Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Prêmio Esso entre vaias e aplausos

A edição de 2004 do Prêmio Esso provocou surpresa e intriga. Motivo: a concessão do prêmio de melhor reportagem ao jornalista de um até então desconhecido jornal, o mensal , do Rio Grande do Sul, tiragem de 2 mil exemplares. A premiação da matéria sobre a tragédia de Felipe Klein, um jovem gaúcho que se suicidou, representou um marco na história do prêmio. Pela primeira vez a láurea escapava dos jornalões de Rio e São Paulo e ia parar nas mãos de um profissional dos pampas.

Renan Antunes de Oliveira, o autor da proeza, foi recebido com vaias na cerimônia de entrega do prêmio. A intriga campeou nos instantes pós-premiação. Os diretores de Redação da Folha de S.Paulo e do Estado de S.Paulo divulgaram manifesto conjunto pondo em dúvida a transparência e os critérios de avaliação do prêmio [ver remissões abaixo]. As queixas atingiram ainda O Globo e a revista Época. Incomodado com a falta de savoir-faire dos concorrentes, Renan cogitou de devolver o diploma. Voltou atrás a pedido de seu editor. Por uma dessas ironias do destino, a matéria vencedora foi recusada pela revista Época e desqualificada numa competição regional, promovida pela Associação Riograndense de Imprensa.

Repórter com vasta quilometragem, Renan tem histórias para contar. Começou como estagiário, em 1975, no Diário de Notícias do Rio Grande do Sul. A paixão pela reportagem o levou a percorrer vários continentes. Em 2001 foi preso no Irã, quando tentava seguir viagem para o Afeganistão, em busca de uma pauta quente. Andou pela China e pela Coréia do Norte, perseguindo um ‘lado romântico do jornalismo internacional na tradição do Hemingway’.

Com 30 anos de carreira, Renan passou pelas redações da grande imprensa, como Zero Hora, Veja, O Estado de S. Paulo, IstoÉ. Da experiência, conta um episódio emblemático dos novos ambientes das redações: aos 40 anos, teve um texto seu rejeitado por um editor de 24 anos – ‘Você não consegue fazer no estilo da Veja‘, alegou o editor.

Editor do , Renan concedeu por e-mail a entrevista que se segue, em que fala de sua experiência jornalística, do imbróglio da conquista do Esso e faz um anúncio: em fevereiro sai com reportagem nova, ‘a melhor’.

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Como você chegou à história de Felipe Klein?

Renan Antunes de Oliveira – Deu no jornal local, um tablóide chamado Zero Hora. Por alguma razão (talvez a presença de um político influente ou o tema do suicídio), editores e repórteres deram uma cobertura pífia, deixando muitas perguntas no ar. Quando o assunto morreu, fui atrás.

Você esperava que a premiação dessa reportagem provocasse tanta celeuma?

R.A.O. – Não esperava nem concorrer. Foi decisão do jornal inscrever o trabalho. Depois de inscrito, saí para trabalhar de gerente num hotel na Praia do Rosa. Quando saiu a indicação pro Esso, fui chamado de volta. A mesma reportagem tinha sido desqualificada no ‘campeonato regional’, o prêmio da ARI (Associação Riograndense de Imprensa), onde Zero Hora venceu. Resumo: ganhar o Esso de Reportagem nacional foi uma surpresa e a reação de algumas empresas concorrentes foi inesperada.

Como você interpreta as vaias que recebeu na solenidade de entrega do prêmio?

R.A.O. – Quer saber? A-d-o-r-e-i! Senti na hora que vinham do coração do lugar mais escuro, atrasado, reacionário e fascista que conheço: a ignorância. Só podia ser de gente que não tinha me lido – óbvio, não é?, já que circulo só no Rio Grande do Sul. Aí foi só explicar para eles que eu recebia as vaias e o prêmio com humildade… porque sou um deles. Falei da minha carreira, eles se reconheceram nela. E os aplausos vieram. Foram consagradores. De lavar a alma. E, embora não pareça, recebi os aplausos com humildade.

Você acreditava que poderia ganhar o prêmio?

R.A.O. – Só depois de ter sido escolhido finalista.

Quando e como você começou sua carreira de repórter?

R.A.O. – Comecei em 1975, quando era estudante da Famecos PUC/RS. Fui fazer um estágio do CIEE no Diário de Noticias (Associados/RS) e fiquei. Nunca terminei a faculdade. A lei equiparou os que trabalhavam e virei jornalista profissional, com registro regular no MTb.

Você acredita que o repórter já nasce repórter? Jornalismo tem que estar no DNA?

R.A.O. – O DNA ideal é o do periplaneta americano, nossa popular barata, único bicho capaz de resistir ao holocausto atômico. Sério? No fundo, todo repórter gosta de dizer que está no sangue. Mas isto é bobagem. Já tentei inúmeras vezes, como chefe, ‘mudar’, ‘moldar’, ‘ensinar’, ‘ajudar’ gênios saídos das faculdades, sempre sem sucesso. Muitos me morderam a mão, outros viraram assessores (e me viraram as costas), perdi gente boa pelo caminho por descuido, reencontrei outros na pior. Tive coleguinhas que foram ao sucesso total (a Globo…) e vi muita anta ficar rica no ramo do jornalismo, mesmo com DNA e as qualidades morais das baratas. Aprendi uma coisa que qualquer parteira sabe: cada caso é um caso.

A grande imprensa justifica o escasso interesse na grande reportagem com dois argumentos: o leitor não tem tempo para matérias longas e faltam recursos. Qual a sua opinião a respeito?

R.A.O. – ‘Eles’ dizem isso por razões de marketing, para ouvir o tilintar do caixa. Equivale a dizer que seu público é burro, desinteressado, alienado. Oferecer um cardápio magro é tripudiar dos leitores. A humanidade sempre vai para frente – ‘eles’ é que puxam para trás.

Qual ou quais reportagens famosas você gostaria de ter escrito?

R.A.O. – Tudo o que eu vi ‘errado’ eu escrevi, ou tentei escrever sobre. Cumpri pouca pauta dos outros na carreira. Quase tudo que fiz eu mesmo pautei, além de pautar os subordinados. Queria ter ficado em Bagdá esperando as bombas, mas tive que sair antes. Queriam fazer um título ‘Marchando com os talibãs’, quando andei pelos lados da guerra, mas eles perderam… Tentei entrar no Sendero Luminoso no tempo do Guzmán, depois nos zapatistas. Rolei pela China e pela Coréia do Norte, sem muito faro. Enfim, fiz tudo o que podia. Mas era mais uma coisa assim do lado romântico do jornalismo internacional na tradição do Hemingway… Ofereci a vários caciques de redações brasileiras atravessar a África caminhando, mandando texto e foto. Neca. Me ofereci quase de graça a vários diretores de redação para morar na Cabeça do Cachorro e circular pelos rios da Amazônia por um ano mandando texto e fotos de Amazônia/índios/Colômbia/drogas/presença estrangeira/tráfico/presença americana/mineração/cotidiano/personagens – neca. Mas não desisti da Amazônia, celeiro de pautas. Ando duro. Quando ganhar uma graninha vou para lá, começo a mandar matéria como frila e vou ver se abro um espaço para voltar para a Série A. Uma banalidade meio bravata: minha próxima matéria é a melhor! Estou tentando buscá-la no exterior (falta grana), vou botar no de fevereiro, se der. É a história do maior injustiçado do Brasil. Você conhece o cara? Me leia. Fevereiro.

Na entrega do prêmio, você fez um relato da sua atribulada carreira de repórter. Quais foram os pontos mais difíceis dessa trajetória?

R.A.O. – Diz minha mãe que ‘o que é do gosto regala a vida’. Portanto, nada foi difícil. Ou melhor, continuar nela foi difícil. Eu já me dei acabado para carreira tantas vezes que esqueci. Esqueci também muitas vezes em que fui desempregado e humilhado e criticado e rejeitado por gente que não era melhor do que eu em caráter ou talento. Ah, uma história exemplar. De como superei um editor da Veja: ele 24, eu quase 40. O cara não me queria. Me deu várias pautas. Eu remava e ele sempre dizendo que o texto tava uma m… Eu remava de novo e nada. Aí fui no arquivo, peguei uma edição antiga com um texto do grande Augusto Nunes, troquei alguns frufrus e entreguei o último e definitivo: ‘Renan, sinto muito, mas você não consegue fazer no estilo da Veja‘. Bem, Nunes tinha sido um dos grandes criadores do vejês, logo, eu não estava errado, era mesmo o editor. Ufa, escapei daquela anta. Sou magnânimo, perdoei todos… No início de 2004 procurei um desafeto de longa data, o publisher da RBS, e me ofereci para ser repórter de polícia no Diário Catarinense, em Florianópolis, por milucas mensais. Neca. Ok, fui recuando para o Rio Grande do Sul, para o jornal Já Porto Alegre, minha trincheira.

Como é a estratégia de funcionamento do Já? Qual o tamanho da equipe?

R.A.O. – O Já Porto Alegre está na net (www.jornalja.com.br). O dono da empresa é Elmar Bones, 60, ex-editor do grande alternativo dos anos 1980, o Coojornal (tablóide da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre). Nós acreditamos que outro tipo de informação é possível – não somos como ‘eles’. Tiramos 2 mil por mês. Publicamos livros de reportagens, sobre temas do jornalismo, sobre personagens – estamos fazendo uma obra sobre a presença dos árabes no Rio Grande do Sul. Temos um informativo ambiental único no país (www.ambienteja.com.br). Vamos levando. Muita gente boa escreveu por aqui: Luis Fernando Verissimo, Moacyr Scliar, Eduardo Galeano, Décio Freitas. Toda equipe é 15 pessoas. ‘Veios’ e gastos só eu e o Elmar. O resto é gurizada. Cada um faz o que quer – e às vezes tripudiam de nós. Para mim está bom: é o único jornal dos que eu trabalhei em que pude publicar texto e fotos como eu quis. Dizem que meu patrão anda espalhando por aí que a pauta foi dele, só para me roubar as glórias, mas deve ser intriga da redação – intrigas? É, isso que são só 15!

Você acredita que a sua premiação pode significar uma quebra de paradigma no prêmio, daqui por diante?

R.A.O. – Quase quebra o Prêmio, que dirá os paradigmas…

Prêmios de jornalismo estimulam ou servem para manter os jornalistas presos a determinadas pautas?

R.A.O. – Presos. Eu já disse antes, não queria inscrever. E tinha na ponta da língua um discurso contra a (e não ‘o’) Esso – afinal, trata-se de uma multinacional cujo único objetivo no Brasil é arrancar dinheiro nosso e levá-lo para os seus acionistas lá fora. Mas o que diferencia o Esso dos demais prêmios é que já passou no teste das urnas dos coleguinhas. Depois que aceitei participar da cerimônia, estive tentado a dar uma de Marlon Brando e recusar o diploma. E você não sabe o quanto eu estive perto de fazê-lo. Foram aquelas benditas vaias que mudaram tudo.

Por que você pensou em devolver o diploma?

R.A.O. – Eu quis devolver como sinal de protesto contra a publicação no Globo, no Estadão e na Folha, dois dias depois do concurso encerrado, de críticas contra os critérios dos jurados. O Estado e a Folha tinham um habeas corpus preventivo, pela publicação do mesmo texto antes. Para ser coerente, a Folha deveria ter retirado seu trabalho – mas isso é outra história. O Globo venceu uma categoria, a mais importante, mas abriu espaço para um executivo da Época, que concorreu diretamente com o meu trabalho, dizer que o resultado era um ‘disparate’ e que lhe dava ou ‘nojo’, ou ‘raiva’. Num agüentei! Estava no avião de volta para Porto Alegre com meu canudo, lendo a baixaria. Desci, fui para a redação e para o e-mail e ensaiei a devolução. Meu editor implorou para aceitar… Sabe como é patrão! Depois me ligam da Folha – vai que queriam publicar ‘é mesmo marmelada, um maluco renuncia’. Mas quando dei minhas razões, a possível renúncia deixou de ser notícia e o repórter deu tchau. O Estado se explicou no Comunique-se, dizendo que já tinha dito que era marmelada – mas matei a resposta e mostrei o pau, porque eles tinham publicado a mesma carta ‘emarmeladora’ dois dias depois da premiação. Recebi e-mails pessoais de gente de dentro deles dizendo que era para ficar quieto porque a briga era entre os grandes e nada tinha a ver comigo. Êpa! Eu levo um diploma e dizem que nesta edição tem marmelada? Então é comigo! Enfim, minha mãe pendurou o original em casa e levou uma cópia para casa de veraneio em Xangri-lá, para exibir para os vizinhos. Agora é meu.

