Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Reações à democratização da informação

Neste pós-segundo turno, um dos temas que tem ocupado amplos espaços na imprensa é a democratização da informação. Como sempre acontece toda a vez que a discussão começa a ganhar espaço, a mídia conservadora e alguns colunistas abordam a matéria, consciente ou inconscientemente, de forma equivocada. No Jornal do Brasil, O Globo, Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo editoriais e ‘análises’ apresentam o tema democratização da mídia como se fosse algo relativo a um partido político, mais precisamente ao PT.

Que o partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva se sinta atingido pela cobertura, considerada facciosa, das eleições, é uma coisa – e até um direito. Que o PT venha a apoiar, da mesma forma que qualquer outro partido político, a mobilização dos movimentos sociais no sentido de democratizar a mídia, é um direito que o assiste. Inegavelmente, se partidos políticos aderirem a esse projeto, a mobilização se fortalece.

Misturando as bolas

O tema democratização da mídia está, sim, na ordem do dia. A mídia conservadora inclusive misturou o tema com o episódio em que os repórteres da Veja foram chamados pela Polícia Federal para esclarecer fatos de uma matéria relativa ao caso do dossiê. Imediatamente a Veja partiu para o ataque, encontrando respaldo nos demais órgãos de imprensa.

A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), a entidade que reúne o patronato conservador das Américas, foi acionada para tomar as dores da revista editada no Brasil. Gonzalo Marroquín, presidente do setor de Liberdade de Imprensa e Informação da SIP, um jornalista guatemalteco, editor do jornal Prensa Libre (editado na capital guatemalteca), com base na informação colhida apenas do lado da Veja, assinalou que ‘o fato [a convocação dos jornalistas] representa um abuso de poder’.

Em outras oportunidades, a mesma SIP não procedeu de forma tão enfática, inclusive quando, em 2002, elegeu como presidente Danilo Arbilla, jornalista uruguaio que foi porta-voz do então presidente Juan Maria Bordaberry, responsável pelo golpe militar, em junho de 1973, e veio a se tornar encarregado de imprensa da ditadura uruguaia. Quando Arbilla foi escolhido presidente da SIP, três publicações uruguaias – a revista Posdata e os jornais La República e El Diário – abandonaram a entidade por entenderem que alguém que compactuou com a ditadura não poderia ocupar o posto para o qual tinha sido escolhido pelo patronato midiático conservador. A SIP silenciou sobre o protesto.

Esta mesma SIP, que tem denunciado supostas arbitrariedades contra a imprensa cometidas pelo governo do presidente Hugo Chávez, conviveu harmoniosamente com a direção do jornal chileno El Mercúrio, apoiador de primeira hora da ditadura de Augusto Pinochet e da derrubada do presidente constitucional Salvador Allende.

Lembrança equivocada

A SIP, com praticamente todos os maiores órgãos de imprensa do Brasil e da América Latina, é também a primeira a combater a mobilização que vem se ampliando em favor da democratização da informação. O patronato das Américas confunde liberdade de imprensa com liberdade de empresa, e não aceita nenhuma modificação do esquema que o favorece.

No caso da Venezuela, a mídia conservadora, que ocupou o espaço dos partidos políticos também conservadores, derrotados em todas as eleições democráticas a partir de 1998, tem recebido o integral apoio da SIP. A mesma SIP que nunca respondeu a questionamentos que lembravam seu silêncio comprometedor em relação ao El Mercúrio, o jornal que recebeu subsídios (US$ 1,5 milhão) da CIA, como comprovam documentos tornados públicos, tem se arvorado defensora do esquema de imprensa latino-americano, que é visivelmente tendencioso e se alinha com grupos que defendem com unhas e dentes a manutenção do status quo não só midiático, como econômico.

Nesta linha encontra-se a revista Veja e demais órgãos de imprensa brasileiros, muito próximos ao grupo venezuelano de Gustavo Cisneros (magnata do setor de comunicação com ramificações em toda a América Latina), o que não chega a ser propriamente uma novidade – mas é um fato omitido justamente pelos colunistas que hoje se voltam contra a democratização dos meios de comunicação.

A questão é mal colocada pela mídia conservadora, desejosa de impedir que o tema prospere. A democratização da mídia não é um projeto do PT ou do governo Lula, e muito menos tem alguma relação com o autoritarismo. Houve até um desses colunistas desinformados que chegou a afirmar que o tema remete ao DIP, o Departamento de |Imprensa e Propaganda da ditadura Vargas (1937-1945). Nada a ver: a democratização da mídia está vinculada, isto sim, ao aprofundamento do processo democrático participativo.

Mídias públicas e comunitárias

Hoje, em toda a América Latina, o fortalecimento das mídias públicas e comunitárias é uma necessidade e independe deste ou aquele governo, embora alguns governos apóiem esse fortalecimento, como ocorre na Venezuela. É uma questão, isto sim, de política pública que os movimentos sociais têm pressionado e colocado na pauta de discussões.

Seja qual for o governo, a sociedade latino-americana não aceita que o espaço midiático seja ocupado apenas pelo esquema conservador – que manipula, tergiversa e tenta se colocar acima de qualquer questionamento ou suspeita; e, ao ser questionado, parte para a ofensiva e se coloca como vítima.

É bom lembrar que o debate sobre democratização da mídia remete para o tema democratização das verbas públicas na área da mídia. Não se trata de política deste ou daquele governo, ou mesmo da linha editorial de uma determinada publicação. Por que não um jornal X ou Y, que apóie ou faça oposição ao governo, não pode receber publicidade do Estado? Por que apenas os grandes veículos devem receber esta verba publicitária, como geralmente acontece, e jornais da imprensa alternativa, não? Por que não adotar um critério equânime?

Por que o Estado brasileiro não ajuda a consolidação das rádios e TVs comunitárias, distribuindo também de forma equânime essas verbas publicitárias? Por que mídias públicas como as emissoras legislativas, municipais e educativas não são apresentadas em canais abertos, competindo naturalmente com os canais privados, que atuam em rede e estão sob o controle de poucas famílias?

Onde está o ‘autoritarismo’, como querem incutir na opinião pública os colunistas da mídia conservadora, quando a atual ordem midiática é colocada em discussão?

Direitos assegurados

Em países considerados bastiões democráticos, como a Suécia e o Canadá, as mídias alternativas às grandes mídias recebem o apoio do Estado. Na Suécia, qualquer publicação que tenha comprovadamente assiduidade e leitores recebe o apoio estatal. Uma publicação do Partido Comunista, opositor do partido conservador ou social-democrata, tem a sua quota garantida. Esta política pública sobrevive à eventual alternância de poder entre os partidos suecos, como aconteceu recentemente.

Por estas e outras, só mesmo o aprofundamento do debate sobre a democratização da mídia fará com que a sociedade brasileira conheça verdadeiramente o alcance da luta que vem sendo travada pelos movimentos sociais. Hoje, querendo ou não os representantes da mídia conservadora e a SIP, o fortalecimento na América Latina das mídias públicas e comunitárias é um fato real. Não há como voltar atrás.

A sorte está lançada, mesmo que em determinados momentos, como está acontecendo agora no Brasil, o conservadorismo do esquema do pensamento único reaja de forma grosseira e desinformativa ao novo cenário midiático.

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Jornalista