Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Porta-vozes da mentira e cúmplices do terror

Esta guerra é suja, como quase todas as guerras. Alimentada pela estupidez humana e suas manifestações de cobiça e desejo de poder, é mais uma guerra de negócios e de política, mascarada como uma guerra ao terrorismo, ou uma guerra santa. As cruzadas sempre foram sanguinárias, assassinas, feitas para roubar, em nome de uma pretensa missão divina. Hoje não é diferente. Os senhores da guerra estão aí, cumprindo sua missão fúnebre. Sangue de crianças, de homens e mulheres, escorrem na rua devastada.


Enquanto isso, do outro lado dessa rua uma câmera registra o espetáculo. Um repórter descreve o show. Parece que é mais emocionante que um jogo de futebol. Não tem gol, mas tem bombas que cruzam o espaço, tanques ferozes, mísseis zunindo sobre as cabeças, cabeças que rolam sem corpo, casas destroçadas, gente fugindo, homens e mulheres chorando, e, aqui e ali, um corpo sendo comido pelas varejeiras. É o corpo de uma criança. Mais uma. Matam crianças como se matam moscas nesta guerra idiota.


O jornalista registra o que vê como se não tivesse nada a ver com aquilo. Ele tem três minutos ou 2 mil toques para contar o que vê. Somente o que vê. Ainda bem, ele não se atreveria a relatar a verdade, quem está por trás disso tudo, quem ganha com este massacre, com esta festa de sangue. Como já disse o escritor Harold Pinter, ele não teria coragem de quebrar o espelho e revelar a verdade. Ele, o jornalista, botou na cabeça: não tem nenhum parente meu aqui, ninguém que eu conheça, então tudo bem. Seu trabalho é ocultar o que os assassinos fardados fazem por lá, e o que os mercadores de armas e seus compradores fazem ao longe.


Uma camisa da seleção


Ao que parece a grande maioria dos jornalistas que cobre a guerra optou pela cumplicidade com os assassinos de crianças. O repórter pega o microfone e diz que a guerra é para acabar com o terrorismo. É mentira. A verdade é que esta é uma tentativa bárbara de afirmação de um poder na região. Ao jornalista coube o papel de torná-la um espetáculo, relatando apenas os que os tais senhores da guerra desejam que relatem. São marionetes de um jogo sórdido. São Pinóquios ainda na primeira fase – sem vida, sem opinião, sem sentimentos.


Virou moda, modernismo, este tipo de cobertura. Eles se copiam no jeito-padrão de falar, nas fontes, nas falsas imparcialidades. Não é a primeira fez: já aconteceu assim na Iugoslávia, no Afeganistão, no Iraque. Contam meias verdades, meias histórias, meias impressões. As metades que interessam ao poder.


Nos dias de hoje cobrir uma guerra não parece muito diferente de cobrir uma partida de futebol. Não por acaso, na primeira semana pós-invasão do Iraque pelos Estados Unidos, o correspondente da Globo, Marcos Uchoa, levou uma camisa da seleção brasileira de futebol de presente a uma família que sobrevivera aqueles dias. Diante da matança o repórter não se indigna. Toma partido de Israel, justifica a matança de adultos e crianças, civis, inocentes.


Papel sujo


Está faltando honestidade, ética e humanidade no trato do assunto. Qualquer pessoa sensata faria a seguinte leitura: é uma insensatez, uma idiotice, uma estupidez tentar aniquilar um pretenso grupo terrorista jogando bombas para tudo que é lado. A inteligência manda afirmar isto. Por que os repórteres preferem fazer papel de idiotas? Ou, o que é pior, nos fazer de idiotas? Será que não basta o papel de imbecis que fizeram quando reproduziram as mentiras do Pentágono quando do ataque dos Estados Unidos ao Iraque e depois vieram a público afirmar que era tudo mentira?


O repórter também poderia ser honesto e afirmar quais são os interesses envolvidos, quem ganha com isso. E diria que os Estados Unidos bancam esta carnificina, alimentando a guerra, para manter o domínio na região. Poderia até fazer uma pequena leitura da história. E mostraria o que aconteceu no Afeganistão, no Iraque e agora no Líbano. Talvez, se fosse um pouquinho mais corajoso – e honesto! – relataria que essas acusações contra o Irã e a Síria fazem parte da campanha preparatória para mais uma invasão – mais guerra, mais sangue. E se fosse um repórter radicalmente honesto contaria que os Estados Unidos sustentam uma polícia nazista, mantendo mais de 300 mil soldados espalhados pelo mundo, e bases militares em todos os continentes.


