Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

PCC, esperança e memória

Die Sterne sind nicht immer da. (As estrelas não está sempre lá.) Bertold Brecht, Legende vom toten Soldaten

Maio de 2006: o Primeiro Comando da Capital barbarizou o país, simultaneamente em vários estados, queimando ônibus e executando dezenas de policiais fora de serviço, em poucas horas, a partir do ‘salve’ ou comando do QG da organização terrorista em São Paulo. Não obstante, a palavra ‘inocência’ só apareceu em público depois do revide (seja que nome ele tenha) ao ataque terrorista. O tardio aparecimento da palavra inocência é ofensivo à memória de 42 vítimas, sobre as quais não pesava a mínima dúvida quanto à sua inocência.

É justo reconhecer que o vocabulário dos jornais e da mídia televisiva, ao qual normalmente se impõe a pecha de sensacionalismo, foi vacilante, no início, ao afirmar que ainda não havia baixas civis (porque policiais fora de serviço assassinados como alvos aleatórios de terror intimidatório são alvos civis), mas no geral deu à guerra tom de voz mais adequado, lúcido e realista que tudo quanto disseram juristas, educadores, intelectuais e ativistas de direitos humanos. O noticiário intuitivamente acertou ao identificar as baixas policiais no número de pessoas assassinadas durante o ataque do PCC. Se fossem alvos militares seriam apenas baixas, porque o militar ou policial que morre em combate morre cumprindo dever. Não houve diferença essencial entre a granada do PCC contra delegacia e aquela contra agência bancária. Esses alvos, escolhidos a dedo pela organização, deram o conteúdo ideológico da ação orquestrada: identificar o aparato de proteção do ‘nosso Estado’ a ‘esse capitalismo e suas elites’. A bandeira de luta do PCC, como organização terrorista, é ideológica: Paz, Justiça e Liberdade!

A terminologia de ativistas dos direitos humanos, como em muitos outros aspectos da questão penitenciária e criminal, com a mais nobre das intenções, aqui também fomentou o contrário do humanismo que pregam. Ao defender a inocência onde ela já era discutível, implicitamente imputou culpa onde a inocência era evidente, a inocência de quem morreu primeiro. Em nome de grandes palavras de ordem, como a de que tudo é violência, violência gera violência, tudo é crime, a polícia é igual ao PCC, e outras ofensas rotineiras (nessa hora, ao menos, deviam ter cedido a um silêncio reverente), um discurso humanista fanatizado, aliado ao oportunismo, à pressa ou à alienação dos que insistem na ‘explicação’ do terror pela enumeração de ‘causas’ da exclusão social, vai-se tornando um discurso maniqueísta, fundamentalista, que se caracteriza por quebra ou relaxamento de sensibilidade moral.

A cada discurso de jurista, a cada receituário pedagógico, a cada rol de ‘causas’ verdadeiras e profundas para o terror em São Paulo, penso na ‘Balada do soldado morto’, de Brecht, que ofereço em reverência à memória dos 42 policiais mortos em São Paulo (Legende vom toten Soldaten, a versão é de Cacá Rosset no disco Cida Moreyra interpreta Brecht, de 1988):

Durava mais de seis anos a guerra

E a paz não apareceu

Então o soldado se decidiu

E como um herói morreu

Mas como a guerra não terminou

O rei, vendo morto o soldado,

Ficou muito triste e pensou assim:

‘Morreu antes do fim’.

O sol esquentava o cemitério

E o soldado jazia em paz

Até que uma noite chegou ao front

Um médico militar

Tiraram então o soldado da cova

Ou o que dele sobrou

E o médico disse:

‘Tá bom pro serviço,

ainda tem muito pra dar’.

Apenas por brevidade, resisto à tentação de transcrever o poema todo que no original desenvolve-se em 19 quadras. Muito boa versão de Cacá Rosset está disponível num Dossiê Brecht, publicado na internet pela Associação dos Professores da PUC-SP (Edição nº1 – 1º semestre/2005). Quem lê o idioma do poeta, pode alcançá-lo também pelo Google digitando o título original. O poema segue com uma procissão de respeitáveis personagens, carregando ‘bandeiras esfarrapadas para esconder o soldado’, que só podia ser visto de cima, onde brilham estrelas. Mas as estrelas não estão sempre lá. Devolvido ao front, o soldado morto morre de novo.

Bertold Brecht não chora a morte do soldado, antes dignifica a vida do soldado, trivializada pela barbárie da civilização que o mata em dobro. Com ele podemos gritar contra as ‘instituições’ que sofisticadamente acusam o morto, inocente, de ter morrido por sua ou nossa culpa. Instituições e intelectuais que se impõem como a fina flor da civilização contra a truculência do povo, com impressionante insensibilidade ‘lavam’ em discursos aparentemente humanistas a culpa de quem tem culpa e insinuam culpa na inocência de quem morreu. Não é prerrogativa nossa. Esse é procedimento padrão de sofisticados discursos sobre o terror global pós-moderno. Apelando ora a culpas coletivas e inimigos mitológicos, ora ao auto-desprezo, afirma-se nominalmente ser contra o terror, mas … bem que existe lá um fundo de razão, um desespero, uma desumanidade, cuja culpa nos seria coletivamente imputável. Quem morreu sem nem saber o porquê, afinal, deve ser porque era truculento, bárbaro, era pertencente a um Estado, a uma classe, a uma ‘elite’ beligerantes, ainda que nem o morto nem o Estado, nem a classe nem a elite tenham sabido exatamente por que foram escolhidos os alvos que morreram. Até porque segundo a lógica do terrorismo eles foram escolhidos aleatoriamente dentre alguns exemplares do grupo, Estado ou classe ‘inimiga’. Para intimidação.

Intimidação que aumenta o poder de quem mandou matar.

Qualquer tentativa de compreensão do atentado de maio de 2006 deverá romper esse maniqueísmo do bem e do mal e abandonar as terminologias fundamentalistas de ontem, como a idéia de um ‘aparelho repressivo de Estado’ do libreto de Louis Althusser, por exemplo. Até porque diante do terror essas categorias são inúteis e inautênticas. Não precisamos fechar os olhos incondicionalmente à violência, não precisamos deixar de lutar pelos direitos humanos, para saber e afirmar que nossa sobrevivência como civilização depende e dependerá sempre de polícia, penitenciária e justiça. Precisamos aqui também de um choque de realidade. Quem imagina que ‘o cárcere não é solução’, educadores, acadêmicos especialistas em violência ou ativistas que ainda acreditam que o Estado, leis e penas irão algum dia para o museu de antiguidades, como se acreditou no século 19, todos formam uma procissão que funciona, sem querer ou saber (e recorrendo às mesmas categorias de ontem) como aparelho ideológico de legitimação do poder vitorioso. Só que o único vitorioso no ataque do PCC foi o PCC. Todos os outros fomos vencidos.

O aparecimento tardio da palavra inocência, a dificuldade em reconhecer que o crime contra os direitos humanos foi o primeiro ataque, comandado pelo PCC, tudo isso é significativo de uma confusão – conceitual, mas também um pouco moral – em movimentos que se tornaram reféns de um discurso fanatizado em torno ao ‘amigo’ e ao ‘inimigo’. Se suas bandeiras de luta parecem ‘esfarrapadas’ para esconder o policial, a quem pedem na manhã de segunda feira que retorne ao front para ‘nos proteger’, tudo isso não se deve, porém, a ‘má-fé’: esse é o formidável poder da ideologia. Suas bandeiras estão esfarrapadas principalmente por dificuldade de compreender o que se passou. É verdade que todos ficamos um pouco sem entender. Mas só o fanatismo relaxa a intuição moral a ponto de matar em dobro o bombeiro morto e todos os policiais.

Em tempo sombrio o pensamento tem o dever de ser ainda mais claro que nos dias felizes, até mesmo para tentar comunicar-se. O discurso de amigo-inimigo é incomunicável por natureza. Fechado sobre si mesmo, sabe fazer bem é imputar barbárie, truculência, violência ilícita a seu inimigo, que termina sendo qualquer um que não concorde com seu maniqueísmo, seus conceitos. É um discurso que se esqueceu de emprestar à sua inteligência a bondade. Aqui é preciso aplicar-lhe um corretivo, porque o discurso de direitos humanos em assuntos dramaticamente difíceis, como a questão penitenciária, costuma padecer dessa incomunicabilidade, desse autoritarismo que tão freqüentemente fomenta a barbárie que condena.

A clareza do pensamento deve começar pelas premissas mais incontestáveis. A primeira delas é de que o ataque do PCC (seja o nome que se lhe dê, ou as razões) é inescusável. 42 policiais assassinados pelo salve do PCC morreram como alvos civis em absoluta inocência. Qualquer esforço de compreensão terá de resgatar, em memória, a dignidade e o valor da vida de vítimas inocentes. Lukács escreveu que a esperança e a memória são as únicas experiências do tempo que podem ser vitoriosas sobre o tempo. Precisamos agarrar-nos a essas duas experiências ainda mais fortemente quando a brevidade da vida se tornou mais fugaz, porque inutilmente, estupidamente, brutalmente abreviada. Para forjar esperança é preciso compreender, em primeiro lugar, a natureza do ataque.

A natureza do ataque do PCC

Manifesto de renomados juristas publicado na Folha de S.Paulo em seguida ao atentado conclama-nos a ‘fazer uma análise objetiva do episódio e propor medidas compatíveis com o Estado de Direito consagrado em nossa Constituição’. Afirma em seguida, como diagnóstico, que ‘estamos, antes de mais nada, diante de uma tragédia social’. Propõe como remédio imediato uma ‘reestruturação – de cima a baixo – no aparelho repressivo de Estado’ (‘Civilização, sim; barbárie, não’, na Folha de S.Paulo, 18/5 2006).

O diagnóstico não tem nada de objetivo: logo, o receituário não podia ser mais infeliz. Sobre o corpo de 42 policiais executados pelo terror, e da impotência do Estado em defender-se do terror, com certeza não era hora de recorrer à categoria antediluviana da vulgata marxista do ‘aparelho repressivo de Estado’. O aparelho repressivo não tinha poder de estancar com procedimentos legais e constitucionais uma declaração de guerra. Em reconhecimento à intenção evidentemente nobre dos juristas que firmaram o manifesto, que alguém na pressa redigiu, reconheçamos que provavelmente desconheciam os fatos. A natureza do PCC só foi tornada pública, pelo menos no cenário nacional, depois do atentado. Provavelmente por isso os juristas não viram em ação uma organização terrorista, como inequivocamente todo mundo viu depois, com a publicação de detalhes de formação, ideologia e aparato militar do PCC, com seus ‘soldados’ e alto comando. Em reportagem da Folha, por exemplo, soubemos que:

‘Pela hierarquia de comando criada em 1993, pilotos são aqueles detentos que cuidam das ‘faculdades’ , ou seja, das prisões onde há domínio do PCC. São eles também que repassam, com o uso de telefones celulares, as ordens para que ataques ou mortes em nome da facção sejam cometidos pelos ‘bin ladens’ ou homens-bomba, em referência a Osama bin Laden, líder da Al Qaeda, e aos membros de organizações terroristas islâmicas. Para pressionar um ‘bin laden’ a cometer crimes, os pilotos da facção dão um ‘salve’ (aviso) em que apresentam duas opções aos arregimentados: ou ele acerta o valor que deve ao grupo ou cumpre a missão, seja ela no seu bairro ou em uma outra área; caso contrário, ele passa a ser considerado um traidor do ‘Partido do Crime’ ou do ‘15.3.3’ (por causa das posições das letras ‘P’ e ‘C’ no alfabeto), as outras nomenclaturas da facção paulista’.(‘Das ruas do Cambuci à Arte da Guerra‘, por André Caramante, da equipe de reportagem da Folha de S.Paulo, edição online).

