Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Prova força reflexão sobre feminismo

Nos últimos anos, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tem sido marcado por alguns pontos negativos, como supostos vazamentos de gabarito e falta de organização na aplicação das provas. Entretanto, a edição de 2015 certamente será lembrada pela afirmação da questão feminista e a necessidade de se refletir sobre a violência contra a mulher como importantes bandeiras de nossa contemporaneidade. Logo no início da prova de Ciências Humanas, os candidatos foram surpreendidos por um trecho contendo a famosa frase “Não se nasce mulher, torna-se mulher” do clássico manifesto feminista O segundo sexo, da filósofa e militante francesa Simone de Beauvoir.

Qualquer pessoa que exerça minimamente sua capacidade cognitiva é capaz de concluir facilmente que a frase “Não se nasce mulher, torna-se mulher” sintetiza a ideia de que os conceitos de “masculinidade” e “feminilidade” não são dados naturais, mas socialmente construídos. Em outros termos, os papéis sociais que cada gênero deve desempenhar, como a suposta submissão das mulheres em relação aos homens, foram criados pelas diferentes organizações sociais ao longo da história. Isso se chama ideologia: querer “naturalizar” ideias que pertencem a um determinado estrato da sociedade como se fossem universais e atemporais.

Como não poderia deixar de ser, a polêmica citação de Simone de Beauvoir na prova do Enem ensejou inúmeras reações positivas e negativas nas redes sociais e na mídia. Segundo uma matéria do Estadão, os deputados Marco Feliciano e Jair Bolsonaro acusaram o Ministério da Educação (MEC) de “doutrinação” por abordar o feminismo. Para Bolsonaro, famoso por suas ideias misóginas e homofóbicas, o Enem é o “Exame Nacional de Doutrinação Marxista”. Já outro parlamentar de oposição, Fernando Francischini, que já foi acusado de ordenar ataques policiais a professores, disse que a questão sobre Simone de Beauvoir estimula “o preconceito contra pessoas”.

Seguindo a lógica do raciocínio distorcido dos conservadores brasileiros, então uma questão sobre o nazismo influenciaria os estudantes a se tornarem intolerantes? Na verdade, o que essas pessoas não aceitam é qualquer tipo de engajamento social que represente a mínima possibilidade de melhoria nas condições de vida de grupos historicamente inferiorizados como mulheres, pobres, negros ou homossexuais. Ademais, não há como negar a influência de movimentos como o feminismo para as mudanças de hábitos e costumes que ocorreram em praticamente todo o planeta após a década de 1960. Concordar ou não com as ideias de Simone de Beauvoir é outro assunto. Muitas ativistas, inclusive, acusam o feminismo da filósofa francesa de ser “elitista”, pois não contemplaria demandas e reivindicações históricas de mulheres negras e pobres.

“Não se nasce imbecil, torna-se imbecil”

Por outro lado, levando-se em consideração que neste ano a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei do Feminicídio e, em contrapartida, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou recentemente o Projeto de Lei 5069/2013 (que na prática dificulta o acesso ao aborto legal para vítimas de estupro), o tema da redação do Enem “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, não poderia ter surgido em um momento mais oportuno.

No Twitter, espaço onde teoricamente não há limites para destilar preconceitos e ideias delirantes, houve várias postagens negativas em relação ao Enem 2015. “As reações ao tema [da redação] incluíram a criação de uma hashtag #enemfeminista e o uso pejorativo da palavra ‘feminazi’ e outras reações preconceituosas”, apontou o portal G1. Um perfil sob o pseudônimo Vitor, que utiliza como avatar uma foto do ex-presidente iraquiano Saddam Hussein, asseverou que “se a mulher não falasse e fizesse a comida direito, ela não apanhava”. Já um post destacou que a “doutrinação feminista ocupou o tema central da redação”. “O melhor jeito de acabar com a violência contra as mulheres é minha roupa estar lavada e a comida estar na mesa na hora certa”, escreveu outro internauta, como se a mulher estivesse condenada a ser confinada ao âmbito doméstico e corroborando a tese de que o machismo ainda está longe de ser extirpado da sociedade brasileira. Contudo, de acordo com pesquisas divulgadas pela imprensa, professores, especialistas e alunos apresentaram visões positivas em relação às questões do Enem de maneira geral e ao tema da redação.

“As queixas sobre os dois dias de prova nos dizem muito sobre a direita reacionária brasileira. Sobre o primeiro dia, ficou muito evidente que ela não defende uma sociedade democrática, ideologicamente plural, que respeite e valorize a liberdade de expressão, pensamento, consciência e crença. […] E no segundo dia, a imagem que temos da direita conservadora radical revelando a si mesma é que ela é assumidamente machista e misógina”, conclui um excelente artigo publicado no blog consiência.blog.br.

Em uma análise técnica, é importante constatar que não só a presença de Simone de Beauvoir – mas também a inclusão de nomes como Weber, Hobbes, Paulo Freire, Nietzsche, Slavoj Zizek e Milton Santos – faz com que o Enem represente um avanço considerável na área de Ciências Humanas, ao privilegiar a interpretação em detrimento à decoreba e aos “macetes de cursinho”, típicos dos tradicionais vestibulares. Em suma, os mesmos indivíduos que utilizam termos como “feminazis” para se referirem às mulheres que defendem as causas de seu gênero, apoiam políticas retrógradas como a ”cura gay”, a volta da ditadura militar, o Estatuto da Família e o Projeto de Lei 5069/2013. São os discípulos dos Bolsonaros, Cunhas, Sheherazades, Felicianos e Olavos de Carvalho da vida. Parafraseando a supracitada Simone de Beauvoir, podemos dizer que “não se nasce imbecil, torna-se imbecil”.

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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG