Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Que jornalismo é esse?

É visível que esquenta a temperatura no caldeirão da política nacional. O noticiário da semana não deixa dúvida quanto a isso. Em compensação, o mesmo noticiário, pelo modo como no Brasil se desenvolve a atividade jornalística, libera no ar uma série de dúvidas. Libera dúvidas não por aquilo que informa mas exatamente pelo conteúdo subtraído.

Tirando o destaque que a mídia conferiu a um dos mais ridículos engodos (a melhor lição jornalística seria a do mais completo descaso) – a separação do ‘fenômeno’ e de sua não menos respectiva ‘fenomenal parceira’ –, a semana foi habitada por exemplos sucessivos de episódios cujo perfil bem retrata a pequenez – não apenas da imprensa – da vida política. Do grande acontecimento (Cúpula América do Sul-Países Árabes), creio ninguém, até hoje, haver compreendido sua finalidade. Mas aconteceu e repleto de ‘fatos’ tão pequeninos quanto grandiosa a mesquinharia a envolvê-los. Contudo, a mídia cobriu com a maior ‘seriedade’.

De igual modo, a aniversariante pelos 40 anos (a magnânima TV Globo) registrou, em tom de absoluta naturalidade, o ‘descasamento’ dos até então fenomenais seres apaixonados. Tudo é tão natural que a edição do telejornal da emissora aniversariante, no dia da separação, encerrou, ainda na voz de Ana Paula Padrão, com a singela frase: ‘Tudo terminou como uma história normal’.

Claro, como a TV Globo que alimentou a novela ‘Paixão fenomenal’, cujo capítulo de estréia se dera numa das edições do Fantástico, passaria recibo crítico no ‘monstrinho’ que ela própria ajudou a patrocinar? E assim, de cinismo em cinismo, a vida brasileira vai sendo levada – não sei bem para onde. Salve-se, ao menos, o tom debochado do pequeno texto de Danuza Leão, publicado na edição de 12/5/05 da Folha de S. Paulo (‘Se tiver saudades dela, faça 1.500 abdominais’).

Além da ‘nobre’ missão

Nem de longe vamos imaginar que os gravíssimos fatos que atingiram dois jornalistas, excetuando-se o esforço do Observatório da Imprensa (tanto na TV Educativa quanto na edição online), ocuparam os demais veículos para além da indiferença. Deduz-se que prisão de jornalista e apreensão de livro não são acontecimentos para ocuparem noticiários, assim terão pensado os doutos responsáveis pela circulação de mensagens no país. E haja mais cinismo.

Ao término da semana, eis que dois fatos surgem das entranhas do caldeirão político: 1) O STF confere abertura ao processo contra o presidente do Banco Central; 2) Uma sentença judicial decretada no município de Campos (RJ) decreta a inelegibilidade do ‘casal Garotinho’ até 2007.

É curioso que, em questão de poucos dias, o Poder Judiciário (que abriga causas como prisão para injusto ‘delito jornalístico’ e cassação de livro) tenha também produzido dois julgamentos em época tão oportuna para interesses de setores da política nacional. A imprensa, porém, sequer sub-repticiamente inferiu qualquer coisa para além da ‘nobre’ missão de ‘informar’. Então, aqui vamos tentar colaborar com a legião de leitores órfãos, arriscando conjecturas, bem no estilo condenável pelo formato midiático brasileiro.

Caldo de ‘acriticidade’

Para o governo federal e seu maior ‘amigo de algumas horas’, o PMDB, a condenação do casal, nesse período, é o que de melhor poderia ocorrer. É sabido que a alta cúpula do PMDB não pretende dar guarida à candidatura de Garotinho ao pleito presidencial de 2006. Sabido também é que a permanência de Meirelles – o verdadeiro condutor da política econômica no país – não será conveniente ao governo federal, quando, efetivamente, tiver início a campanha para as próximas eleições. Também para o próprio futuro do presidente do Banco Central não convém a prorrogação de suas atuais funções por muito mais tempo. Conta-se que ele pretenderia concorrer ao governo de Goiás.

Para o PT, ficará incômodo sustentar que seu maior feito – o propagado êxito da política econômica – tenha sido gerenciado por banqueiro egresso do PSDB, o único real concorrente. Igualmente, para o PT, é mais que uma dádiva se vingar a inelegibilidade de Garotinho – deixe-se claro aqui o fato de não haver da parte do articulista nenhuma razão, seja de apoio a candidaturas, seja de simpatia por qualquer partido. Sou politicamente antenado, porém, ‘desenraizado’. O que, a rigor, pretendo assinalar é a preocupação com o cidadão deste país, exposto à secura da divulgação desses fatos, sem a menor articulação crítica. Tudo é noticiado como algo que surge do nada. A tal recomendada imparcialidade (há os ingênuos que nela acreditam) acaba gerando efeito contrário. Sem o apoio da imprensa para o público promover a catarse crítica, esse público se torna refém de seus próprios impulsos. São esses impulsos de desconexão e de desarticulação crítica que geram ascensão das deformações políticas.

É desse caldo de ‘acriticidade’ que, adiante, derivam milhões de votos nos ‘enéias’ da vida (ou da morte). Um dia, abrem-se os olhos e o monstro reina. Tais enredos já existiram em muitas partes do mundo e em diferentes épocas. Que jornalismo é esse?

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro