uma prática centenária que já
existe nos Estados Unidos desde a década de 1920. Os resultados que ela produz
não substituem a regulação do Estado – ‘são complementares’, afirmou. Mauricio
Azêdo, presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), disse que o código
proposto pela ANJ não deve ultrapassar os limites das próprias empresas de
comunicação porque estas ‘não podem estabelecer decisões e procedimentos e impor
ao conjunto da cidadania’.


Para Azêdo, as eventuais lacunas surgidas após o fim da Lei de Imprensa,
extinta em abril de 2009, podem ser preenchidas pela legislação comum. O
presidente da ABI ressaltou que os meios de comunicação, sobretudo os jornais,
configuram uma diversidade maior do que a do setor de propaganda e, por isso,
não será possível estabelecer uma linha de conduta única para todos os veículos
impressos. Sérgio Miguel Buarque, editor-executivo do jornal Diário de
Pernambuco
, vê com bons olhos a criação do código, mas questionou como este,
efetivamente, punirá os jornais.


No debate ao vivo, Dines esclareceu que a autorregulamentação em discussão
diz respeito exclusivamente à mídia impressa, uma vez que a eletrônica, por ser
uma concessão pública, obedece a outros critérios. Para Aluízio Maranhão, representante da mídia impressa no Conar, não há dúvida
sobre a necessidade de a mídia impressa ‘mergulhar’ na experiência da
autorregulamentação. Porém, a forma como esta transformação deve ocorrer precisa
ser analisada. Maranhão destacou que na publicidade há fatores objetivos. É
possível, por exemplo, impor restrições às propagandas de bebidas alcoólicas.


É possível um único código?


‘Quando você transpõe para jornalismo, é muito fácil definir os extremos, a
grande reportagem e a péssima reportagem. O problema são os 99,9% da área
cinzenta’, argumentou Maranhão, comentando que o Brasil é um país com profundas
diferenças culturais e econômicas e, atualmente, são 140 os jornais filiados à
ANJ. Por isso é complexa a elaboração de um código que abranja todo esse
universo. Na visão do jornalista, é possível definir questões pétreas, como a
separação clara entre conteúdo jornalístico e publicidade.


Maranhão explicou que não é contra a autorregulamentação, e quando levantou
questões como esta durante o congresso da ANJ estava propondo uma discussão mais
aprofundada sobre a implantação do futuro comitê. ‘Poderá ser contraditório, e
eu acho que é, de um lado nos opormos a um organismo paraestatal sindical, que
seria o Conselho Federal de Jornalismo – e nos opusemos, com sólidos argumentos;
por isso, não podemos admitir que vulnerabilizemos a ANJ, abrindo flanco para
acusações de que se criou uma organização corporativista, patronal, de defesa
dos interesses da chamada grande mídia’, alertou.


O exemplo do Conar


Dines perguntou a Taís Gasparian como seria possível equacionar os vários
representantes da sociedade, como ocorre no Conar, no comitê proposto pela ANJ.
A advogada, que é a favor da autorregulamentação, destacou que mais de dez
países adotam conselhos de com esta finalidade na área de jornalismo, com
formatos de participação diversos, e que a própria associação de jornais ainda
estuda o tema. Parte dos conselhos internacionais possui apenas uma força moral,
quando, por exemplo, anunciam que determinada matéria não respeitou algum dos
princípios éticos estabelecidos.


Taís comentou que o Conar está baseado no tripé
anunciantes-veículos-agências; por isso, as decisões do conselho têm força
coercitiva e podem ser efetivamente aplicadas. A advogada ressaltou que o
judiciário no Brasil é moroso, julgamentos podem demorar até uma década. Neste
aspecto, decisões rápidas, como as tomadas pelo Conar, podem ser benéficas. ‘É
muito benéfica essa discussão e é muito benéfico que se venha a adotar alguma
autorregulação’, disse.


O vácuo da Lei de Imprensa


Sidnei Basile pontuou que durante mais de 40 anos houve uma Lei de Imprensa
que tipificava crimes que não existiam no Código Penal. De acordo com Basile, o
jornalista corria o risco de ser punido por delitos inexistentes no código. ‘A
partir de abril do ano passado, estamos sem uma Lei de Imprensa e temos o
problema de como administrar a nossa liberdade. Acho que esta é a questão’,
destacou. Ele lembrou o voto do ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos
Ayres Britto, relator do processo, na sessão que decidiu pelo fim da lei
específica.


‘No seu voto, ele disse o seguinte: o que nós estamos decidindo aqui é que
não é o Estado que fiscaliza a imprensa, é a imprensa que fiscaliza o Estado. A
conseqüência disto, segundo ele, é que a liberdade de imprensa, conceitualmente,
passa a ter um tamanho absoluto. E aí diz ele: se o tamanho desta liberdade é
absoluto, como é que vamos modulá-la no cotidiano? É só pela
autorregulamentação. E aí, dizia ele, este julgamento é um convite à
autorregulação desta atividade’, lembrou.


***


Jornalismo e conselho de autorregulamentação


Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na
TV nº 561, exibido em 31/8/2010


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


A decadência e morte do JB tornaram imperioso o desdobramento de um
debate que começou há 10 dias sobre a autorregulamentação da imprensa.


Um setor ou segmento econômico que aceita o princípio da supervisão
corporativa teria evitado os vexames cometidos pelo Jornal do Brasil
quando vendia manchetes e favorecimentos aos políticos que o apoiavam? Qual a
dimensão da autorregulação – evitar abusos episódicos em matéria de
sensacionalismo e intromissão na vida privada ou estabelecer paradigmas de
comportamento que mantenham a imprensa comprometida com o interesse público?


Ao propor no seu 8º Congresso o instituto da autorregulação, a direção da
ANJ, Associação Nacional de Jornais, certamente não examinou todos os
desdobramentos da questão: imaginou um código genérico, inodoro e indolor,
destinado a desarmar as crescentes demandas em favor do controle dito ‘social’
da imprensa. Jamais poderia supor que o assunto produziria uma inédita
discordância interna e que esta discordância tornar-se-ia pública.


O empresariado dos jornais dividiu-se e isto foi registrado pelos veículos
que cobriram o congresso – e o mais importante é que esta dissidência foi
iniciada por respeitados jornalistas convidados para refletir sobre o
assunto.


A quebra da unanimidade na ANJ é extremamente positiva porque uma imprensa
livre é geralmente plural – quanto mais diversificada, mais legítima. Esta
discordância envolve princípios e estratégias que uma vez reveladas não podem
ser esquecidas ou enfiadas na gaveta.


A autorregulação teria salvo da ruína e da degradação um jornal como o JB?
Empresários que não respeitam as normas da sua corporação podem prosseguir
impunes? A autorregulação entrou para a agenda pública e para sempre.


***


A mídia na semana


** O fim do Jornal do Brasil está sendo chorado, lamentado, sentido. É
compreensível porque encerra-se uma história de 119 anos, metade dos quais como
padrão de qualidade jornalística. No meio de tanta tristeza, impossível reprimir
o riso: mesmo moribundo o jornal continua apegado à mentira. No domingo (29/8)
noticiou com destaque a repercussão internacional positiva da sua fase digital e
omitiu o que está sendo publicado sobre as trapalhadas financeiras do grupo que
ajudou a matar o outrora glorioso JB.


** A liberdade de expressão é um dos pilares da democracia americana, mas
esta liberdade novamente exibe as suas terríveis contradições diante da nova
ofensiva da mídia de extrema-direita. Colunistas de rádio e televisão
evangélicos estão cada vez mais histéricos à medida que se aproximam as eleições
para o Congresso, em novembro. Obama, o comunista, Obama, o islâmico são os
gritos de guerra de uma facção delirante da mídia eletrônica dos EUA que só vai
sossegar quando conseguir deflagrar uma nova guerra civil.


** A estreia de Marília Gabriela como apresentadora do programa Roda
Viva
da TV Cultura foi ruidosa, mas valorizou o que se pretendia esquecer –
sua intensa atividade como garota-propaganda de televisão. Jornalistas não são
vendedores de produtos, são buscadores da verdade. Longe de servir de estímulo
ao bom jornalismo, o novo Roda Viva escancarou a degradação daquela que
já foi chamada de última profissão romântica.