Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Que esterco é esse?

Para muita gente, foi como se a tecla rewind do controle remoto tivesse sido acionada. As declarações de Marco Aurélio Garcia, assessor especial do presidente Lula para assuntos internacionais, sobre a programação da TV a cabo, fizeram com que produtores e artistas se sentissem como se o tempo tivesse voltado para trás.


Em debate, na semana passada, Garcia pôs em mira a ‘hegemonia cultural dos EUA’. Bélico, comparou a TV fechada à 4ª Frota, divisão naval americana presente no Atlântico sul. ‘Eles realizam, de forma indolor, um processo de dominação muito eficiente. Despejam todo esse esterco cultural (…) A emergência desse lixo cultural nos deixou numa situação grave.’


É fato que mais de 70% da programação dos canais pagos vem de outros países – EUA à frente. Mas o que causou alvoroço foi o tom adotado. ‘É um discurso obsoleto’, diz o cineasta Bruno Barreto. ‘Não costumo ver seriados americanos, mas House é muito melhor do que qualquer série da Globo’, emenda o diretor Domingos Oliveira.


Para se contrapor a Garcia, Daniel Filho, de Se Eu Fosse Você, vai mais longe e, lâmina afiada, afirma: ‘Estamos diante de um homem que apoia os governos de Fidel [Castro] e [Hugo] Chávez. As declarações são muito parecidas com as ouvidas nesses países’.


Sob a ruidosa briga ideológica, há, porém, dados que tornam menos espalhafatosa a discussão. A Agência Nacional de Cinema registra que só 6,4% dos filmes exibidos pelos canais fechados, no primeiro semestre de 2009, eram brasileiros. Nas emissoras abertas, que são concessão pública, o número é bem maior, certo? Errado. Apenas 12,6% dos filmes são nacionais e, na rubrica ‘séries e minisséries’, 71% do tempo, nas TVs abertas, é ocupado por produtos vindos dos EUA.


‘Caldo cultural’


É por essas e outras que muitos produtores dizem que Garcia, simplesmente, mostrou ter má pontaria. ‘No Brasil, se há uma TV hegemônica, que faz a cabeça das pessoas, é a aberta. E, ao contrário do cabo, ela não tem regulação’, observa Roberto d´Ávila, que fez programas para Fox e Sony. Cabe lembrar ainda que o cabo tem reduzidos 7,5 milhões de assinantes.


Já para o professor Laurindo Leal Filho, da USP, o que existe na TV brasileira é uma espécie de apartheid. ‘Uma aliena com Big Brother e programas de auditório. Outra, restrita a quem pode pagar, reproduz, mesmo em programas de entrevista, um discurso político alinhado à hegemonia norte-americana e à demonização dos governos populares’, diz o intelectual, que se alinha a Garcia.


‘Nada disso tem sentido’, reage o produtor Kiko Mistrorigo, que trabalha para a Discovery Kids. ‘O Brasil, como todos os países, tem de participar do caldo cultural mundial.’ (Ana Paula Sousa)


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TV a cabo se abre para obras nacionais


‘No Brasil, temos uma piada pronta: `a TV fechada é aberta e a TV aberta é fechada´.’ O trocadilho feito por Kiko Mistrorigo, da TV Pinguim, grife na animação, ajuda a explicar o curto-circuito desencadeado pelas declarações do professor Marco Aurélio Garcia.


‘Estou fora dessa curva que ele vê’, retruca Mistrorigo. A série infantil Peixonauta, criada pela TV Pinguim, pegou mão oposta à da ‘4ª Frota’. Comprado pela Discovery Kids, o programa levou bonecos e cenários brasileiros para vários cantos do mundo. ‘Quando começamos a tentar vender o Peixonauta lá fora, era difícil explicar por que ninguém aqui tinha comprado’, diz. Destino semelhante tiveram Escola para Cachorro (Nickelodeon) e Princesas do Mar (Discovery Kids).


Fora do universo dos bonecos e bichos, tem-se 9 MM (Fox), Mandrake, Filhos do Carnaval e Alice (HBO).


O empurrão às coproduções foi dado por um mecanismo que oferece benefício fiscal às programadoras estrangeiras que destinem parte do lucro a obras brasileiras. ‘Está comprovado que os programas nacionais dão uma média de audiência acima dos outros’, diz Roberto d´Ávila, produtor de 9 MM. ‘Se não investem mais é porque o tamanho dessas empresas, no Brasil, é incompatível com o custo de uma produção. E, é claro, procuram um produto que possa se adequar à grade.’


Essa adequação é, não raro, a pedra no caminho que os produtores encontram antes de cruzar a porta das emissoras. ‘Já tentei fazer seriados, mas eles querem formatar tudo do jeito deles’, reclama o cineasta Domingos Oliveira.