O PCC, retratado acima, é típica organização terrorista. Como escreve Agnes Heller, em artigo no qual traça uma ‘genealogia do terror pós-moderno’ (‘911, or Modernity and terror’, revista Constellations, Vol. 9, Nº 1, 2002, cuja tradução em português gentilmente autorizada pela autora será publicada na edição 17 do Boletim científico da Escola Superior do Ministério Público da União), toda organização terrorista é uma organização totalitária e assim é:

‘centralizada e hierárquica; ela opera como um exército através de relações de comando/obediência, e como tal está perfeitamente ajustada à operação clandestina e ao exercício do terror. Uma tal organização, como a Al Qaeda, mostra-se como um poder homogêneo. O poder homogêneo é atraente, e lá onde ele se institucionaliza – como é esse nosso caso – ele torna-se uma instituição carismática. Um poder arrogante, cheio de si e inflexível, quando organizado e mobilizado para a ação, é quase sempre carismático e assim também são seus Führers. Na sua visão cada dissidência é alta traição’.

Uma análise rápida dos fatos apresentaria já a contradição lógica do manifesto dos juristas. Porque se sofremos um ataque terrorista, não possuímos defesas constitucionais. E quanto ao diagnóstico: ou tudo foi criminalidade normal, ainda que organizada, ou tragédia. Tragédia é sempre algo inevitável. É mais uma palavra que lava a culpa dos culpados e inverte o ônus da culpa, imputando-a aos inocentes.

A impotência da Constituição

Para um ataque armado deflagrado por organização terrorista interna, como o PCC, nós não dispúnhamos e ainda não dispomos de defesas constitucionais. O século 21 iniciou em 11 de setembro de 2001 pela mão da Al Qaeda, e será o século do terrorismo, das culpas coletivas, de inimigos mitológicos superdimensionados contra os quais organizações terroristas de feitio carismático movimentam todo o potencial de ressentimento do inconsciente individual e social, o ‘ódio contra os ricos’, a frustração intelectual produzida, ainda segundo Heller, nas modernas universidades de massas.

Nossa Constituição, que nem fez 18 anos, ingressa no século 21 com sinais de envelhecimento precoce. Não cogitamos, nos ‘dias felizes’ de libertação da ditadura militar, da possibilidade de conflitos internos armados deflagrados por organizações terroristas contra a estabilidade democrática. Nossa Constituição foi escrita sob o trauma coletivo causado pela simples menção à locução ‘segurança nacional’, sob o trauma da doutrina do amigo-inimigo, inspirada em Carl Schmitt e que serviu de aparato conceitual para a ditadura militar, com a perseguição do inimigo interno, real ou imaginário, e toda a parafernália da guerrilha psicológica e dos motivos que embasaram a instauração do regime de exceção em nome da salvaguarda da democracia.

O estado de defesa da Constituição de 1988 permite a suspensão de sigilos telefônicos, o que era inútil. Os terminais telefônicos de suspeitos vinham sendo monitorados, mas era operacionalmente impossível acompanhar a intensa movimentação de comunicações que precedeu ao ataque, assim como seria impossível extrair do conhecimento da ordem para barbarizar, imediatamente em execução, alguma providência eficiente de autodefesa. O estado de defesa constitucional permite restrições ao direito de reunião, o que evidentemente está associado a uma imaginação moderna, mas não pós-moderna, de sublevação. Na era da comunicação virtual e do telefone celular é totalmente desnecessária a reunião física de sublevados. Ademais, o alto comando já se encontrava reunido. E a malha de ‘soldados’ (os bin-ladens) em liberdade é, como em toda organização terrorista, forjada na clandestinidade, logo, invisível. Minha convicção acerca da impotência do Estado legal e constitucional diante do ataque do PCC não é um elogio ao poder do inimigo, mas reconhecimento de que apelos à ordem e ao Estado de direito, em retrospectiva, padecem de uma certa irrealidade. E se padecem dessa irrealidade, não só não cumprem propósitos civilizatórios, como até mesmo legitimam o vitorioso, que foi quem declarou guerra. Quem afirmou, publicamente, ter mandado seus soldados matar a esmo, para barbarizar. O poder arrogante e sedutor, que em rede nacional aproveita para tentar co-optar agente penitenciário, perguntando se ele ‘acredita no que faz’, foi o que publicamente declarou que ‘nós, do PCC, podemos matá-los, se quisermos, mas vocês, da lei, não nos podem matar, porque seu Estado tem o dever de proteger-nos‘. O que em situação de guerra é, evidentemente, meia verdade.

O único avanço de nossa Constituição democrática de 1988, aqui, foi ter considerado que o terrorismo é crime hediondo, insuscetível de graça, anistia e prescrição. Equiparou, corretamente, o terrorismo ao crime comum para distingui-lo do crime político, de opinião, de modo que o terrorista não está abrigado por direito de asilo. Retirou do terrorismo qualquer sombra de heroísmo romântico que ainda lhe possa emprestar uma leitura equivocada (mas como tudo pode ser lido para o mal, até livros sagrados, uma leitura possível) da tradição de guerrilhas e revoluções populares. Mas, temos de convir que a Constituição de 1988, sob o trauma da ditadura, não previu a hipótese de guerra interna vivida em São Paulo em maio de 2006.

O ataque do PCC – tragédia ou crime?

A tragédia é incompatível com a ‘normalidade’ com que se pretende retratar o ataque do PCC. Ou tudo é ‘criminalidade normal’ ou é tragédia. O recurso à tragédia é um recurso lingüístico válido, em termos jornalísticos, porque descreve algo fora do normal, extraordinário, que a gente não entende bem à primeira vista, e às vezes nem mesmo depois. Mas em termos de justiça é um recurso injusto que deve ser evitado. Porque a tragédia equipara um fato humano e contingente (que afinal tem assinatura, partiu de uma ordem para barbarizar, dada pelo alto-comando de uma organização terrorista) a uma catástrofe natural. Ou resvala para a híper-sofisticação dos que recorrem à estética para minimizar o terror. Lido em termos estéticos, o diagnóstico da tragédia é quase obsceno, porque culpa o morto por sua execução. Na tragédia não existe crime nem loucura, escreveu Lukács (A teoria do romance). Em sua interpretação clássica, a tragédia é conflito entre duas justiças, a lei da terra e a lei do coração (dos deuses do lar), encarnadas nos paradigmas de Creonte, o tirano, e Antígone. O que menos ocorreu no ataque do PCC foi um conflito entre ‘duas justiças’ ou uma equivalência de poderes. Houve um poder e houve um tirano. O trágico é que os defensores de direitos humanos que tradicionalmente se imaginam partidários da lei do coração (de Antígone) aqui têm feito o papel do tirano, de Creonte. O coro (o povo), como na tragédia clássica, está onde sempre esteve: silenciosamente ao lado dos vencidos, em reverência.

O argumento pós-moderno da culpa coletiva de ‘elites’

Outro argumento que fomenta a barbárie em nome da civilização é o da ‘culpa das elites’ pelo ataque do PCC. Juristas e humanistas e suas ‘causas’ verdadeiras e profundas, a exclusão, a ofensa de rotina à polícia como instituição violenta e bárbara por natureza, tudo isso ferve um caldo que repete os discursos híper-sofisticados de intelectuais sobre o atentado terrorista ao World Trade Center em Nova Iorque. Discursos moralmente lassos que levaram a filósofa Agnes Heller a escrever artigo em que recusa todas as ‘causas’ de suposta explicação do terror por grave inconsistência lógica, já repudiada por Aristóteles em sua Metafísica. Afirma a autora que os fatos históricos são sempre contingentes e só podem ser compreendidos, jamais explicados pela soma de suas causas suficientes.

‘Mesmo que se pudessem enumerar as causas suficientes de um fato histórico, o que é impossível, esse fato ainda permaneceria contingente e completamente incompreendido. Aristóteles disse que se precisa conhecer a causa final e a causa formal, i.e., a essência ou a função de alguma coisa, para poder explicá-la ou compreendê-la’ (Heller, ’11/9, ou Modernidade e terror’, já referido).

Em nosso caso, nada do que afirmam os intelectuais ou defensores de direitos humanos, com a melhor das intenções, explica o ataque do PCC a São Paulo, se não compreendermos a essência e a função da organização terrorista em que se transformou o PCC, a natureza do ato praticado e sua contingência. Sequer vamos discutir as ‘causas’ apontadas, muitas delas reais, porque o ‘salve’ do terror que mandou executar policiais fora de serviço é um fato histórico contingente, que não existiria se não existisse sua causa final e formal, a organização terrorista, de hierarquia militar, e o ato (o salve) essencialmente equiparado a uma ordem de ataque ou declaração de guerra.

Para reinstituir a paz, precisamos raciocinar e agir no tempo do absoluto presente.

Os que embarcam na utopia da redistribuição adequada como remédio da insegurança real raciocinam no tempo mítico do ‘futuro-absoluto’. Os que absolvem o terrorismo hoje porque seria uma legítima vendetta a 506 anos de culpa da elite da qual fazemos parte, sofisticadamente reportam-se ao passado mitológico como escusa ideológica para qualquer crime. Tornam o passado um passado-absoluto, igualmente mítico, que não explica nada, mas serve para justificar tudo. A imputação de culpa à ‘burguesia branca’ em discurso do governador de São Paulo, interpretada ora como súbito ataque de razão, ora como súbito enlouquecimento (Deonísio da Silva, no Observatório da Imprensa) talvez não seja razão nem loucura: mas um choque de realidade. O governador retornou, como um espelho, a tantos que não viram (e nem se imaginaram no lugar de quem estava lá) que São Paulo sofreu um ataque de guerra, o tom obsceno do discurso de intelectuais e políticos, da esquerda em geral, e suas explicações para o ataque do PCC. Porque é evidentemente obsceno tentar compreender o ataque terrorista do PCC com as categorias identitárias do discurso de esquerda pós-moderno.

A melhor redistribuição de bens possível, com que sempre devemos sonhar, é necessária, mas não é ‘causa’ direta da paz. O silogismo de educadores segundo o qual ‘porque faltou escola, sobrou cadeia’ é falso. Porque faltaram, desde sempre, escolas e cárceres. Não é coincidência o fato de que governos despreocupados com os direitos humanos resolvam as ‘questões sociais’ de modo semelhante tanto na escola como no cárcere. Em São Paulo, sabe-se de quem inventou os ‘latões-escola’, semelhantes à invenção de Santa Catarina da cela-container.

Prosseguindo, recapitulemos nossas premissas. (a) os 42 policiais vitimados pelo ataque do PCC, nunca é demais repetir, morreram em inocência. (b) admitidas todas as causas (suficientes), a exclusão e a violência social, não extraímos da soma delas necessidade inelutável de que 42 policiais tenham sido assassinados. (c) também por isso não estávamos diante de uma tragédia, mas de crime contra os direitos humanos.

A natureza do ataque policial – direito de represália ou ‘preemptive strike’

Sinceramente não sei o que se passou exatamente depois do ataque do PCC. Provavelmente não saberemos nunca o que ocorreu depois do ataque do PCC. Sabemos contudo o que ocorreu antes, porque a declaração de guerra do líder do PCC foi pública. A partir do que sabemos de modo inequívoco, podemos especular sobre o ‘dia depois do ataque’. Quando tudo está sombrio, todos os pensamentos confusos, todas as informações truncadas, é bem possível que a especulação pura contenha mais verdades que a realidade.

