Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Política não é literatura

José Sarney e Sebastião Nery. Homens honrados. Brasileiros ilustres. Nordestinos porretas. A política e as letras são suas paixões. Prosadores de mão-cheia, sabem como poucos o ofício de bem escrever. Não tem essa conversa fiada de um ser imortal e o outro não. O importante é que, independente do respaldo acadêmico, a realidade descrita em seus ‘causos’ realmente fascinam e encantam, como só os grandes gênios da literatura sabem fazer. E nós, meros leitores, agradecemos.

Mas o que importa aqui não é o que os une, mas o que os distingue. O ex-presidente sempre conseguiu manter uma separação clara entre a sua luta política e o seu perfil de literato, uma das coisas mais raras de se conseguir. Ele sabe que a política tende a corromper a literatura, na medida em que subordina a criatividade à fidelidade aos dogmas de determinado grupo. Torna o escritor mero propagandista. Certa vez, sobre o assunto, advertiu que o ‘político lida com realidades, o escritor com abstrações’. Como intelectual e político, aprendeu que ‘o intelectual é o homem da justiça absoluta; já o político é aquele que busca a arte do possível, com os instrumentos da contingência’. E ensina: ‘quem governa vive suas circunstâncias. Não decide sobre abstrações, mas fatos’.

Literatura e militância política

Tal compreensão, definitivamente, Sebastião Nery não tem. Ele é um intelectual engajado, no sentido sartreano, que faz da literatura um campo fértil para a sua militância política, sendo aquele típico intelectualeba incrustado na ‘torre de marfim’, manipulando, lá de cima, fatos conforme a doutrina e o interesse imediatos, estigmatizando pessoas e instituições. Romântico, ingenuamente abstrai a realidade e crê lutar por ‘justiça absoluta’ na política, como se fosse viável definir o que seja tal coisa; por isto nunca realizou nada de útil à sociedade em sua carreira política. Age assim, simplesmente, porque nunca governou. Foi sempre coadjuvante ou observador. Passivo. Nunca lidou com a realidade de quem tem o poder e precisa saber decidir; nunca teve que enfrentar as pressões naturais sobre quem governa numa sociedade complexa e conflituosa, como Sarney teve que fazer, não com autoritarismo, mas democraticamente (o que é o mais difícil). E o fez muito bem.

Nery fica com o mais fácil: a fantasia, a manipulação de conceitos quiméricos, o enquadramento abstrato das forças políticas, achando que pode usar, com ‘liberdade’ absoluta, ‘carimbos’ vazios como ‘oligarca’, ‘demagogo’, ‘democrata’, ‘bom’, ‘mau’ ou ‘populista’ contra qualquer um, como se o mundo político ou seus adversários fossem seus personagens. É a utilização maniqueísta e totalitária do mundo, para ele, dividido entre o ‘bem’ e o ‘mal’, amigos e inimigos, quem paga e quem não paga. Diferente de Sarney, portanto, tem a liberdade de confundir literatura com política, podendo ‘literalizar’ os fatos históricos, sem assumir responsabilidades.

Simplismo irresponsável

Não é por outro motivo que diz que Sarney é ‘um oligarca e esteio da ditadura’, pelo fato de ter pertencido à Arena. Este é um simplismo irresponsável que me faz lembrar meus alunos de segundo grau. Simplismo porque, pelas suas peculiaridades políticas conciliadoras, Sarney não diferia em nada de um Tancredo Neves ou de um Teotônio Vilela, quando o assunto é a luta pela democracia. Este último, assim como Sarney, também participou da Arena, mas nunca deixou de ser um ícone da luta democrática. O primeiro, Tancredo, em outro contexto, a do último governo Vargas, como ministro da Justiça, chefiou o DIP, notório instrumento de doutrinação ideológica e de repressão à liberdade de expressão, atuante mesmo no governo eleito do ‘Pai dos Pobres’. Mas este fato também não impede que se possa afirmar que Tancredo tenha sido um batalhador sincero pela democracia no Brasil. Por outro lado, durante a construção de Brasília, peões candangos da Novacap foram massacrados por uma guarda especial por fazerem reivindicações trabalhistas. Foram quase cem mortos. JK era o presidente e a imprensa não pôde falar nada sobre o assunto. Mas este fato não imputa, necessariamente, ao visionário construtor de Brasília o estigma de autoritário.

Mesmo assim, Nery ‘lambe as botas’ de Tancredo e JK, mas destila veneno contra Sarney. Por quê? Seria pela sua ligação recente com Edson Vidigal, José Reinaldo e a empresa de publicidade Pública, notórios desafetos de Sarney? Tenho absoluta certeza que não.

Prefiro acreditar que seja uma questão ideológica. Como homem enquadrado numa esquerda dogmática e pseudo-nacionalista (porque hoje é associada à plutocracia financeira internacional e suas ONGs), Nery simplesmente não consegue superar as construções ideológicas maniqueístas e emburrecedoras que a ‘Guerra Fria’ impôs aos intelectuais brasileiros do pós-guerra. Neste aspecto, não difere muito, no outro extremo de bitolados, dos delírios paranóicos de um Jarbas Passarinho ou de um Olavo de Carvalho, que não conseguem pensar nada que não seja o conceito idiota do ‘perigo comunista’. Para eles, ‘perigo comunista’, para Nery, ‘esteio da ditadura’. Assim como o militar paraense ou o filósofo de magazines, portanto, Nery nunca soube fugir das grandes abstrações/generalizações dos fatos. É escravo de seu próprio romantismo inútil; e acha que é o ‘escritor’, ao seu bel-prazer, dos ‘fatos’ históricos no Brasil. Como um demiurgo criador do mundo, acredita que as forças políticas são apenas seus personagens literários.

Resumo da ópera: como eterno adolescente político, mesmo sabendo escrever muito, muito bem, Nery é apenas um maravilhoso tolo criativo. Ou seria um criativo tolo? Não importa. O que importa é que deveria assumir logo que é, realmente, um genial e criativo escritor. Deveria elaborar personagens verdadeiramente fictícios (e não ficcionar a realidade) e desistir desse proselitismo político capenga e irresponsável. Sua genialidade exige isto. Seria, com certeza, ou um acadêmico imortal ou um Prêmio Nobel.

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Historiador, analista político, assessor do senador José Sarney (PMDB-AP)