‘Cabe aos produtores criar produtos que sejam interessantes para as emissoras’, rebate o diretor Bruno Barreto. ‘E ninguém pode dizer que a TV a cabo não se abre para a criatividade. Sabemos muito bem que, hoje, as estruturas não maniqueístas e a imprevisibilidade mudaram do cinema de Hollywood para a TV. O Marco Aurélio [Garcia] deveria ver TV antes de falar.’ (Ana Paula Sousa)


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Projeto debate criação de cota para brasileiros


As discussões sobre proteção ao conteúdo nacional, aquecidas pelas declarações do assessor da Presidência da República, devem ter novos capítulos neste ano. Aprovado em dezembro na Câmara, o projeto de lei 29, que permite a entrada das telefônicas no negócio da TV paga, prevê, também, uma cota para programas nacionais.


O projeto, em trâmite há três anos, coloca no ringue emissoras de TV, empresas de telefonia e produtores independentes. A Associação Brasileira de TV por Assinatura tem declarado que a cota é uma reserva de mercado ineficaz.


Já a Associação Brasileira de Produtoras Independentes de TV argumenta que, ao aprovar tal medida, o Brasil estaria fazendo, tardiamente, o que o mundo inteiro já fez. ‘Isso foi feito no Canadá, na Europa, no mundo inteiro’, diz Fernando Dias, presidente da entidade. ‘É uma maneira de organizar o setor, de fazer com que tenha conteúdo regional, voltado aos interesses do próprio país.’


Entre quem bota a mão na massa para fazer filmes, as opiniões se dividem. ‘Qualquer imposição pode ser um tiro no pé’, diz Bruno Barreto. ‘Na cultura, o mundo é protecionista. As cotas são um caminho para que se abra espaço’, contra-argumenta Kiko Mistorigo. (Ana Paula Sousa)


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Canal pago acolhe o que Holywood baniu


Raul Juste Lores, de Pequim


As dez maiores bilheterias do cinema americano no ano passado não deixam dúvidas de que temas adultos, roteiros elaborados e atores com mais de 30 anos têm mais chance na TV do que em Hollywood.


Transformers 2, Harry Potter 6, Se Beber, Não Case, Up, Lua Nova e Avatar têm algo em comum, saltos tecnológicos à parte: uma escritura sem ossos ou espinhas para que adolescentes, os maiores frequentadores dos cinemas, possam mastigá-los sem medo. ‘Não existem papéis tão intensos no cinema’, reclama o ator Ted Danson, da série Damages. ‘Nos filmes de US$ 100 milhões, o investimento está nos efeitos especiais e no marketing, não no roteiro’, diz.


A depressão da América pós-crise financeira (Hung, Damages), os desafios morais da guerra ao terror (24), a América sexista e racista pré-revolução sexual (Mad Men), a indústria das drogas e suas insuspeitas ramificações (The Wire) ou a intolerância (True Blood) ganham generosos roteiros, produção em película, cenas de sexo e drogas banidas de Hollywood e um status único na cultura pop.


O jornal El País perguntou a famosos escritores espanhóis o que achavam da atual safra de seriados. ‘Se Dumas ou Balzac estivessem vivos, estariam na TV, onde é feita boa parte da melhor narrativa no mundo’, compara Carlos Ruiz Safón. ‘As sete temporadas de Os Sopranos foram pouco’, reclama o fã Javier Marías. E o filósofo Fernando Savater diz que Os Simpsons não se limitam à sátira social, mas ‘que praticam com ácido entusiasmo a purificação antropológica’.


A rede de TV franco-alemã Arte dedicou o documentário Hollywood, o Reino das Séries, à era dourada da TV americana. No programa, destaca-se o poder dos roteiristas-produtores sobre o dos diretores e o cuidado com o texto.


Festivais literários


O métier já se deu conta disso. Grandes atores hollywoodianos que não encontravam bons papéis na indústria-pipoca migraram para a TV. Glenn Close, Kathy Bates, Holly Hunter, Kiefer Sutherland, Martin Sheen e Rachel Griffiths se mudaram para a telinha, assim como nomes quentes do cinema independente, como Tim Roth, Gabriel Byrne, Patricia Clarkson, Mary Louise Parker e Chloe Sevigny.


Cineastas como o argentino Juan José Campanella (O Filho da Noiva) e o norte-americano Bryan Singer (Os Suspeitos) trabalham como diretor e produtor executivo da série House (Universal Channel).


Alan Ball, que levou o Oscar por Beleza Americana, se consagrou mesmo com os seriados A Sete Palmos e True Blood. O escritor Dennis Lehane escreveu roteiros para The Wire, e o cineasta Rodrigo García, filho de Gabriel García Márquez, dirigiu episódios de A Sete Palmos, Big Love e In Treatment.


O riquíssimo mercado televisivo americano ajudou a revolução: 55% da audiência está nos canais a cabo, que chegam a 100 milhões de domicílios que pagam pela assinatura e são o público mais cobiçado pelos anunciantes. Se as TVs abertas visam a massa, o cabo precisa achar o seu nicho.


Por isso uma série como Mad Men, a mais premiada nos últimos três anos no país, pode se contentar com apenas 2 milhões de espectadores por episódio. Por trás de sucessos como True Blood, Sex and the City e A Sete Palmos, a HBO arrebanhou 40 milhões de assinantes. Sua maior concorrente, Showtime, investiu em seriados ainda mais polêmicos, como Dexter, Queer as Folk, Californication, The Tudors e The L Word.


Roteiristas do seriado The Wire já participaram de festivais literários no Reino Unido e na China, onde outros escritores os tietavam. Para esses intelectuais, o esterco cultural não está no cabo.


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Esterco, go home!


Marcos Augusto Gonçalves (*)


Não há dúvida de que a indústria cultural desempenhou seu papel na ascensão dos Estados Unidos a potência mundial durante o século 20. Cinema, música, história em quadrinhos, pipoca e hambúrguer também foram artífices da ‘hegemonia’ norte-americana.


Mas, se é tolice tentar negar a existência de laços entre cultura e poder, aproxima-se da burrice traduzir essa relação nos termos estreitos e datados do esquerdismo latino-americano, esquemático e antiamericanista, ainda professado, ao que parece, pelo assessor presidencial Marco Aurélio Garcia.


No discurso do sábio palaciano não há lugar para dialética e sutilezas. Tudo se move segundo o maniqueísmo pueril e ao mesmo tempo brutal do marxismo vulgar. O culpado pelo atraso histórico do continente é o êxito dos americanos. O mal é o imperialismo ianque, que exerce sobre nós seu ‘processo de dominação’. Algo assim: Rambo enfia o cano de sua metralhadora na orelha do Jeca Tatu e o obriga a dançar um rock.


O que emerge da conversa de Garcia é uma concepção estanque de culturas nacionais, que deveriam ser protegidas por muralhas para não se deixarem conspurcar pelo esterco alheio. Esterco, go home!


Parece não ocorrer ao nosso Policarpo Quaresma do Planalto que a cultura norte-americana, aliás de maneira análoga à brasileira, é em grande medida caudatária da europeia e forjou-se num complexo e rico processo de interação e entrechoques de nacionalidades e etnias – no qual, aliás, teve relevância a contribuição africana. Sem os negros não haveria o jazz, aquela música perigosa que Hollywood adotou e ajudou a difundir pelo mundo.


Internet sob censura


E o que fez o jazz em seu ‘processo de dominação’ sobre a cultura brasileira? Acabou com o nosso glorioso samba? Ora, Pixinguinha já era jazz. E a bossa nova, que terminou virando marca e orgulho nacional, não existiria sem a dialética do samba com o esterco jazzístico ianque. Oswald de Andrade, que também teve seu sarampo stalinista, já havia apontado: não precisamos ter medo, não somos indefesos, somos antropófagos.


Mas talvez Garcia, lembrando Sebá, o último exilado brasileiro (tipo criado em outros tempos por Jô Soares), ainda considere Tom Jobim e João Gilberto agentes infiltrados da CIA que queriam sabotar nossa autêntica música popular.


O problema das ideias expostas pelo professor é que, estando ele no poder e raciocinando como homem de Estado, indicam a hipótese sombria do autoritarismo. Não apenas ao modo tragicômico de Hugo Chávez, mas ainda pior. Ou como deveríamos entender a saudosa menção aos valores do finado socialismo real? Concordaria o ilustre conselheiro, por exemplo, com o governo chinês, que exerce censura até sobre a internet? Aliás, por que Garcia está tão preocupado com a restrita TV a cabo?


(*) Editor de Opinião da Folha de S.Paulo


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Com medo da liberdade


Luiz Fernando Carvalho


Ao ler as declarações de Marco Aurélio Garcia, lembrei da anedota que circulava na falecida República Democrática Alemã. Sabendo que toda correspondência seria lida por censores, um operário que conseguiu emprego na Sibéria combina com os amigos: ‘Vamos criar um código. Se uma carta estiver escrita em tinta azul, o que ela diz é verdade; se estiver escrita em vermelho, tudo é mentira’.