Sabemos que foi declarado estado de guerra por organização militar, que atentou precipuamente contra a segurança e a própria existência do Estado democrático. Sabe-se que o Führer dessa organização, o líder do PCC, reconheceu diante de suas vítimas ter dado o ‘salve’ e que já era tarde, que não havia mais como voltar atrás. O Estado, que devia ter o monopólio da violência legítima, viu-se em situação de impotência diante de um inimigo bélico, com poder militar para barbarizar e assassinar por atacado alvos aleatoriamente colhidos, para intimidação da sociedade civil e afirmação de seu próprio poder. É crucial compreender aqui que ao mesmo tempo em que se soube da ordem, ela já estava em execução: lá fora os alvos eram colhidos às dúzias. Havia que estancar o ‘salve’. Por natureza, só o Führer pode dar contra-ordem a seus soldados, eles lhe devem obediência.

O Estado impotente pode negociar com o Führer ou enfrentá-lo. Negociar com o inimigo para que ele dê contra-ordem (que só ele pode dar) e mande seus soldados parar de barbarizar, depois que alvos inocentes já morreram às dezenas, é intuitivamente imoral. A saída ‘b’ é típica do direito de represália. É resposta militar a uma agressão militar. É ato de guerra em tempo de paz.

Só compreenderemos a legitimidade da morte de soldados do PCC, em represália ao crime contra os direitos humanos ordenado pela sua liderança, se compreendermos a natureza dos atentados terroristas e a natureza das represálias. É na doutrina da justiça na guerra que aprendemos a fazer tais distinções, não na doutrina da Constituição (que não vigora em estado de necessidade, e toda guerra é o reino da necessidade). Saímos do reino da liberdade (por mais precária que seja a base material de nossa liberdade, enquanto a liberdade é atributo dos inocentes estamos no reino da liberdade possível) para o universo da necessidade, que é sempre dramático, embora não seja trágico no sentido estético da palavra. É dramático porque se abre aqui um universo de conflito ‘entre a sobrevivência coletiva e os direitos humanos’, como bem definido por Michael Walzer (WALZER, Michael. Guerras justas e injustas – uma argumentação moral com exemplos históricos. tradução de Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 583pp. p. 554).

O jargão de que violência gera violência, truculência gera mais truculência, tem algo de inautêntico em situação de impotência extrema de um Estado legítimo diante de um inimigo bélico absolutamente ilegal e ilegítimo. O problema dessas máximas simplificadoras está justamente em que elas negam a diferença moral entre a primeira violência e a segunda. Segundo Walzer, pecam porque se ‘deixa de distinguir entre a violência que é contida e fruto de reação e a violência que não é nem uma coisa nem outra.’ (idem, p. 366). A máxima simplificadora evita a ‘tensão entre jus ad bellum e jus in bello; derruba a necessidade de julgamentos difíceis; relaxa nosso sentido de moderação moral.’ (idem, p. 451).

É inequívoca a ilegitimidade (por que não dizer futilidade) da motivação do PCC, que barbarizou em revide a decisão administrativa que recusou regalias requeridas, como permissão de ingresso de aparelhos de televisão para ver os jogos da Copa do Mundo. Diante de um ataque bélico injusto, como deflagrado, o Estado, impotente para recorrer a outra via moralmente legítima, tinha jus ad bellum, legitimidade para recorrer à força para salvar vidas de inocentes da continuação dos ataques. Seja como um ataque preemptivo e exemplar (terminologia mais corrente em inglês: ‘preemptive strike’) proporcional ao dano iminente, para que o poder inimigo recue e se abstenha de matar inocentes, seja como ‘represália’, proporcional ao dano já consumado, o ataque à organização terrorista e a morte de pessoas a ela filiadas (que nessa hora subseqüente ao ataque do PCC, apenas, e enquanto não houve cessar fogo, eram consideradas legitimamente combatentes, isto é, não-inocentes) seriam legítimos atos de guerra, desde que respeitados os limites do jus in bello, o sentido de justiça nos meios de guerra. Mesmo na guerra vigoram interditos, como a proibição de executar inimigo já rendido, proibição de tomar reféns, etc.

Mesmo sendo medida de extrema necessidade, a represália não é licença para matar inocentes ou substituição da punição dos culpados por vendetta. A represália não é vingança, embora se assemelhe ao talião na proporcionalidade. É evidente que o jus in bello é sempre o ponto mais delicado na represália ao terrorismo. Walzer aponta dois critérios que são, mesmo nessa zona cinzenta, balizamentos seguros para a justiça na represália: proporcionalidade e imunidade de não-combatentes. Quanto à primeira, afirma que

‘Embora não se possa contrabalançar uma vida com outra, a segunda incursão deverá ser semelhante à primeira em natureza e abrangência’ (p. 371). Quanto à imunidade, afirma que: ‘Embora o ataque terrorista tenha tido civis como alvo, a represália não pode ter o mesmo objetivo. Ademais, os empreendedores da represália precisam tomar cuidado para que civis não acabem sendo vítimas de seu ataque’ (p.370).

A contabilidade do terrorismo é sempre meio macabra, porque o terrorismo não viola só o jus ad bellum mas também o jus in bello e normalmente não nos deixa alternativa menos dramática de defesa que a represália. Tudo aqui é dramático porque o terrorismo nos obriga a distinguir quem morreu antes, inocente, contabilizar nossa baixas, e revidar proporcionalmente para que o atacante se retire da posição ofensiva em que é vitorioso. O problema óbvio é quanto ao jus in bello (a moderação e a justiça na guerra). Como saber que alvo era legítimo? Na contabilidade do terror, o conceito de inocência, que tem circulado de modo confuso nos discursos humanistas e na mídia, exige distinções.

O conceito que vigora na paz e na normalidade, da inocência até prova de culpabilidade com trânsito em julgado, evidentemente não se aplica ao direito da guerra e nem à situação de necessidade extrema. Inocentes civis aqui são pessoas que não tinham associação, sob qualquer forma, à organização terrorista beligerante. Pouco importa, nessa situação de guerra, se possuíam ‘antecedentes criminais’ na justiça em tempo de paz. Soldados terroristas, pela própria natureza clandestina da organização, podem viver por muitos anos sem antecedentes formais na justiça, e mais, por vezes até mesmo sem revelarem sua verdadeira identidade.

O dramático aqui é que a ação de guerra (legítima) precisou confiar em que seus executores não confundissem represália para estancar o poder de guerra do PCC com atos de vingança, e respeitassem a imunidade de não-combatentes. Nenhuma represália é uma ação militar fácil de executar. Durante dois ou três dias de guerra em São Paulo os soldados livres do PCC (os ‘bin-ladens’, que recebem ordens dos ‘pilotos’) foram alvos de guerra justa. O que à primeira vista horroriza nossa consciência moral é o fato de que aparentemente, no terrorismo, todos os alvos combatentes parecem alvos civis inocentes. Esse drama é peculiar ao terrorismo porque os beligerantes estão de tal forma imiscuídos na população civil não-beligerante que por vezes é extremamente difícil distinguir até onde, por exemplo, a base familiar é terrorista ou apenas a família do bin-laden.

A alternativa era, no caso concreto que estamos examinando, horrível: se bin-ladens sob o comando do ‘salve’ seguissem executando inocentes a semana toda não seriam só 42 mortos inocentes, mas talvez 420. Essa perspectiva realista realça a convicção de que vivemos um estado de emergência e de guerra, no qual 42 policiais morreram como alvos do PCC em absoluta inocência (absolutamente fora de combate). Os 109 (ou 79) que morreram depois, podem ter morrido em culpa ou em inocência. Não há uma definição apriorística aqui, porque a convicção de filiação à organização beligerante fazia do alvo civil um legítimo alvo militar durante o tempo em que foi necessário o recurso à represália como única forma de conter o ‘salve’ e substituir a contra-ordem do Líder por um ataque preemptivo.

Como eu disse há pouco, tudo isso é pura especulação. Nós jamais conheceremos em realidade o que se passou depois do ataque do PCC. Vale a pena seguir especulando, porém, porque treinamos nossa sensibilidade moral (que intuitivamente percebe algumas diferenças, mas não consegue sempre fazer delas um pensamento claro) para distinções que não são sutilezas ou retórica (porque são distinções morais) entre a primeira inocência, absoluta, e a inocência de quem foi colhido em ataque preemptivo ou represália. Quero realçar aqui que não me esqueci do meu Aníbal Bruno e de que ‘não existe dever legal de matar’. O policial só está autorizado a matar nas idênticas circunstâncias de autodefesa em que o civil está autorizado a matar: em estado de necessidade ou legítima defesa, em tempo de paz. Agora, se é correto que houve um ataque a soldados do PCC em autodefesa, e que esse ataque tinha legitimidade, não pode ser descartada a hipótese de que tenham morrido alvos inocentes. Ainda assim, pode haver inocência de quem morreu sem haver culpa de quem matou. A legítima defesa individual e com mais razão a coletiva (porque os estados psíquicos nesta última são muito mais conturbados), admitem situações putativas. A palavra é de uso corrente no direito penal, embora não seja para o leigo. O putativo, segundo Houaiss, ‘diz-se daquilo que, embora ilegítimo, é objeto de suposição de legitimidade, fundada na boa-fé)’. Aqui é preciso voltar a distinguir duas violências. (Nem toda violência é igual, talvez se precise ser demasiado humano, demasiado civilizado para reconhecê-lo). O soldado do PCC recebeu o ‘salve’ e saiu para cumprir uma tarefa: planejou, caçou sua vítima com precisão, executou-a enfim possivelmente com prazer (para o soldado terrorista, matar alguém já não é algo interdito: é como uma droga (crime é poder) ou até mesmo afirmação viril (daí dizer-se que o primeiro assassinato é a perda da virgindade do matador, depois da qual coleciona ‘vitórias’ como um don Juan colecionaria conquistas). O policial que mata em autodefesa (ressalva feita à disfunção, que não se nega, porque é parte da vida, e que abordaremos adiante) mata como o cidadão que mata em autodefesa, mantendo todos os interditos, ele não se torna um ‘matador’. O universo emocional da autodefesa é evidentemente mais convulsionado do que o planejamento da execução ordenada pelo ‘salve’. Nessa condição emocional extrema (como foi extrema a situação de guerra no revide policial ao ataque do PCC) talvez nós só possamos contabilizar as baixas, identificá-las com todas as honras e dignidades que todo cidadão igual a nós merece, e lamentar se tiver havido algum erro. Alvos inocentes colhidos como se fossem soldados do PCC podem ter morrido em inocência, mas dessa inocência não decorre sempre culpa de quem matou em situação putativa, compreensível em casos urgentes, extraordinários.

A represália é defesa moralmente legítima contra o terrorismo mas sempre conterá esse lamento pela perda de vidas inocentes. A única justificativa aqui é que a ação militar extrema tenha sido necessária, limitada, proporcional, e tanto quanto possível evitado colher alvos inocentes. Em nenhum outro ato os juízos devem ser tão compreensivos quanto os que são praticados em situações extremas. Que as mortes tenham ocorrido com o objetivo de estancar o ‘salve’ criminoso, que em seguida se tenha contido a guerra do PCC e retornado a uma situação de normalidade, em retrospectiva, são indícios de que os limites possíveis prescritos pela tradição do direito natural para o jus in bello, mesmo na situação mais difícil que é a da represália ao terrorismo originário de civis, aparentemente foram seguidos no revide policial ao ataque do PCC.