Você ofereceu a matéria à Época, que a recusou. Faltou visão editorial da revista?

R.A.O. – Não é tão grave. Tenho um amigo lá dentro. Eu andava em baixa, ele me disse ‘volta para as pretinhas, vai fazer reportagens’. Conselho dado e aceito! Aí ofereci a mesma pauta. Quantas pautas são rejeitadas por dia? Milhões. Ele disse que já tinha dado matéria sobre o tema dias antes, pediu um tempo e me ofereceu outros trabalhos. A repercussão de uma simples frase minha no discurso, ‘já tinha oferecido à Época‘, foi desproporcional. Parece que lá só tem antas. Não, tem algumas, mas não é uma beira de rio onde elas procriam livres e pastam mansamente. E como ainda quero vender outros trabalhos, portanto queria que este assunto fosse varrido para longe das margens…

O manifesto da Folha e do Estadão puseram em dúvida a lisura dessa edição do Esso. A que você atribui as críticas feitas por esses jornalões?

R.A.O. – E como yo voy a saber, señor? Eles nunca dizem para a gente nada do que pensam de verdade. Seus editoriais são um mistério para mim. Pergunto eu: se o Esso é uma porcaria, por que dão tanta importância? No ano passado a Folha ganhou o mesmo meu de agora, o Esso de Reportagem, dando uma (merecida) badalada. O Estadão já ganhou dezenas, desde Canudos – ok, Canudos é fora de série. Resumo: se você quer saber as razões de Folha e Estado, pergunte a eles. Só te dou uma dica: vaidade das vaidades, tudo é marketing.

Como foi o episódio da sua prisão no Irã, em 2001? Esse foi o momento de maior risco que você vivenciou mundo afora?

R.A.O. – Dei azar. Quis ir para o Afeganistão (e consegui) via Irã, porque no outro lado estava cheio de coleguinhas, minhas matérias iriam chover no molhado. Mandei um material pífio com os talibãs e me preparei para entrar via Paquistão, quando fui preso por cruzar a fronteira Irã-Afeganistão por uma rota alternativa. Fiquei preso no Sheraton Teerã, vendo a guerra pela BBC. Não contei isso para não parecer ridículo… Meus desentendimentos com polícia/diplomatas/alfândegas/esbirros começaram no Uruguai, há 25 anos, depois Argentina. Fui preso três vezes em Nova York e perdi minhas credenciais. Me dei mal na China e fui expulso. Me caçaram nas montanhas mexicanas. Só tive medo na Argélia e no Timor Leste. Mas sempre caminhei no safe side, tanto que estou aqui, vivito y coleando.

Não é uma ironia que você tenha vivido tantas experiências, em lugares tão distantes, e tenha ganhado um prêmio com uma tragédia ocorrida em Porto Alegre?

R.A.O. – Adoro aquela do Rabindranath Tagore (poeta indiano, Prêmio Nobel de Literatura de 1913): um general, na véspera da batalha final, com a vitória ali, ali, reúne o staff para um anúncio importante. Bota a espada em cima da mesa. Diz: ‘Vou para casa’. E sai de cena. Dramático, não é? Brilhante, não é?

Você acredita que a conquista do prêmio pelo Já pode servir de inspiração para outros jornais pequenos?

R.A.O. – Toda glória é transitória. Duvido que os coleguinhas do bem estejam correndo atrás do Esso por vaidade ou marketing. É só bola pra frente, até o fim do jogo.

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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (http://www.sergipe.com/balaiodenoticias)