Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Pelé x Ronaldinho, debate estéril

A impressão que se tem é que alguns integrantes da mídia esportiva perderam os sentidos ao dar vazão a uma discussão estéril que tomou conta de programas esportivos, jornais e sites de notícias em tempo real. Nos últimos meses, parte da crônica brasileira começou uma campanha para destronar Pelé do título de maior jogador de futebol em todos os tempos. A maioria, claro, preocupada somente em elevar a venda de suas publicações, além da audiência de seus programas.

A revista Época cometeu o despropósito de abrir a edição de 15 de maio com a seguinte manchete de capa: ‘Ronaldinho, melhor que Pelé?’. Observe-se que a revista não fez comparações entre os atletas. Já foi logo perguntando se Ronaldinho Gaúcho é melhor do que Pelé. Ou seja, para Época, o jogador do Barcelona já é Pelé. Aberração atrás de outra. Deu para perceber, lendo a fantasiosa matéria, que não houve sintonia entre repórter e editor. O primeiro, o verdadeiro ‘dono’ da reportagem, escrevia uma coisa; o editor entendia outra. De propósito, claro.

Alguns jornalistas e ex-jogadores convidados pela revista para avaliar as qualidades de Pelé e Ronaldinho cometeram o despropósito de dar nota 10 a ambos no quesito ‘chute’. Quando confrontaram a qualidade de ambos, certamente os analistas de Época levaram em conta apenas o chute com o pé direito. Pelé era tão eficiente neste quesito que não se sabia se ele era destro ou canhoto. Há, aliás, menção sobre esta qualidade no filme Pelé Eterno. Mais: a bola usada por Pelé não era impermeável. Em campo molhado, a pelota quase dobrava de peso. E mesmo assim saíam canhões, de ambos os pés.

Alguém se lembra de algum gol anotado por Ronaldinho com potente chute de pé esquerdo, daqueles que estufam as redes? E de cabeça, que mais parece um chute de Roberto Carlos? E por que a revista não incluiu no julgamento o quesito ‘fome de gols’ ou mesmo ‘capacidade de escapar dos pontapés dos marcadores’? Não vou entrar em outras questões, como cabeceio, passes, arrancadas e dribles.

Pesquisas fajutas

O interessante é que o título utilizado por Época ‘Ronaldinho, melhor que Pelé?’ foi sendo derrubado a cada parágrafo escrito pelo repórter Ivan Padilha. Um deles é o mais engraçado: o repórter fala em lances geniais, cita a habilidade do jogador com a bola nos treinos do Barcelona, mas faz um alerta ao leitor: a façanha de Ronaldinho, que num comercial acerta quatro vezes a trave sem deixar a bola cair no chão, é truque de imagens. Época usou essa mesma sutileza, agora em edição de texto, para dar ares de uma disputa acirrada entre o atleta de ontem e o de hoje.

Mas foi a TV Bandeirantes, que transmite as partidas do Campeonato Espanhol, onde joga Ronaldinho Gaúcho, que deu início a esse debate estéril. De olho no filão da propaganda, a emissora está tentando de todas as formas renovar patrocínios para a próxima temporada. Nada mais acertado, sob o ponto de vista do marketing, comparar o melhor jogador de futebol do momento com o maior em todos os tempos. Jornalistas experientes embarcaram nessa discussão, repito, inútil. Até Luciano do Valle engrossou a farra. A Band chegou ao cúmulo de colocar enquete no ar ‘se Ronaldinho Gaúcho já poderia ser comparado a Pelé’.

No programa Bem, Amigos!, apresentado por Galvão Bueno no Sportv, o papo também rolou solto na segunda-feira (15). O ex-jogador e comentarista Casagrande, que nunca fez tipo e jamais aceitou o ‘padrão Globo’, foi um dos poucos que se rebelaram contra essas pesquisas fajutas e discussões inócuas. Quando chegou sua vez de ‘comparar’ Ronaldinho a Pelé, Casão saiu-se com esta: ‘Pelé é incomparável. E não é por causa dos números extraordinários de Pelé. É que Pelé está bem acima de todos os outros jogadores espetaculares, como Maradona, o melhor que vi jogar’.

Sem desculpas

Casagrande quis, em outras palavras, dizer aos colegas de bancada que, mesmo se Ronaldinho Gaúcho vier a superar a marca de 1.281 gols do Rei (o que é impossível) ou ganhar três Copas do Mundo, ainda não terá conseguido provar que é o maior em todos os tempos. Isto porque, dizem, apenas 30% do que Pelé fez ficou gravado de alguma forma.

Só para ilustrar análises sobre as poucas imagens registradas com lances de Pelé, meu filho, de 5 anos, indagou se aquilo que ele estava vendo era videogame. Os gols anotados pelo Rei eram, na visão de uma criança, obra dos mágicos da computação. Um sobrinho, espantado, definiu: ‘Que isso, tio! Esse Pelé era um demônio!’. Ambos assistiam ao filme Pelé Eterno. É, portanto, questão de observar, de demonstrar interesse para assistir a lances de ambos para, só depois, confrontar as qualidades de um e de outro.

