Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Por que tanta raiva, tanta fúria e inverdades?

O caso só poderia ter alcance planetário uma vez que deu lugar, nos últimos dias, a declarações quase simultâneas do Senado norte-americano, do Parlamento Europeu e da presidência alemã da União Européia, sem falar dos artigos intermináveis e dos editoriais da maior parte dos canais de informação ocidentais. De que se trata? Do Irã, do aquecimento global, da Palestina, do Darfur? Errado: o caso gravíssimo em questão é a não-renovação, pelo governo venezuelano, da concessão de 20 anos, que se esgotou no dia 27 de maio, de um canal de televisão privado: a Radio Caracas Televisão (RCTV), para instalar em sua freqüência hertz um canal de serviço público. Isso quer dizer: exercer o direito soberano de cada Estado de dispor dos bens públicos raros que são as freqüências hertz.

Atentado aos direitos humanos, à liberdade de expressão, censura, deriva autoritária, totalitária – até fascista – toda a panóplia do vocabulário em uso há vários anos contra o governo de Hugo Chávez foi utilizada novamente, de forma maciça, nessas circunstâncias.

Do lado político, fiquemos inicialmente com a resolução unânime, votada no dia 24 de maio pelo Senado norte-americano, em particular pelos aspirantes democratas à sucessão de George Bush, contra o ‘fechamento’ da RCTV. Votada pelos mesmos que, renegando suas promessas eleitorais, vieram, de forma também unânime, conceder 100 milhões de dólares aos gastos militares da Casa Branca com o prosseguimento da ocupação do Iraque. Um belo exemplo de rigor democrático.

Prêmio de desinformação

Através do porta-voz de Angela Merkel, presidente em exercício do Conselho Europeu, a União Européia também foi longe em sua hipocrisia. Numa declaração de 28 de maio, ela ‘observou com inquietação a decisão do governo da República Bolivariana da Venezuela de deixar expirar a licença de emissão da Rádio Caracas Televisão (RCTV) no dia 27 de maio, sem abrir concorrência para a licença seguinte’. Desconhecemos, em meio a tantos outros ‘esquecimentos’, que a União Européia tenha feito semelhante declaração e exigido a abertura de concorrência quando a licença de transmissão da TF1, concedida em 1987 por 15 anos, foi reconduzida pelo governo francês em 2002 à mais total opacidade. No entanto, a ‘TV-lixo’ dos senhores Bouygues, Le Lay e Mougeotte desdenhou os compromissos que havia assumido em sua proposta inicial, invocando sua ‘elite’. Tudo indica que ela continuará impunemente a fazê-lo com seu novo patrão, Nonce Paolini, protegido de Laurent Solly, transferido de uma hora para outra do staff de Nicolas Sarkozy para a sua filial midiática.

Com relação ao abundante noticiário dos canais de informação franceses, antes e depois da não-renovação da concessão da RCTV, o prêmio de desinformação é, incontestavelmente, dentre tantos artigos na mesma linha, do editorial de um jornal de referência, publicado nos dias 27-28 de maio e intitulado ‘Censura à Chavez’. Vale a pena citá-lo e comentar alguns de seus trechos.

Longe do monopólio

Logo de cara, o tom é dado: ‘O presidente Hugo Chávez ordenou o desaparecimento da RCTV’. Não, a RCTV não ‘desaparecerá’: ela pode continuar a transmitir por cabo, pela internet e por satélite, e o fará sem dúvida alguma. Mas, como a lei prevê, sua freqüência hertz e seu alcance nacional retornarão ao serviço público quando expirar a concessão de que se beneficia. Ou será que essa concessão de duração limitada da RCTV era, de fato, de duração ilimitada? E isso, fechando os olhos às inúmeras infrações cometidas e que lhe valeram, por exemplo, o fechamento por um prazo de 24 horas a três dias, não pelo governo Chávez, mas em 1976, 1980, 1981, 1989 e 1991 – pelos predecessores social-democratas ou democrata-cristãos.

Desde sua primeira eleição à Presidência da República, em 1998, Chávez não fechou qualquer estação de rádio ou de televisão, nem perseguiu jornalistas. Entretanto, isso é o que teria acontecido não importa em que outro país democrático, diante do apoio apresentado abertamente pela maioria dos canais de informação – dentre eles, a RCTV – ao golpe de Estado abortado no dia 11 de abril de 2002, senão de sua organização.

O editorial segue denunciando uma decisão política ‘que reduz o pluralismo e aumenta a concentração audiovisual nas mãos do governo’. Que concentração é essa? Em 2006, havia na Venezuela 20 canais hertz VHF privados e um público. Contavam-se, aliás, 28 canais hertz UHF privados, 6 públicos e 44 comunitários. Atualmente, com a incorporação da RCTV, o serviço público terá dois canais hertz VHF, dois canais UHF e dois canais a cabo. Estamos muito longe do monopólio…

De 10 jornais, 9 são de oposição

Sem qualquer sinal de humor, o editorial qualifica, em seguida, a RCTV de ‘canal privado que dava voz à oposição’. A RCTV dava, de fato, voz à oposição, e não fazia senão isso! Estudos de conteúdo realizados no mês de janeiro de 2007 mostram que, em seus programas, convidaram-se 21 personalidades hostis ao governo e nenhuma favorável. No mesmo mês, um dos quatro canais privados, Globovisión, convidou 59 opositores de Chavez e 7 partidários. Só a Televen respeitou a paridade: dois de cada lado.

É verdade que podemos lamentar que o único canal público em hertz até aqui controlado pelo governo, Venezolana de Televisión (ex-Canal 8) não seja um modelo de equilíbrio. Mas como poderia ser diferente numa paisagem em que a maioria dos jornais, rádios e canais de televisão se comporta como partidos políticos de oposição? É preciso esperar que a TVES, o canal que retomará o sinal de RCTV, mantenha suas promessas de pluralismo, mesmo nessas circunstâncias adversas.

Do lado da imprensa escrita, a situação é ainda mais apartada: em 10 jornais de difusão nacional, nove são de oposição declarada ao governo. Se observarmos o conteúdo dos artigos de opinião publicados em quatro deles, em janeiro de 2007, veremos os seguintes resultados: para El Nacional, 112 hostis, 87 neutros e 6 favoráveis; para El Universal, os dados correspondem a 214, 89, 9; para Ultimas Noticias, 31, 59 e 18; para El Mundo, 49, 39 e 15, o que não os impede de receber a publicidade das empresas, agências e serviços públicos.

Comportamento da imprensa

Pretender que a liberdade de expressão esteja ameaçada na Venezuela é sinal, portanto, da mais clara má-fé. Basta parar numa banca de jornais ou passar uma hora diante de um aparelho de televisão para sermos convencidos do contrário. É, sem dúvida, o único país do mundo onde, no passado, os pedidos públicos de assassinato do presidente não resultaram em processos judiciais.

Mas então, como diria Sarkozy, por que tanta raiva, tanta fúria e inverdades? Que Chávez irrite ao mais alto grau os Estados Unidos e seus aliados, por sua política de recuperação das riquezas naturais nacionais e denúncia das políticas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, pode-se perfeitamente compreender. Que canais de informação pertencentes a grandes grupos industriais e financeiros repercutam as orientações e interesses de seus donos, é de se esperar. Em contrapartida, ficamos perplexos diante do comportamento dos órgãos de imprensa, nos quais o poder editorial está oficialmente separado do poder dos acionistas…

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Jornalista, diretor de redação de Le Monde diplomatique