Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Pra não dizer que não falei do Fama

Já que o tema do programa Fama apresentado em 17 de junho pela Rede Globo foi pretensa homenagem aos grandes festivais, me sinto à vontade para dizer o que penso. Se usaram como tema um trabalho feito por mim, posso sem constrangimento afirmar que a televisão, quando trata da música, usando uma frase do Maguila, ‘perdeu o senso de noção’. A foto do Chacrinha, que nada teve a ver com os festivais, mostrada exaustivamente num telão que completava a cenografia, servia para lembrar as buzinadas nas tardes de sábado, que sem dúvida seriam ouvidas sem parar a cada desafinação da moçada do Fama.

A prioridade nas relações pessoais em detrimento do tema ‘música’ tem a ver com a fragilidade do elenco reunido, com evidente preguiça, pela produção. E pensar que ouvi um dos responsáveis pela sua realização insinuar que o programa ocuparia o lugar dos festivais na descoberta de novos talentos… O que me fez lembrar de como Ary Barroso começava o seu famoso programa: ‘ No ar, Calouros em desfile, que vai revelar novos valores para a Música Popular Brasileira…’, e que, depois de uma pausa, concluía com sua tradicional ironia: ‘Pois sim!’

A fórmula do Fama permite uma real prospecção de novos talentos, porém, além de criteriosa seleção dos participantes, o enfoque musical teria que ser prioritário. O programa, numa montagem desconexa, perde um tempo enorme com assuntos irrelevantes, como a dieta dos participantes, namoros, saudade dos parentes e… lágrimas, muitas lágrimas, numa espécie de little brother musical. Devem achar que isso é que dá audiência. Nada é espontâneo. A começar pela platéia. Sugiro que adotem um subtítulo que definiria bem o que é mostrado: ‘Calouros em família’.

Trabalho de ourives

O fato de terem partido para o caminho temático evidencia a inconsistência dos ‘talentos’. Primeiro, os sucessos de Roberto Carlos. Depois os temas das novelas. Agora os festivais. É claro que é complicado mudar o que foi montado pelo marketing das gravadoras nos musicais da televisão e na programação das FM. Exige vontade, trabalho, paciência e competência no desenvolvimento de novos talentos, além de persistência e humildade no trato com artistas inseguros e permeáveis a influências de uma produção global, com conceitos e interesses pré-determinados, quase sempre indo na contramão do que o novato pretende, vendo-se induzido a subverter suas preferências e tendências.

Acho que o programa Fama reúne todas as condições de ser a porta grande não só para abrir caminho para novos talentos, como para se tornar a fonte de uma nova música que em algum momento vai ocupar seu espaço. E ela já está aí, em vários núcleos musicais pelo país, de muitas vertentes, estilos e ritmos, com raízes culturais sólidas que vão falar forte ao público jovem e carente de iniciativas que o aproxime de sua verdadeira expressão.

Descobrir e desenvolver novos artistas é difícil. É trabalho mais parecido com o de ourives do que de professor. Enfim, já que a televisão só quer fazer assim…

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Diretor e escritor de teatro, cinema e TV, criador dos festivais de música das TVs Excelsior e Record, autor do livro Prepare o seu coração (Geração Editorial, 2003)