Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Problemas na França e nos EUA

Vou me lembrar por muito tempo da declaração feita pelo advogado Kenneth P. Thompson a um grupo de repórteres na calçada do lado de fora da Corte Suprema do estado de Nova York há uma semana. Por acaso eu estava em Nova York naquele dia e acompanhei tudo ao vivo pela televisão. Thompson é o advogado da guineana que diz ter sido agredida sexualmente por Dominique Strauss-Kahn em um hotel de Nova York em maio. Ele tinha acabado de ver seu caso começar a ruir, pois a promotoria reconhecera múltiplas inconsistências e aparentes mentiras no depoimento da mulher, assim como circunstâncias suspeitas envolvendo o caso.

Thompson, especialista em casos de discriminação no trabalho e assédio sexual, detalhou de maneira implacável aquilo que ele afirmou serem os fatos irrefutáveis do ataque: a violência que levou ao rompimento de um ligamento no ombro da mulher; as lesões nos genitais dela; a meia-calça rasgada. E então veio o seguinte: “A próxima informação que quero lhes transmitir é que, enquanto ela lutava para se desvencilhar dele, quando estava de joelhos enquanto ele abusava sexualmente dela, depois que ele terminou, ela se levantou e começou a correr na direção da porta, cuspindo por todo o quarto o sêmen de Dominique Strauss-Kahn, enojada.”

“Assim, em se tratando de evidências forenses, exames de DNA, ela cuspiu o sêmen dele na parede, cuspiu no chão, e adivinhem só? Assim que a supervisora dela chegou ao quarto, ela também viu aquilo. A equipe de segurança do Sofitel também viu. Os detetives do Departamento de Polícia de Nova York também viram. E houve um promotor do gabinete da Promotoria de Manhattan que visitou o quarto de hotel naquele dia e ela lhe mostrou onde estava o sêmen.” Se a mulher e seu advogado estiverem dizendo a verdade, então esse terá sido um breve vislumbre do que seria o ataque sexual violento e indesejado cometido por um homem poderoso contra uma mulher vulnerável.

Duas tradições de Direito

Todos nós devemos abrir os olhos para essa realidade perturbadora. Mas se eles não estiverem dizendo a verdade, então, o que vimos terá sido o assassinato do caráter de um homem em plena luz do dia nas calçadas de Nova York. Nada que o homem que poderia ter sido o presidente da França faça agora poderá trazer de volta sua reputação. Sempre que seu nome for mencionado, a primeira coisa que todos lembrarão será o caso de Nova York.

Conforme a acusação contra Strauss-Kahn é questionada, podendo até ser indeferida em questão de poucas semanas, tornam-se cada vez mais mordazes as recriminações franco-americanas. “Independentemente de Strauss-Kahn ser inocentado, o caso dele é um exemplo do bom funcionamento da justiça americana. Podemos nos orgulhar”, escreve o jornalista americano Peter Beinart no Daily Beast. Tratou-se de um exemplo “claramente inspirador” da igualdade perante a lei. No lado oposto, o filósofo francês Bernard Henri-Lévy ataca a “canibalização da Justiça por parte do espetáculo”, referindo-se à entrevista coletiva concedida por Thompson, e diz que seu amigo Strauss-Kahn merece “não apenas a liberdade, mas – o que é ainda mais importante – a restauração de sua honra”.

O que temos aqui são os ecos de uma profunda diferença entre as atitudes de franceses e americanos em relação às questões de privacidade e reputação. O estudioso de Direito James Q. Whitman, de Yale, defendeu que a essência da tradição americana consiste em nivelar por baixo, enquanto a tradição francesa (e alemã) prefere nivelar por cima. “Agora, somos todos aristocratas”, diz o espírito de Paris. Até a mais pobre mulher imigrante deve ter direito à civilidade, ao respeito e, é claro, à honra, como se fizesse parte da nobreza do passado. “Não há mais aristocratas”, brada o espírito de Nova York, e todos devem ser tratados com igual falta de respeito. O rei e o mendigo, o ladrão de galinhas e o banqueiro poderoso: todos estão sujeitos a ser humilhados pela prática de exibir o suspeito como um troféu.

Condenação sem julgamento

A análise de Whitman é brilhante, mas, olhando para ambos os lados do Atlântico, sou levado a exclamar: quem dera! Quem dera fosse verdade que as imigrantes pobres ou as ciganas fossem tratadas na Europa continental com o respeito e a civilidade antes reservadas aos senhores mais importantes. Este pode ser o ideal subjacente à lei francesa e alemã, como defende Whitman, mas a realidade dos fatos é que uma mulher pobre vinda, digamos, da Guiné, enfrenta em Paris a mesma possibilidade de ser oprimida, explorada e abusada a que estaria sujeita em Nova York.

Quem dera fosse verdade que os poderosos e os fracos fossem de fato iguais perante a lei nos EUA. Eis a mensagem simbólica contida no inesquecível desfile pelas calçadas de Nova York do suspeito que, de outra maneira, poderia um dia se tornar presidente da França. Mas a mensagem é duplamente enganosa. Em primeiro lugar, simplesmente não é verdade que todos são igualmente submetidos à humilhação. Pessoas ricas, poderosas e bem relacionadas com frequência evitam a situação na qual são exibidos como suspeitos e troféus do combate ao crime, gastando muito tempo e dinheiro para garantir que isso não ocorra.

A história do desfile de suspeitos em Nova York é também a história das ambições políticas de promotores públicos como Rudy Giuliani. Em segundo lugar, no mundo midiático contemporâneo – no qual as imagens são incomparavelmente mais poderosas do que as palavras –, esse desfile equivale a uma condenação sem julgamento. E não existe possibilidade de se apelar de uma condenação no tribunal do YouTube.

O desfile público dos suspeitos

A reputação de Strauss-Kahn sofreu um estrago irreparável. Fazendo coro a Beinart no seu autoelogio americano, Joe Nocera, do New York Times, escreve casualmente: “Se o pior a que Strauss-Kahn seja submetido for um desfile como suspeito, alguns dias numa cela da Ilha Rikers e um punhado de manchetes desagradáveis, não há motivo para que se tenha pena dele.” Está bem, Joe, espere até que algo parecido ocorra com você. Então, veremos se a sua situação será digna de pena ou não.

É provável que do caso DSK venha à tona algo de positivo. Os poderosos de todo o mundo, e não apenas da França, ficarão de sobreaviso. Basta um golpe de sorte para derrubá-los. Prejudique e corra o risco de ser prejudicado.

Mas, para além disso, há pouco motivo para inspirar alegria em franceses e americanos. Os costumes sexuais na alta esfera da sociedade francesa são revelados a uma luz nefasta. O desfile público dos suspeitos é um travesti daquilo que a Justiça deveria ser. A águia americana deve se preocupar com o cisco em seu olho e o galo francês deve cuidar do raio de luz que atinge sua vista.

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[Timothy Garton Ash é professor de Estudos Europeus na Universidade de Oxford e bolsista sênior da Hoover Institution]