Um mês depois, os amigos recebem uma carta escrita em azul, que diz: ‘Tudo aqui é maravilhoso, o comércio vive cheio, a comida é abundante, os lares aquecidos, os cinemas exibem filmes do Ocidente, há uma atmosfera de liberdade e justiça social por toda parte. O único senão é que não se consegue encontrar tinta vermelha’.


A menção à inexistência da tinta mostra que a carta deveria ter sido escrita em vermelho. Isso produz o efeito da verdade: era a única forma de transmitir a mensagem verdadeira naquela condição de censura.


Pegando carona na anedota, podemos dizer que a ‘tinta’ usada nas declarações do professor – ‘processo de dominação’ – são termos que maquiam nossa percepção da situação em vez de nos permitir pensá-la, servem para mascarar e manter nossa precariedade audiovisual mais profunda.


A libertação evocada por Garcia transforma-se na melhor de todas as salvaguardas contra a liberdade: ‘A esquerda precisa reagir à difusão de valores capitalistas’, diz. Em que a TV a cabo incomoda este governo? Assiste quem paga, e o assinante tem o livre-arbítrio de cancelar sua assinatura. Questões mais urgentes nas telecomunicações, como os desdobramentos dos canais digitais das TVs, seguem esquecidas em alguma gaveta do Planalto.


Produção duvidosa


A TV a cabo representa uma elite de cerca de 5%, enquanto a maioria da população é arrastada pelos conteúdos [alguns até mais nocivos que os estrangeiros] das TVs abertas, que se abstêm de abraçar uma função maior: a formação de cidadãos, e não só de fiéis consumidores.


Mas isto pouco importa ao assessor, seu negócio é o controle do imaginário brasileiro via TVs a cabo, quem diria. É preciso olhar o mundo. Proibir, não. Nossa TV por assinatura nasceu sob influência de um modelo monopolista da TV aberta e da importação de produtos culturais dos grandes players do cenário internacional. Para alterar a restrição dos 49% no máximo de participação estrangeira nas concessões de TV, é necessário mudar a lei que as regula.


A não ser que Garcia considere que, diante da crescente monopolização das TVs pagas, monopólio por monopólio, o de Estado seja melhor. Mas o assessor escolheu virar suas baterias contra os ideais democráticos, tentando restringir o livre fluxo da informação, como acontece nos regimes totalitários, onde o primeiro inimigo passa a ser a imprensa livre.


Essa mesma imprensa foi quem revelou ao país seus verdadeiros pensamentos ao flagrar seu gesto obsceno [o top-top do Fradinho, do Henfil], captado por uma câmera ‘indiscreta’, espalhando sua chocante reação debochada às primeiras investigações sobre o trágico acidente com o avião da TAM. Em vez de trabalhar para o aprimoramento da indústria cultural brasileira, Garcia opta pelo mais fácil: o cerceamento.


Ataca uma indústria ainda em formação, que nasceu tardiamente no Brasil nos anos 70 e se constituiu como mercado efetivo somente a partir dos 90. Hoje, as TVs por assinatura, que estão se revigorando através de leis de incentivo à produção nacional, deixaram de ser meras repetidoras de conteúdo estrangeiro e começam a gerar empregos para profissionais do audiovisual, trazendo inovação de fora e de dentro.


Debulhando todo o seu conteúdo, é evidente, avista-se muita produção duvidosa, mas se colhe também o que de melhor está sendo produzido no mundo da TV.


Contramão da cultura


Comparar a influência em termos de dominação cultural da TV a cabo à ameaça militar da 4ª Frota americana é no mínimo uma piada [e velha], uma atitude anacrônica de uma esquerda já tão antiquada e sectária que nos faz lembrar os métodos do comandante Quandt de Oliveira, ministro das Comunicações [1974-79] do governo ditatorial do general Geisel, que preconizava a estatização das TVs e o cerceamento da exibição de produção estrangeira, num momento em que a Europa se preparava para privatizar suas TVs e McLuhan já tinha formulado o conceito de ‘aldeia global’.


Ideias obtusas como as proclamadas por Garcia e a insistência em manter o isolamento eletrônico para melhor manipular e dominar – como em Cuba, Venezuela e China – é o mesmo que proibir a publicação de autores estrangeiros. Como diz o filósofo Slavoj Zizek: com esta esquerda, quem precisa de direita?


Caberá ao governo decretar o que é ‘esterco cultural’? Cercear a exibição de conteúdos, numa era de transmídia, é uma medida isolacionista, que não gera troca de ideias nem de ideais. É estar na contramão da cultura e do que acontece no mundo. Fico com Bernard Shaw: ‘Liberdade significa responsabilidade, é por isso que tanta gente tem medo dela’.


(*) Cineasta e diretor de TV; dirigiu Lavoura Arcaica, Hoje É Dia de Maria e Capitu, entre outros