O que se diz aqui sobre os Estados Unidos não é segredo. Todo jornalista medianamente informado sabe disso. Se ele escolhe ficar calado diante dessa política é por uma opção ideológica, ou salarial, o que dá no mesmo. A história, porém, não esquecerá sua opção. Já se foi o tempo em que a história era escrita somente pelos vencedores. Hoje os perdedores também escrevem, também registram o que está ocorrendo. Neste momento, um jornalista decente está escrevendo sobre o papel sujo que muitos colegas fazem na cobertura desta guerra. Vai ficar escrito: eis os que foram cúmplices do terror de Estado, os que estiveram a serviço do nazismo moderno, do terror de Estado.


Durma tranqüilo, colega


Os ataques de Israel ao Líbano são apenas um detalhe desta política nazista imposta ao mundo pelos Estados Unidos. É sintomático que tudo isso aconteça no ano em que Alberto Moniz Bandeira seja escolhido Intelectual do Ano 2006 pela União brasileira de Escritores, por conta de sua obra mais nova, Formação do império americano. É muito provável que estes que cobrem a guerra não leiam outra coisa não ser o Tio Patinhas, a revista Veja, e, neste caso, os releases do comando de guerra israelense, daí esta aversão à verdade. Se lessem saberiam que, como diz Moniz Bandeira à Carta Capital (9/8/06), o império norte-americano está ruindo:




‘A capacidade militar dos Estados Unidos é tão grande que não alcança mais objetivos políticos, tornou-se inútil. O império está apresentando os mesmos sinais de decadência do Império Romano, de crises econômicas e financeiras. Quando chega a esse estágio de decadência, o Império precisa viver de guerras. Sem guerras ele não sobrevive’.


Agora, é lamentável que os israelenses, que já tiveram dizimados 6 milhões de parentes por conta do nazismo, sustentem hoje prática igual mantida pelos Estados Unidos. Esta guerra imbecil mata crianças e ninguém perde o sono. Claro, nenhuma delas é filho de um desses jornalistas que cobrem a guerra. Durma tranqüilo, colega, porque sua família – bem-instalada em Nova York, Londres, Paris, Rio de Janeiro, São Paulo – está preservada da carnificina. Ali se matam apenas muçulmanos, árabes, gente inferior para as suas contas. Continue divulgando que se trata de uma operaçãozinha de despejo, um espetáculo a mais.


Vergonha e asco


Os relatos apenas mostram os números de mortos e feridos. Aqui e acolá. Alguns acham que isso é jornalismo. Não é. É tal qual esses programas policiais, quando o repórter gruda na viatura policial e reproduz a versão oficial, o B.O. Um jornalismo assim não se indigna quando os Estados Unidos montam um centro de torturas fora do seu país para fugir a qualquer lei existente no planeta, e lá dentro joga as pessoas que seqüestra no mundo sob a alegação de terrorismo. A ‘prisão’ de Guantánamo, com 600 pessoas, é a versão moderna de Auschwitz, devidamente silenciada pela imprensa internacional.


A guerra é baseada na existência de um inimigo invisível, o terrorismo. Segundo o release oficial do Pentágono, transcrito como matéria pelos jornalistas que cobrem as guerras, ele – o terrorismo, o Mal – tem poderes extraordinários: o poder da ubiqüidade – o terrorismo está em todos os lugares; o poder da invisibilidade – ninguém vê Osama bin Laden; o poder de destruição do mundo – bin Laden, Sadam Husseim, Hezbollah, Irã e Síria, querem o fim do mundo; destruição dos valores morais – os muçulmanos são fanáticos extremistas que querem impor seus valores medievais sobre a civilização cristã. Para conter a expansão do Mal, somente chamando o superman, o poder militar cristianizado norte-americano.


Esta farsa, infelizmente, é difundida pelos principais meios de comunicação do planeta. Vergonhosamente os jornalistas se prestam a este papel de porta-voz da mentira. Se os bandidos que fazem esta guerra um dia forem ao tribunal para serem julgados por seus crimes contra a humanidade, os jornalistas que os tornaram famosos e divulgaram suas ações nazistas devem ser chamados, e também julgados e condenados por cumplicidade. Cada vez que morre uma criança nesta guerra, a espécie humana retrocede mil anos na sua evolução. Cada vez que um repórter narra o fato como se fosse um espetáculo de circo, feliz porque o salário está garantido e seu filho está bem longe dali, brincando num parque, comendo pipoca num cinema, quem tem um pingo de respeito pela profissão sente vergonha e asco. Incomoda ver profissionais sendo cúmplices de assassinos, parceiros dos senhores da morte.

******

Jornalista e escritor, diretor do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal