Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Politicamente correto e a apologia da crueldade

Uma das grandes manifestações da irracionalidade nos últimos tempos foi o de converter um dado absolutamente contingente na obra de Lobato – o “racismo” – em tema principal.Tal o texto que aponta para Lobato como um criminoso, quase sugerindo a operação de o apagar da fotografia, por supostamente ser um “inimigo da humanidade”, um “agente nazista infiltrado no Brasil” [ver aqui].É curioso que pretendam que a Tia Nastácia ser analfabeta e supersticiosa seja considerado sinal de preconceito racial, quando se sabe que o autor tinha seis anos no momento da abolição da escravatura e, pois, raros seriam casos como os de Machado de Assis ou Lima Barreto – e este último, como se sabe, sofreu discriminações não só pela cor como também pela origem humilde. E, de qualquer sorte, infundiu-lhe, como ao Tio Barnabé, uma boa alma, o que não é irrelevante. Pelos elos que disponibilizo, verão que não deixei de tomar posição na polêmica, com transcrições para chamar ao debate nos seus devidos termos:

http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=519FDS008

http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=632CID005

http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=633JDB006

http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=634JDB007

O papel de Lobato como editor de Lima Barreto vem, inclusive, como um desmentido à campanha difamatória que tem tomado curso nos últimos tempos quanto a um suposto objetivo de consagrar sua obra a propaganda do racismo, ainda mais se considerarmos, mais uma vez, que ele tinha seis anos quando foi abolida a escravatura no Brasil. Nada melhor que um fato, diante dos zumbidos desnorteados das opiniões, para colocar as coisas nos seus devidos lugares. É bom ler, em relação a isto, o excelente comentáriode Pedro Luso de Carvalho, com fartas transcrições.

A medida universal

A atoarda ensurdece não só a relevância da luta de Lobato em torno da auto-suficiência econômica do país, no que diz respeito sobretudo ao petróleo –um dos meus alunos da UFRGS, conhecedor da polêmica em torno do racismo, não sabia que, por causa de haver sustentado que as autoridades brasileiras, na época do Estado Novo, apresentavam um total descaso com o problema do petróleo e do ferro, fora ele preso –, como mesmo pela mudança de um paradigma educacional baseado no terror e na culpa para outro baseado na liberdade, antecedendo em muito preocupações que até hoje são tidas como subversivas. Leia-se, a respeito disto, o diálogo de D. Benta com os seus netos logo após a fábula do Lobo e do cão, no volume Fábulas, na edição da Brasiliense, de 1960, página 78:

“Vovó está com cara de querer falar sobre liberdade.”

“Talvez não seja preciso, minha filha. Vocês sabem tão bem o que é liberdade que nunca me lembro de falar disso.”

“Nada mais certo, vovó! – gritou Pedrinho. Este sítio é o suco da liberdade; e se eu fosse refazer a natureza, igualava o mundo a isto aqui. Vida boa, vida certa, só no Picapau Amarelo.”

“Pois o segredo, meu filho, é um só: liberdade. Aqui não há coleiras. A grande desgraça do mundo é a coleira. E como há coleiras espalhadas pelo mundo!”

Na realidade, o que se pode verificar, aqui, é uma tentativa de converter Lobato em um ícone da direita, aproveitando-se o “politicamente correto” para o fim de obnubilar os problemas que realmente dividiam a opinião pública à época do grande autor paulista e que ainda se põem nos tempos atuais, dentre eles, o da própria questão da tolerância. Expressões datadas, não só em relação à época, mas também em relação à própria biografia do autor, estão sendo objeto de ênfase, quando o que realmente interessa é o dado de permanência. Alguém já teve a curiosidade de verificar o quão subversivo era para as concepções pedagógicas vigentes à época em que viveu o escritor e editor paulista –emesmo para as vigentes aos tempos de minha formação –omodo como propunha a relação entre educador e educando, em que a mente deste não era considerada o papel em branco à mercê de Deus ou do Diabo e as corrigendas não se davam à base de castigos? Conheço ainda pessoas que acreditam que a antiga forma de disciplinar ajoelhando sobre grãos de milho é muito mais eficaz para mostrar a diferença entre o eticamente aceitável e o vitando do que o modo como D. Benta se relaciona com seus netos e os demais integrantes do sítio. Conheço ainda pessoas que acreditam que o educando deve ver nas palavras do educador a medida universal do bem e do mal, e não um referencial que deve dar o exemplo, mais que meramente falar.

Nem moralista, nem intolerante

Com efeito, embora a II Guerra tivesse levado a que muitos fascistas se recobrissem de maior pudor, parece que, hoje, mais do que o simples tema do racismo –que já é, de si, grave –, há uma tendência, em nome de não se enquadrar no “politicamente correto”, a se sustentar a formação de um imaginário próprio de uma Ku-Klux-Klan tropical, ultrapassando, num certo sentido, o vitorianismo da antiga UDN, que lançou as bases não só para a instauração do regime castrense de 1964 como para a formação da Arenae todos os seus derivados. Daí, em nome deste vitorianismo, motive-se o apagar Lobato da fotografia, antes que “o inimigo” – no sentido schmittiano do termo [ver aqui] – descubra o aspecto subversivo de sua obra, no sentido do abandono do padrão educativo judaico-cristão!

A falta do hábito de leitura, hoje – impossível negar o nascimento, em virtude da redução de toda a produção cultural a um vasto fast food internético, do ciberapedeuta, pretensioso com conhecimento superficial de todas as coisas e que opina sobre aspectos delas que realmente desconhece, rechaçando dogmaticamente qualquer refutação a suas preestabelecidas certezas como se fossem manifestações de titanismo, apostasia e heresia – tem como um dos seus principais e deletérios efeitos a incapacidade de distinguir entre uma narrativa de ficção, uma narrativa histórica, uma descrição, uma dissertação e um simples slogan.

Vejamos, entretanto, que estão presentes hoje os extremos: de um lado, o politicamente correto, impondo um verdadeiro estereótipo do que seja o bem agir, do outro, para se combater as artificialidades do politicamente correto, o culto à bestialidade e à desumanidade. Volto a minha atenção para um texto da lavra de Eduardo Guimarãesque comenta uma frase desumana, proferida em um programa televisivo, a título de fazer humor com uma das piores violências que se podem fazer às mulheres.

A despeito de pronunciamentos em sentido contrário de alguns colegas, não me parece o texto nem moralista, nem intolerante, nem mal-humorado, já que, na realidade, tenho visto que, em nome do combate ao autoritarismo do “politicamente correto”, assumir a condição de crueldade e preconceito tem sido vendido como a postura eticamente desejável. É a este perigo real que o texto se refere, e dou plena razão a ele.

O embrião das“ações coletivas”

Os que entendem que tal perigo não existe ou que, a bem de ver, ao visualizá-lo, estaríamos pagando tributo ao “politicamente correto” são os mesmos que troçam dos direitos humanos, consideram um sintoma de comunismo a simples invocação do artigo 221 da Constituição Federal, acham, entretanto, que não há nada de mais em que, para combater o comunismo, sejam os jornais obrigados a publicar receitas de bolo, que, conforme a pessoa do torturador e do torturado, a tortura se pode tornar admissível…

Outros, ainda, diriam que se existem programas que veiculam tais dislates, é porque existe mercado consumidor para eles e as pessoas teriam a liberdade para utilizar o botão de desligar ou o seletor [ver aqui]. Concordaria, se fizesse abstração das profundas diferenças de educação que existem entre os possíveis espectadores. Porém, não se pode negar que existem referenciais que, postos em caráter geral, pela própria Constituição, merecem ser observados. A tese do valor vinculante da Constituição e da legislação é própria do Estado de Direito de conformação ocidental. No direito socialista, o valor da Constituição é relativo, é o de um simples programa, sem força vinculante, ao contrário do que ocorre com a lei do plano, que era denominada “superlei”. Por outro lado, é bom lembrar que para a Suprema Corte dos EUA admitir as class actions,o princípio da soberania do consumidor teve de ser abandonado. E isto justamente na terra onde a livre iniciativa é considerada artigo de fé. Quando se fala em class actions, não se está a referir a atuação dos denominados movimentos sociais, associações em protestos, passeatas ou coisa semelhante, mas sim, daquilo que é o embrião do que se denomina “ações coletivas”, medidas processuais que se deduzem perante o Poder Judiciário, com a possibilidade de serem acolhidas ou rejeitadas.

E qual seria o papel da mídia?

O poder de os meios de comunicação inculcarem valores é que subjaz à questão da eficácia do art. 221 da Constituição Federal, bem como do art. 37 e seus §§ do Código de Defesa do Consumidor. Não se trata, pois, de pavimentar a estrada para o totalitarismo, mas sim de trabalhar com um conceito de núcleo indispensável para a convivência em sociedade. Não há sequer necessidade de irmos buscar experiências dos países sedizentes socialistas para trazermos o tema ao debate, quando temos em consideração que, pelo menos desde Hobbes – cuja premissa foi aceita por Adam Smith, ao sustentar o mecanismo auto-equilibrante dos egoísmos entre si –, os desejos humanos, deixados a si, tendem a impelir o homem a satisfazê-los e a remover todos os obstáculos entre ele e o objeto do desejo.

Mesmo que estejam, num certo sentido, os consumidores mais críticos em relação ao entretenimento e à informação temperada, ainda se pode dizer que se trata de minoria, pois quando a mensagem se dirige mais à emoção do que à razão, torna-se muito difícil fazer com que esta última venha a se colocar para a reformulação dos pontos de vista: afinal, muitos gostam de ser bajulados com a visão de que são onipotentes e oniscientes, e detestam o que quer que lhes mostre o contrário. E é a partir daí que se coloca a questão do tripudiar sobre os fracos, sob a alegação de fugir ao “politicamente correto”.

É importante saber distinguir entre o humor que procura corrigir os costumes pelo riso – castigat ridendo mores, como o pretendia a comédia romana de Plauto e de Terêncio, que estava longe de ser o exemplo da correção política – e o humor que procura pura e simplesmente o amesquinhamento do ser humano.

Daí se vê o real dilema do nosso tempo: ser “politicamente correto” ou ser cruel? Afinal, que geração é esta que enfatiza na obra infantil de Lobato exatamente o que nela menos conta, embora esteja presente “para quem queira localizar”, e reduza o que nela efetivamente é principal, e tolera os mais agressivos amesquinhamentos do ser humano, pouco importando a raça, o credo, as convicções político-partidárias? E qual seria, ao cabo, o papel da mídia em torno disto?

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Advogado, Porto Alegre, RS