Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Plínio Bortolotti

‘Concluo o texto das colunas na sexta-feira e como não ouvi a entrevista completa da prefeita de Fortaleza, Luizianne Lins, à rádio O Povo/CBN, no dia 13, somente no dia seguinte (sábado) tive acesso aos principais trechos da fala da chefe do Executivo, por meio de matéria publicada na editoria de Política. Ainda que, por hábito, comente neste artigo algum assunto relativo à semana, creio valer a pena retornar a um dos aspectos abordados por Luizianne – um ataque genérico à imprensa – quando questionada por um dos repórteres sobre o Réveillon organizado pela Prefeitura.

Respondendo à pergunta sobre os gastos com a festa, a prefeita afirmou: ‘O que eu acho é que há uma intenção de alguns setores da imprensa. Porque você sabe que a imprensa tem dono, a imprensa não é uma coisa livre como a gente sonha como jornalista e como a gente ensina para os nossos alunos. Ela tem donos e serve a interesses dos donos, em especial. E você tem aí alguns donos da imprensa, juntamente com outros setores, que têm feito questão de desinformar a população e de apostar na desinformação.’

Podem existir jornais, rádios ou TVs a ter por costume agir como a prefeita acusa – não serei eu a confrontá-la nessa assertiva. O problema é a generalização (ou a falta de especificidade) – a mesma da qual os políticos reclamam, quando se os põe, os bons e os maus, os honestos e os desonestos, todos no mesmo saco. Os grupos de comunicação em Fortaleza podem ser claramente identificados por nome e sobrenome. De quais a prefeita está falando? Como ela deixou de nomear os que agem deliberadamente para ‘desinformar’, sinto-me obrigado, como ombudsman do O Povo, a dar uma satisfação aos leitores sobre o comportamento do jornal nesta cobertura.

Para tanto, pedi à editoria de Política um relato explicando como e por que se iniciou a cobertura das questões relacionadas à festa de Réveillon promovida pela Prefeitura. O editor-adjunto Érico Firmo lembra que o assunto foi publicado, pela primeira vez, em 23 de fevereiro, a partir de questionamento do vereador Carlos Mesquita (PMDB), na Câmara Municipal, considerando alto o custo da festa, desmedido o cachê dos artistas que apresentaram no Réveillon, e reclamando da falta de licitação para o evento. O jornal verificou no Diário Oficial do Município os valores divulgados pelo vereador e publicou a matéria com o título Mesquita quer explicações sobre cachês milionários. Na edição do dia 24, vários artistas negaram ter recebido os valores expressos no Diário Oficial. O sanfoneiro Dominguinhos foi irônico: ‘Botaram muito zero aí.’ Na seqüência, os vereadores de oposição iniciaram procedimento para a instalação de uma CPI, o mesmo sendo feito por oposicionistas na Assembléia Legislativa. O Ministério Público Federal, o Ministério Público Estadual, o Tribunal de Contas dos Municípios e o Tribunal de Contas da União passaram a investigar as contas do evento. Obviamente, o jornal não poderia deixar de acompanhar esses fatos.

Os argumentos levantados pela Prefeitura foram contemplados nas matérias e são os seguintes, segundo relacionou o editor Érico Firmo: 1) devido a uma ‘atecnia’, foram incluídos no cachê dos artistas outros gastos, como pagamento dos músicos, transporte, hospedagem e estrutura do evento; 2) a maior parte da despesa com a festa foi paga por instituições que apoiaram evento, tendo a Prefeitura despendido R$ 150 mil do valor total de R$ 2,2 milhões; 3) a licitação não é exigida em situações como essa; 4) o custo de shows artísticos se eleva no fim de ano, ainda assim, a festa de Fortaleza foi uma das mais baratas, em comparação com eventos equivalentes em outras cidades.

A mais – me desculpem se o tom soar um pouco mais alto e com uma subjetividade que evito usar nesta coluna –, conheço os jornalistas que fizeram a cobertura do assunto, a partir dos editores. Nenhum deles se prestaria ao papel de pau mandado do ‘dono’ para prejudicar deliberadamente quem quer que fosse. Acrescente-se também, por importante, não ser essa a prática do O Povo. Portanto, se a prefeita identifica em outros jornais, rádios ou TVs, interesses outros que não os jornalísticos, ela que os nomeie – ou ressalve os que assim não agem. Defendo a qualquer pessoa, detentora ou não de cargo público, o direito de fazer críticas à imprensa. Mas chega uma hora em que é preciso um freio de arrumação para se estabelecer os parâmetros do debate, de modo a não se cair no vale-tudo. É indevido para uma autoridade como a prefeita, com o poder que ela tem, constranger a todos, indistintamente, achando que isso pode refrear um dos papéis essenciais da imprensa: o de fiscalizar o poder público.

Antes de prosseguir, gostaria de fazer um parêntese. Se alguém se der ao trabalho de verificar cada uma das colunas que escrevi ao longo de quase dois anos e meio nesta função, verá que a esmagadora maioria delas é de críticas a este jornal, não tendo sido a exaltação o mote de nenhum de seus textos principais. Obviamente há muitos aspectos elogiáveis no O Povo, e os leitores os reconhecem, mas o papel primordial do ombudsman é apontar as falhas, os erros, os equívocos, espicaçando o jornal para que os evite; ou os corrija tempestivamente quando acontecem.

Pode-se chegar ao fim do processo verificando-se não ter havido nada de errado com as contas do Réveillon organizado pela Prefeitura. Que a causa da celeuma foi apenas uma ‘atecnia’, como diz a prefeita. Ainda que assim seja – e ressalvando possíveis equívocos pontuais que possam ter sido cometidos –, o jornal poderia ter deixado de publicar as declarações feitas por um vereador oposicionista na Câmara Municipal? Deveria abdicar do acompanhamento dos processos abertos pelo Ministério Público e pelos tribunais de contas? Deveria preservar a prefeita e seus secretários de perguntas incômodas? Deveria ter fechado os ouvidos às críticas dos políticos oposicionistas? Se assim fizesse, o que diria Luizianne Lins se ainda fosse um dos mais combativos vereadores que já passaram pela Câmara Municipal? O que diria para seus alunos se ainda militasse como professora de Jornalismo? O que lhe diria o seu ‘olhar de jornalista’, do qual a prefeita costuma se gabar? E, mais importante do que tudo isso: o que diriam os leitores do O Povo?’