Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Pitonisas e magos foram os derrotados

Coroas de louros para os vitoriosos, coroas de flores para os vencidos. Além delas, duas auspiciosas notícias fúnebres: a pesquisite levou tremenda surra e, o marqueteirismo, sova histórica. Bom para a política, bom para a democracia, melhor ainda para o jornalismo.


Na realidade, foi uma coça só: a devoção desmedida às pesquisas e o culto exagerado ao marketing político fazem parte do mesmo fenômeno, pontas do mesmo processo. A carnavalização eleitoral depaupera e deforma tanto o jogo político como a sua cobertura jornalística.


Símbolo da pesquisite, na realidade sua inventora, a Folha de S.Paulo saiu visivelmente machucada do primeiro turno do pleito paulista. O jornalão tanto usou as pesquisas que chegou a criar uma empresa especializada, o Datafolha, da qual é principal cliente. Sua veneração pelas sondagens converteu aquilo que parecia ser mais um de seus modismos sazonais numa de suas marcas.


Graças a isso, a numerologia converteu-se em procedimento jornalístico rotineiro, mesmo fora da temporada eleitoral. Exemplo clássico do círculo vicioso – inventa-se uma pseudoverdade que logo será levada à opinião pública como sua autêntica manifestação. Auto-engano exógeno.


Obrigação divinatória?


Nos últimos anos não foram poucos os casos em que uma denúncia (em geral produzida por um grampo, vídeo ou dossiê secreto) acionava imediatamente uma sondagem de opinião que, antes mesmo de investigada e confirmada, transformava-se numa condenação sumária.


A pesquisite é a filha dileta da Era do Factóide – muito visível ao longo dos anos 1990, injusto atribuí-la apenas à Folha. Todos os jornalões (inclusive o combalido Jornal do Brasil) tentaram clonar o recurso criando empresas especializadas ou associando-se a entidades acadêmicas. Um dia descobriram que sairia mais barato e menos comprometedor divulgar o resultado do Datafolha e dos demais institutos concorrentes. A Folha adorou, transformada em monopólio da profecia. Agora veio o troco: ficou isolada na berlinda já que o Ibope, o Vox Populi ou o Sensus apenas produzem informações – não são veículos.


Este Observatório há anos chama a atenção para os males do pesquisismo e da pesquisite que acometem nossa mídia [remissões abaixo]. A revista Veja finalmente despertou para o assunto e na edição corrente (nº 1874, de 8/10/04), com uma excelente investigação de cinco páginas, colocou sob suspeita a enxurrada de referendos [leia a íntegra da matéria no primeiro bloco da rubrica Entre Aspas, nesta edição].


Fiada na sua infalibilidade e na da sua subsidiária, a Folha foi o único dos três jornalões nacionais a antecipar em manchete na edição de domingo (3/10) os resultados numéricos de um pleito que ainda não se realizara:


* Serra alcança 37%; Marta tem 34%


No subtítulo, num esforço para garantir-se de eventuais surpresas, a constatação de que havia um empate técnico. Perdida no meio do texto da primeira página, a preciosa informação sobre a margem de erro: 2 pontos. Folha e Datafolha ferraram-se sozinhas. Deu Serra 43,5% e Marta 35,8% – nem sombra de empate.


O concorrente O Estado de S.Paulo, desobrigado de defender uma empresa associada, reproduziu os resultados do Datafolha e comparou-os com os do Ibope:


* Marta e Serra se alternam em primeiro lugar


No subtítulo preveniu-se de algum tropeço dos institutos e tirou o corpo fora: ‘Serra lidera uma das pesquisas e Marta, a outra. Mas ambas apontam empate técnico’. Quem divulga erros também está errado.


O Globo, atento ao Rio, seu mercado preferencial, comprometeu-se menos e, ao invés de uma profecia categórica, saiu-se com o óbvio ululante.


* Disputa sobre 2º turno é voto a voto


Certamente não perdeu um único leitor. E onde está escrito que jornais responsáveis estão obrigados a adivinhar os resultados de uma votação? Em que manual ou código de jornalismo está determinado que no dia da eleição a missão do jornal é fingir-se de pitonisa e antecipar o que ainda não aconteceu?


Religião marqueteira


Além dos riscos e escorregões inerentes à perigosa roleta dos vaticínios, a antecipação de prévias contém indiscutível carga indutora. Indecisos em geral decidem pelo vencedor. E às vezes os indecisos fazem a diferença.


Embora os regulamentos eleitorais vigentes não proíbam a divulgação de sondagens na véspera ou no dia da eleição, a mídia mais responsável deveria exercer um autocontrole e abster-se soberanamente deste profetismo. Ganharia dose dupla de credibilidade – ao recusar previsões sempre perigosas e ao abrir mão de um direito que pode comprometer sua imparcialidade.


Veículos isentos devem abster-se da tentação divinatória, mesmo que no dia da eleição sejam obrigados a produzir manchetes menos trepidantes e mais mornas.


Nas edições do day after (segunda, 4/10), enquanto o Estado apontava o erro das duas previsões que veiculou, a Folha viu-se compelida a agarrar-se às projeções da afilhada Datafolha. O Estado ficou mais à vontade, a Folha menos. Erraram ambos ao achar que sondagens de opinião são absolutamente ‘científicas’ e devem ser obrigatoriamente publicadas no dia da eleição.


Assim como o Datafolha transformou-se em show-room do profetismo mediático, o publicitário Duda Mendonça foi convertido em vitrine dos poderes mágicos do marketing político. Há uma relação muito nítida entre a devoção cega às sondagens e a devoção cega aos truques de marketing.


O primeiro grande feito de Duda Mendonça foi eleger o herdeiro de Paulo Maluf, o desconhecido Celso Pitta, como prefeito de São Paulo (1996). Em seguida, apesar de acusado de propaganda enganosa, converteu-se numa espécie de parceiro dos deuses quando emplacou Luiz Inácio Lula da Silva na presidência da República depois de três derrotas sucessivas.


Políticos sempre fizeram marketing político – para eles próprios. É o que se chama faro e carisma. Modernamente passaram a ser acompanhados por especialistas em imagem e comunicação, mas o candidato e seu staff é que dão a palavra final sobre as estratégias e linhas de ação. São políticos e a eleição é o momento máximo do processo político: abdicar dele é a suprema traição. Candidatos não podem ser manipulados como marionetes sujeitos a scripts que variam de acordo com os resultados de cada pesquisa. Em pleitos diretos e democráticos o papel do marketing é complementar.


Não foi por acaso que Paulo Maluf (cria da ditadura militar) tornou-se apóstolo da religião marqueteira. Também não é por acaso que a charmosa Marta Suplicy, cliente de Duda Mendonça, perdeu o primeiro turno e seu adversário José Serra – careca, com olheiras e fama de antipático – teve um índice de rejeição mínimo.


Menos pesquisas e menos marketing, mais política e mais debate. A imprensa e a democracia agradecem.