Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Quem perde é a democracia

Nos últimos meses, ainda mais do que nas últimas décadas, temos assistido a uma crescente intolerância dos principais grupos de mídia – Estadão, Folha, Globo e Abril – e das associações por eles controladas – ANJ, ANER e Abert – em relação ao debate sobre as comunicações no Brasil.


Um dos princípios básicos da democracia é exatamente que qualquer tema pode e deve ser discutido pela cidadania. É assim, dizem os liberais, que se forma a opinião pública esclarecida – responsável, em última instância, pela escolha periódica e legítima dos dirigentes políticos do país.


Na democracia praticada pela grande mídia brasileira, no entanto, as comunicações devem ser permanentemente excluídas desse debate. Qualquer pré-projeto, projeto, estudo, carta de intenções que se encontre em alguma gaveta de um ministério que inclua ou insinue o debate sobre a mídia será, automática e irreversivelmente, rotulado de ‘ameaça autoritária’ e/ou ‘ataque à liberdade de expressão’.


A rotina é sempre a mesma: um jornalista encontra um desses pré-projetos, projetos, estudos e/ou carta de intenções; o jornalão dá manchete de primeira página alertando para o mais novo ataque do governo à liberdade de expressão e/ou à liberdade de imprensa; os outros jornalões (revistas e emissoras de rádio e televisão) repercutem a matéria entrevistando as mesmas fontes de sempre – pessoas e/ou entidades. Em seguida, todos publicam editoriais e/ou artigos de ‘analistas’ sobre ‘as ameaças’ autoritárias. Está armado o cenário.


Constituição não é parâmetro?


A quem interessa a permanente interdição da mídia como tema da agenda pública de debates? O que realmente querem e esperam os grupos empresariais que controlam a grande mídia no nosso país?


As normas adotadas unanimemente em democracias consolidadas do planeta e a Constituição Federal não servem mais de parâmetro para que se ‘permita’ ou ‘admita’ o debate. Até mesmo propostas de regulamentação de dispositivos constitucionais têm sido entendidas, sem mais, como significando um ‘ardil’ e/ou uma ‘armadilha’ do governo para instalar um regime autoritário no país e, portanto, são automaticamente desqualificadas.


Ou não foi exatamente isso que ocorreu em relação às propostas da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) – boicotada pela grande mídia; às diretrizes do III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) – ignorado ao longo de todo seu processo de construção; e, mais recentemente, ao documento-base da 2ª Conferência Nacional de Cultura que será realizada em março?


Despreza-se inteiramente a necessidade de leis federais – vale dizer, de um marco regulatório – que regulem a atividade de mídia, inequivocamente expressa na Constituição. Está escrito:




Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.


(…)


§ 3º – Compete à lei federal:


I – regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;


II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.


Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:


I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;


II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;


III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;


IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.


E a democracia?


Na verdade, a grande mídia tem se colocado acima das leis, da Constituição e das decisões do Judiciário, apesar de se apresentar como defensora suprema das liberdades.


Ao mesmo tempo, se recusa a discutir ou a negociar, boicota conferências nacionais, distorce e omite informações, sataniza movimentos sociais, partidos, grupos e pessoas que não compartilham de seus interesses, projetos e posições. Dessa forma, estimula a intolerância, a radicalização política e o perigoso estreitamento do debate público.


Como explicar, então, a atitude cada vez mais intolerante da grande mídia? Onde encontrar hipóteses e/ou explicações para um comportamento que, tudo indica, é deliberadamente articulado?


Acuar o governo e impedir que ele tome qualquer iniciativa no setor? Intimidar os movimentos sociais? Garantir a manutenção de interesses ameaçados? Estratégia de combate para o ano eleitoral?


Seja qual for a explicação, a principal derrotada é a democracia, exatamente o valor que a grande mídia simula defender.


 


Leia também


A mídia contra a Constituição – V.A.L.


A Constituição ameaça a mídia? – V.A.L.


A grande mídia unida contra a democracia — João Brant


Em defesa do inconfessável — Luiz Egypto


Ideia fixaO Globo


Nova investida contra a democraciaO Estado de S.Paulo


O Estadão e a democracia — Glauber Piva

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)