Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Redução da imoralidade penosa

A redução da maioridade penal está nos noticiários. O Globo manchetou neste sábado, 10 de fevereiro: ‘Martírio de criança reabre debate sobre leis mais duras’. Na chamada: ‘Cabral defende rediscussão da idade penal; Lula, CNBB e STF são contra’. Os jornais e televisões criam o clima de discussão e com isso muita gente acredita que se está realmente debatendo a questão, quando na verdade tudo não passa de um momento de comoção pública, em razão de mais um crime hediondo – um entre os muitos cometidos diariamente de norte a sul do país.

Na reportagem de O Globo, José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública, declara: ‘A cada dia, 130 pessoas são assassinadas no país, mas sempre que há um crime de repercussão como esse [a morte do menino João Hélio Fernandes, de 6 anos], o assunto volta a ser discutido, sem resultados práticos’.

Quando jovens pobres são chacinados – como em 30/1, em São Paulo (três mortos), ou em 1/2 (seis mortos e um sobrevivente), e no Rio, em 24/1 (três mortos) –, a primeira especulação dos que fazem os noticiários diz respeito ao envolvimento ou não das vítimas em atividades criminosas. Se tinham ou não ‘passagem’ pelas delegacias; se estavam ou não envolvidos com o tráfico de drogas; se eram bons ou maus; se estudavam ou soltavam pipa o dia inteiro; se trabalhavam ou eram ‘vagabundos’. Caso venham a ser reconhecidos como delinqüentes (a circunstância de pobreza já lhes confere a condição de ‘suspeitos’), parece que tal fato justificaria o ato criminoso. É como se justiça tenha sido feita e Pilatos lavasse as mãos.

Intertítulo equivocado

Chacinas de jovens pobres não causam comoção, mas especulação sobre as atividades das vítimas. Em se tratando da morte de jovem favelado trabalhador, há um sentimento de piedade nos depoimentos dos entrevistados: ‘Coitado, não merecia isso, que Deus o tenha’, ‘A violência está insuportável! Lá se foi mais uma vítima’. Se ‘comprovado’ o envolvimento da vítima com atividade criminosa: ‘Fez por merecer’, ‘Um a menos’.

Ainda na reportagem de O Globo, um intertítulo chama para ‘Juiz sugere dobrar punição máxima’. Baseado na transcrição da fala do juiz, tanto este quanto o jornal se equivocaram ao tratar da questão. O que a lei determina para um adolescente envolvido em ato infrator não pode ser classificado como ‘pena’, mas sim, medida sócio-educativa, que visa à ressocialização e reinserção do jovem infrator na sociedade.

Redução de inimputabilidade

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/90) estabelece que ‘a medida [sócio-educativa] não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses’ e ‘em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos’. O juiz da 2ª Vara da Infância e da Juventude, Dr. Guaracy Vianna, propõe o aumento do período máximo de internação, passando dos três anos, conforme determina a lei, para seis anos. É bem diferente das propostas de redução da maioridade penal, quando o adolescente infrator responderia nos mesmos termos do Código Penal, que hoje só se aplica aos maiores de 18 anos.

Os que se opõem ao ECA alegam que esta seria uma norma em desarmonia com as estruturas sociais de um país como o Brasil. Apontam no Estatuto um excesso de complacência com os jovens delinqüentes e, portanto, defendem a elaboração de leis mais rigorosas, que possam conter a delinqüência juvenil.

O ECA dispõe no seu Art. 2º: ‘Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.’ E o Art. 104 determina: ‘São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei.’ Portanto, somente a partir dos dezoito anos de idade o indivíduo torna-se sujeito às prescrições do Código Penal. Porém, tramitam no Congresso Nacional projetos de lei que pretendem reduzir a maioridade penal para 16, 14 e até 12 anos. Ou seja: a partir de uma dessas idades, os adolescentes infratores receberiam o mesmo tratamento jurídico dispensado aos adultos.

Bodes expiatórios

Se vamos reduzir a maioridade penal, como nos EUA, o que muita gente sugere, então, para sermos verdadeiramente justos, é que também se ofereçam as condições sociais dos estadunidenses aos brasileiros. Querem que os brasileiros estejam submetidos às mesmas leis dos ingleses, por exemplo? Então vamos oferecer aos brasileiros todas as condições sociais dos ingleses. Daí podemos até pensar no caso.

Geralmente os defensores do arrocho penal sobre os jovens acreditam que tal medida inibiria o inegável crescimento da delinqüência juvenil em nosso país. São pessoas que acreditam que a inimputabilidade penal dos adolescentes seja a principal causa de estes se aventurarem na prática de atos infracionais. Vão além, dizem ainda que, por se tratar de uma legislação ‘branda’, ‘indulgente’, muitos jovens teriam assumido a autoria de crimes praticados por adultos. Em relação aos possíveis casos em que adolescentes assumiram a responsabilidade sobre crimes cometidos por pessoas adultas, tal fato não se relaciona propriamente à suposta ‘brandura’ do ECA mas, sim, às condições de parte mais fraca a que os adolescentes estão expostos.

Se as leis ditassem penalidades de igual para igual entre jovens e adultos, ainda assim os adolescentes, vez por outra, seriam obrigados a fazer o papel de ‘buchas’, conforme são cognominadas as pessoas indiciadas como autores de crimes dos quais não participaram. Adolescente não assume coisa alguma devido à ‘brandura da lei’, mas porque são os ‘naturais’ bodes expiatórios.

Moralismo aproveitador

Muita gente ainda alega que o direito ao voto (facultativo) concedido ao jovem na faixa etária compreendida entre 16 e 18 anos equipara-o ao eleitor adulto, este sujeito às penalidades estabelecidas no Código Penal. Um raciocínio aparentemente silogístico: ‘os votantes estão sujeitos aos rigores da lei penal, os adolescentes agora são votantes, logo, os adolescentes também seriam imputáveis’. É como se a letra da lei tivesse o poder de acelerar o processo de maturidade do indivíduo.

Baseados na ‘lógica’ dos partidários da redução da maioridade penal, teríamos que estender aos adolescentes direitos, tais como, por exemplo, ao consumo de bebidas alcoólicas, tabagismo e, inclusive, reconhecer o ‘direito’ de se prostituir, que as jovens de 16 já teriam ‘conquistado’, pois no nosso país a prostituição de mulheres adultas não é crime (os artigos 227 a 230 do Código Penal estabelecem que crime é mediar, induzir, facilitar ou tirar proveito da prostituição alheia).

Dentre as sugestões e palpites que li nos diversos jornais e ouvi nas mesas de debate das televisões, desde a morte do garoto arrastado pelas ruas da Zona Norte do Rio, somente os argumentos do Dr. Guaracy Vianna podem ser considerados mais realistas e merecedores de atenção e análise. Porém o mesmo meritíssimo juiz deveria observar que as medidas alternativas, tais como ‘obrigação de reparar o dano’ e ‘prestação de serviços à comunidade’ são pouco aplicadas, enquanto a internação em regime fechado, ou mesmo de semiliberdade, tem agravado o problema da delinqüência juvenil, visto que jovens que cometem pequenos delitos acabam convivendo com os mais experientes infratores e, geralmente, aprendem novos e ‘eficientes’ métodos para a prática de delitos.

Enquanto isso, a imprensa se limita a aguardar o novo crime hediondo com o envolvimento de adolescente infrator e vítima inocente (não vale ser vítima do envolvimento em tráfico de drogas e quadrilhas outras), para novamente criar o clima de comoção e a população clamar por justiça e combate ao crime de forma ‘eficaz’, como, por exemplo, ‘redução da maioridade penal’. Eficaz mesmo seria reduzir as inconsciências, a imoralidade e o moralismo dos aproveitadores.

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Escritor, Rio de Janeiro, RJ