Antes de Pelé Eterno ainda havia desculpas do tipo ‘não vi Pelé jogar’. Eu mesmo fazia questão de afirmar que, mesmo sendo torcedor do Santos, considerava Maradona melhor que Pelé. Só vi o argentino jogar. Ocorre que o filme foi produzido justamente para não deixar dúvida e fazer com que torcedores, como eu, pudessem chegar a uma conclusão apenas: Pelé é incomparável. O que o Rei fez é inigualável.

Melhor camisa 10

Comparar Pelé a Maradona ou a Ronaldinho é como pôr no mesmo patamar escritores de ontem, como Machado de Assis, com os de hoje, como Paulo Coelho, um dos autores mais vendidos no planeta. Do jeito que a coisa tem sido levada ao público, parece que os analistas escolhidos para participarem desse debate jamais viram Pelé jogar, ou não foram responsáveis o bastante para ver Pelé Eterno. Se não viram o Rei desfilar sua magia pelos campos de futebol no Brasil e fora dele, que se sintam, ao menos, no dever de assistir ao filme.

Por falar em Pelé Eterno, as TVs brasileiras precisam reciclar suas imagens de arquivo com lances do Atleta do Século. Elas são as mesmas, há décadas. Os editores de imagem não se cansam de repeti-las. Preguiça ou incompetência pura. Basta copiar apenas 10% das imagens exibidas em Pelé Eterno para brindar o telespectador com lances inimagináveis e jamais vistos em todo o mundo, mesmo nos dias atuais, quando as câmeras de TV flagram até as veias dos jogadores latejando.

A revista Época, das Organizações Globo, tentou fazer sua parte para promover a Copa do Mundo. Afinal, o grupo paga milhões à Fifa para ter direito de transmitir ao vivo os jogos da competição. O esforço dos veículos do grupo chegou ao site do programa Globo Esporte. No domingo 21/5 havia uma enquete perguntando quem seria o melhor camisa 10 da Seleção Brasileira em Copas. E o brilhante Zico aparecia com vantagem imensa sobre Pelé. Os flamenguistas, claro, votaram em peso.

Não por acaso

A enquete, em si, não deve ser contestada. O que não se pode admitir é que o site coloque o ótimo Zico e o espetacular Rivellino em condições de igualdade com o Rei. Pelé não tinha que entrar em nenhuma pesquisa, muito menos fazer parte de enquetes fajutas, desprovidas de qualquer caráter científico. Estamos em pleno século 21. A maioria dos internautas nunca viu Zico jogar. Que dirá Pelé!

Fajutas ou não, essas enquetes vão repercutir, por exemplo, que Zico desbanca Pelé e que Aldair foi apontado como o melhor zagueiro de todos os tempos, batendo nada mais, nada menos, que Bellini e Mauro. E mais: incompreensível ver Branco eleito o melhor lateral da Seleção, à frente de Júnior e do lendário Nilton Santos. O site do Globo Esporte está de sacanagem com o futebol brasileiro.

Caso algum veículo pretenda confrontar o futebol de Ronaldinho ou de qualquer outro jogador com o de Pelé, que entregue uma fita de Pelé Eterno a cada um dos votantes ou analistas. Os lances de Ronaldinho Gaúcho são exibidos todos os dias na TV ou em propagandas. As de Pelé em filme. Quem o assiste não tem dúvida: Pelé não foi eleito o atleta do século (e não apenas jogador de futebol) por acaso.

Duas vidas

Pode parecer que eu sou contra o surgimento de um novo Pelé. Longe disso. Torço para que Ronaldinho Gaúcho traga sozinho o hexa da Alemanha e ganhe muitos outros troféus de melhor do mundo. Mas, convenhamos, para ser considerado Pelé – que virou sinônimo de meta a ser atingida como o melhor de sua área, o Pelé do Jornalismo, o Pelé da Medicina, o Pelé das Artes ou o Pelé da Engenharia – o pretenso candidato tem que nascer Pelé.

O jogador Pelé surgiu aos 16 anos. Ronaldinho começou a ser visto, mesmo com dezenas de câmeras espalhadas pelos gramados do mundo, aos 24 anos. Teve passagem apagada pela França e fez uma Copa do Mundo em 2002 sem brilho. Todos esperam que ele seja o grande nome na Alemanha, aos 26 anos. O que a mídia esportiva brasileira deveria colocar em disputa, em debate, é se Ronaldinho Gaúcho já pode ser considerado melhor que Maradona.

Para ser Pelé, o nosso atual brilhante camisa 10 teria que nascer de novo ou pedir a Deus que lhe dê mais 30 anos de futebol, em plena forma física e técnica. Por outras palavras, o espetacular jogador gaúcho precisaria de duas vidas para chegar ao nível de Pelé. Os números e as poucas imagens do rei Pelé, num tempo em que seus marcadores não eram expulsos e sequer eram advertidos com cartão amarelo, não nos deixam mentir, nem nos fazem recuar um milímetro sequer sobre esta convicção: Pelé, por enquanto, é incomparável. É único. É inigualável.

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Jornalista em Brasília