Mas, ainda que toda essa especulação seja um equívoco, ou que se pense de forma diversa a respeito da responsabilidade por tudo que ocorreu, havemos de convir que os fatos foram suficientemente graves para que tomemos consciência da necessidade de mudar algo. É preciso reinstituir a paz. Paz não é armistício ou trégua. A beligerância da organização terrorista continua potencialmente lá, porque ainda organizada. Não sabemos em que medida e quando voltará a atacar. Uma das características da organização terrorista é justamente sua extrema mobilidade na clandestinidade. O que podemos dizer é que a situação de beligerância ativa declarada e deflagrada pelo PCC se estancou no tempo. Ao que sabemos, as lideranças do terrorismo do PCC estão isoladas na segurança máxima de Presidente Bernardes. Devem ficar lá ou em estabelecimento de segurança máxima equivalente pelos 30 anos a que têm direito.

Enquanto isso temos tarefas urgentes a cumprir, tanto no plano da compreensão quanto da ação, nesta última, especialmente naquele universo onde se costuma dizer que nada resolve: no plano legiferante.

Em primeiro lugar, o reconhecimento de que foi ordenado um crime contra os direitos humanos pelo Führer de uma organização terrorista deve levar-nos a pensar numa Constituição para o século 21. Defendo que uma nova Constituição para a República democrática e liberal do Brasil aproveite a desidentificação operada em 1988 entre o terrorismo e o crime político, retirando a ‘aura’ de possível legitimidade e heroísmo que ronda todo crime de opinião e convicção política, mas vá um pouco além, para imaginar, em sentido essencialmente diverso daquele do inimigo interno perseguido pela ditadura militar, soluções humanas para conflitos internos armados deflagrados por organizações terroristas. Precisamos de licença constitucional para julgar em conselho de guerra quem brinca de Deus e ordena execuções em massa, como líder público e notório de uma organização terrorista. Diversamente do que continha a Carta de 1988, uma nova Constituição deverá estabelecer entre as exceções à proibição da pena de morte (proibição que para a criminalidade humana e normal, mesmo a mais hedionda, deve permanecer) a hipótese de guerra interna, devendo-se ler que:

‘não haverá penas:

de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX, e em estado de beligerância declarado, expressa ou tacitamente, por organização terrorista, na forma da lei’.

Um dispositivo constitucional como este seria aplicável ao alto-comando do PCC depois do ataque em São Paulo. Um dos efeitos pacificadores da punição é reconfortar quem sofreu a perda dos seus. A vida não volta, mas os procedimentos do júri pelo povo e depois a punição do culpado consolam um pouco. No caso do criminoso de guerra isso não ocorre. Porque o líder do PCC agiu como criminoso de guerra, ele não atentou contra a vida. Ele atentou contra a segurança do Estado, ordenando uma guerra injusta combatida por meio absolutamente injusto, que abate vidas inocentes como quem contabiliza números. Nesses casos, o júri é até uma temeridade. Marcola, submetido a júri por 42 vezes, ainda faria da instituição mais sagrada da democracia simples palco para exibir seu ‘carisma’ e poder, espalhando sedução não mais apenas entre seus bin-ladens mas também para enorme contingente de ressentidos e frustrados, sempre possivelmente cooptados por lideranças carismáticas que estimulem a vida ‘perigosa’ e lutas finais contra os privilégios das ‘elites’.

Criminosos de guerra anseiam pelo júri exatamente para isso, o que já ocorreu, por exemplo, no putsch de Munique. Nesses casos a pena capital é compatível com o espírito da nossa Constituição: só o que ela fez foi esquecer ou não antever que as guerras no século 21 não serão só externas. No ataque do PCC alguém ‘brincou de Deus’. Quem brincou de Deus exclui-se voluntariamente do gênero humano. E é por isso que nem mesmo o fraseado que parece bárbaro, que tanto se escutou da boca do povo na semana do atentado, de que direitos humanos são para humanos, é tão bárbaro quanto parece. Pelo menos nesse episódio, em que um alto comando terrorista mandou, publicamente, executar alvos civis em massa para intimidação geral, esse fraseado não é bárbaro, é humano e assim será em todo atentado terrorista. Hannah Arendt deduziu a ‘lei’ que permitia o enforcamento de Eichmann, contra todas as sofisticações de juristas: foi porque Eichmann brincou de Deus e excluiu-se voluntariamente do gênero humano. Essa é a mensagem mais profícua de seu livro sobre o julgamento de Eichmann, e não a suposta natureza ‘banal’ do Mal, tão repetida por seus leitores, e que a própria autora reconheceu, em correspondência com o filósofo Karl Jaspers, não ter sido a invenção mais feliz do livro.

Não faço incitação à violência. Quanto a possível má-interpretação por alguém que pretenda executar por si o que devia ser feito legalmente, é aqui o lugar de dizer que enquanto não há possibilidade de levá-lo a conselho de guerra como criminoso de guerra, a vida de Marcola é assunto prioritário na segurança nacional (tudo que não se precisa agora é de um falso mártir). E de resto, penso que incita à violência quem pretende que o reclamo das pessoas justas seja sempre truculência e barbárie, que tudo está sempre bem, e ainda nos puxa a orelha por falarmos, depois da guerra, em ‘legislação oportunista e de pânico’. Nada do que se pede aqui é legislação de pânico. Sei que a alteração fere cláusula pétrea, e exige um novo pacto de sociedade. Mas aqui está o núcleo da Constituição: porque se o Estado não assegura sua própria sobrevivência (e é para nossa sobrevivência que ele primordialmente existe) algo na sua estrutura deve mudar. Não precisamos dar adeus às utopias de 1988. São utopias liberais e democráticas, que devem permanecer. Mas para preservação de nossa segurança coletiva contra um novo ataque como o ataque terrorista de maio de 2006 em São Paulo temos de convir que a Carta Magna de 1988 envelheceu.

Por fim, embora já tenha tomado mais espaço do que pretendia, não pretendo encerrar sem voltar-me para uma disfunção policial.

O grupo de extermínio

Falo do grupo de extermínio, que é uma realidade atual ou potencial, em segundo lugar, não porque seja problema secundário, mas porque nossa autoridade para voltar a falar em direitos humanos às instituições policiais ficou seriamente abalada com a escorregadela moral dos movimentos de direitos humanos depois da guerra em São Paulo. Mas não devemos ceder a simplificações. Se um discurso fundamentalista equipara toda a polícia à Scuderie Lecock, é um discurso falso e maniqueísta. Não façamos o mesmo: direitos humanos não são propriedade dos movimentos. Movimentos sociais e ONG’s podem errar na defesa dos direitos humanos e têm errado em muito do que diz respeito à criminalidade. Assim como têm muitos méritos, e um deles está em terem permanente atividade em defesa dos direitos humanos.

Tudo que falei a respeito da guerra foi pura especulação. Volto a insistir que jamais saberemos o que se passou no alto comando policial em reunião com o governador de São Paulo no dia dramático do ataque do PCC. Mas do que sabemos é urgente a tarefa de evitar que um possível ataque policial em autodefesa legitime, em retrospectiva e prospectiva, o ‘modo de agir’ da Scuderie Lecock e outros grupos do mesmo gênero. Não podemos habituar-nos a soluções à brasileira. O que mais preocupa aqui é que possa ter havido um ataque legítimo, mas como eles, os defensores dos direitos humanos, jamais vão compreender, seja melhor fazer uma solução à brasileira, como a que disfarça homicídio no ‘auto de resistência com morte’, sem testemunhas civis, com um B.O esfarrapado, para inglês ver e o IML contabilizar.

O que mais preocupa é que na linha da ‘adoção à brasileira’ que inventamos (tantas vezes, uma forma mais simples e menos burocrática de fazer o bem, a adoção de menor desamparado, moral e socialmente relevante, mas que termina sendo a forma ilícita que também encobre o ato ilícito, o tráfico de crianças e o negócio escuso), tenhamos de presenciar uma ‘represália à brasileira’ e com isso imaginar que tudo volta ao normal. Quando em realidade nem tudo voltará ao normal, depois que o terrorismo fez presença entre nós, se não tivermos consciência de que precisamos mudar algo. Se estivermos corretos em reconhecer um estado de guerra, e uma legitimidade na autodefesa policial diante do ataque do PCC, é urgente que essa ação militar em tempo de paz fique circunscrita àqueles dias dramáticos de guerra. Precisamos com maior ênfase agora proscrever qualquer insinuação de institucionalização da vendetta como substitutivo da justiça estatal. Para isso, evidentemente, precisamos reconhecer na polícia, em sua função típica de proteção (e não em sua disfunção), na penitenciária e em penas efetivamente restritivas de liberdade (e de poder), cumpridas com dignidade para o apenado, um instrumento de nossa liberdade e sobrevivência coletiva.

Precisamos reinstituir a paz e forjar esperança. Não podemos imaginar que um ataque terrorista como o de maio de 2006 não voltará a ocorrer. O Poder terrorista é carismático e clandestino. Outros PCC’s, por todo o país, organizam-se à imagem e semelhança do paulista. Outros líderes forjam-se à imagem e semelhança do Führer do PCC, talvez sem tanta leitura, mas com outros charmes que encantem bin-ladens aqui fora. Precisamos reconstruir a justa e proporcional retribuição ao delito, preservando a vida e a sobrevivência física da coletividade. Sem fazer da morte de inocentes capítulo didático de lições da história, mas honrando suas vidas e suas mortes, precisamos estancar a roda da vingança e fixar o ano zero em que aprenderemos o que já se devia ter ensinado aos juristas e aos ativistas de direitos humanos no país: que ao crime corresponde castigo, pena, retribuição. Que educação é dever do Estado para com as crianças. Que reeducação de adultos na cadeia é uma utopia incompatível com a dignidade da pessoa humana, como sustentaram Kant e Hegel, contra Beccaria, e nisso não foram bárbaros. Ressocialização é dever do Estado que começa depois que o apenado cumpriu sua pena, pena que deve cumprir com dignidade, mas sem ficção.

Matar não é experiência normal, não é função, e não é conduta típica de organização policial. Se foi preciso matar em autodefesa, que isso se circunscreva ao dramático dia de guerra. Quem matou em autodefesa segue sendo inocente e precisa proscrever qualquer insinuação, qualquer estímulo a tornar-se matador, justiceiro ou seja que nome tenha o terrorista da Scuderie, organização que é como uma outra face do PCC. Temos uma lei de segurança que ninguém sabe o que fazer com ela. Talvez seja hora de pensar uma nova, nem que seja para proscrever o nome traumático da LSN. Uma lei de defesa democrática, que com certeza também proscreverá a Scuderie e organizações do mesmo gênero, que não honram nenhuma instituição policial. Proscreverá também todos os seus símbolos, trajes e insígnias. Civilização, sim, barbárie não.

Sob outros fundamentos, faço minha a conclamação contida no título do manifesto dos juristas. No geral, penso que o radicalismo pacifista que se mostra no discurso contemporâneo de direitos humanos opera, contrariamente a suas melhores intenções, efeitos bárbaros e incivilizados. Fomenta a barbárie que pensa combater. Subscrevo à conclusão de Michael Walzer, a respeito da civilização: ‘a moderação na guerra é o início da paz’.

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Procurador da República, autor de Democracia ou Fundamentalismo? Esboços de compreensão política (Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004), mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e em Filosofia pela New School for Social Research, Nova York, EUA