Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Quem briga e quem brinca

Parece não ser mais segredo para quem, com alguma preocupação crítica, a percepção de que a mídia, em especial a brasileira, é regida pela lógica binária. Em si, a questão já constitui um problema. Ao operar o registro dos acontecimentos com base na visão dual, a mídia tende a inviabilizar outras possibilidades de enfoque, centralizando a discussão sempre em duas direções.

É esse modo de proceder da mídia que confere enganosamente à lógica binária a aparência de uma razão dialética, para, na verdade, acabar fixando variantes do que não passa de simples razão dogmática. Incorrendo nessa prática, a mídia se torna, ainda que involuntariamente, um entrave à pluralidade democrática, ao mesmo tempo em que lhe inibe o amadurecimento de um pensar crítico, empobrecendo o exercício do debate e de análises.

CFJ e Ancinav: uma não é a outra

Acontecimentos recentes dão ampla visibilidade às pontuações alinhavadas na introdução deste artigo. Por coincidência ou por ardilosa estratégia, o governo lançou para a arena da discussão duas propostas, gerando duas frentes de provocação que os setores midiáticos imediatamente incorporaram, com base em reatividades mais emocionais que propriamente analíticas.

Na habitual tendência de uma redução binária, logo se instituíram grupos de ‘torcida organizada’, tendo como conseqüência – descontadas as raridades de sempre – turmas do ‘contra’ e turmas do ‘a favor’. O mais grave, porém, derivou do fato de que, ante a tentação irresistível à simplificação, formaram-se dois grupos cuja característica é repelir as duas propostas ou endossar ambas. Pronto, instalada a binaridade acrítica, perdendo-se a visibilidade das diferenças que, além de profundas, recortam posicionamentos políticos absolutamente distintos entre si.

É notório, ao menos para quem se dá ao trabalho de distinguir as coisas, que a proposta a cercar a criação do Conselho Federal de Jornalismo vem recoberta de interesses, no mínimo, sombrios, a começar pelo estranho critério de o primeiro mandato ser cumprido por membros autonomeados. É como se, ao tempo da redemocratização, o regime militar fixasse a volta ao Estado de direito, mediante a seguinte imposição: ‘A sociedade brasileira reconquistará o direito de escolher seu presidente, em eleições diretas, desde que o primeiro seja um general’. Seria tão risível quanto suspeito.

Outro ponto é atinente aos tais ‘verbos’ (‘fiscalizar’, ‘disciplinar’ e ‘orientar’), cuja explicação avilta qualquer princípio de razoabilidade semântica. Segundo os defensores, ‘fiscalizar’ não significa ‘controlar ou vigiar’. Significa o quê? ‘Disciplinar’ não quer dizer ‘limitar’. Quer dizer o quê? Por fim, ‘orientar’ não revela ‘dirigir’. Traduz o quê? Ou seja: o projeto exala um certo odor desagradável.

Como aspecto mais enfaticamente defendido pelos proponentes do CFJ, apresenta-se a épica bandeira da plena liberdade que, sob a proteção da nova entidade, possibilitaria aos jornalistas o livre tratamento de temas e formulação de pautas, ainda que contrárias aos interesses patronais, garantindo tal exercício contra o fantasma de demissões. Esta, sem dúvida, é a mais pífia das ilusões. A julgar o procedimento de entidades similares, não consta que engenheiros e médicos tenham a guarda de seus empregos por seus respectivos conselhos. O problema é que essas ‘pérolas’ de demagogia ou de ingenuidade são difundidas e ficam pairando no ar, realimentando-as.

Na contramão do ideário subjacente a sustentar o projeto do CFJ, está a proposição de um órgão regulador – Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual) – que esboça um esforço no sentido de implementar redefinições de uma política cultural. Como tal, cria desconfortos em certos redutos cujos interesses já cristalizados ao longo de décadas se vêem ameaçados. Entre outros pontos:

** a abertura para a entrada de filmes europeus e orientais em regime de equiparação à atual hegemonia da indústria cinematográfica norte-americana;

** regulamentação para exibição de cotas de filmes brasileiros tanto em cinemas quanto em emissoras de televisão;

** reserva de cotas, na grade de programação das emissoras de TV, para produções independentes, a exemplo do que ocorre na maioria dos países;

** incremento de programação diversificada e regional, em atendimento a peculiaridades culturais.

Vitória da esperteza

Como bem se pode perceber, o projeto formulado pelo Ministério da Cultura abriga razoável dose de coragem. Politicamente, as argumentações e proposições que norteiam a criação do CFJ não se afinam com as pretendidas pela formação da Ancinav. Estar, portanto, a favor de ambas ou contra as duas – dado o antagonismo dos perfis – é sintoma de olhar turvado ou de cegueira reflexiva. Também pode ser ataque de preguiça intelectiva. Ao passo atrás de um, corresponde o passo à frente do outro. O estrago maior fica por conta do risco de o projeto ousado ser enfraquecido em função da inutilidade do outro.

A esse respeito, bem escreveu o jornalista Alcino Leite Neto, em artigo da Folha de S.Paulo (‘Azares de um ministério’, 16/8). A lógica binária não dá conta de assimetrias. Setores da mídia precisam descobrir esse fundamento.

Em meio ao alvoroço das duas propostas, ambas sob respaldo da esfera governamental, ainda que amparadas por procedimentos diferentes, a mídia, dividida internamente, se encontra enroscada nela mesma enquanto o governo saiu pela porta dos fundos, praticamente ileso, passadas as horas iniciais. Sem dúvida, há de se reconhecer competência política. O governo pode até não demonstrar lá muita capacidade para inovar e mudar a realidade do país. Todavia, é inegável sua astúcia em promover agitações, discussões e simulações, a exemplo da naturalidade com a qual desfaz bandeiras de décadas.

Nesse roteiro de propostas incongruentes, a intriga foi disseminada e a mídia, subordinada à lógica binária, bate cabeça internamente, preservando o agente da confusão. Esse é o preço pago pela crescente e reinante onda de acriticidade. Saudações ao reino da lógica binária…

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro