Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Reflexões do lamaçal

Foi preciso uma tragédia de dimensões históricas para que a imprensa, ainda que parcialmente, começasse a abordar a questão do uso da terra, tanto na zona rural como nas cidades. Como se sabe, a gestão territorial é um dos desafios mais difíceis de resolver no dilema do desenvolvimento sustentável do Brasil e da modernização das nossas relações sociais e econômicas.


A partir das discussões sobre as consequências catastróficas dos deslizamentos de morros e das enchentes, pelo menos um dos grandes jornais – a Folha de S.Paulo – abre um debate até aqui relativamente produtivo sobre o projeto de mudança no Código Florestal.


Na quarta-feira (19/1), um representante da agroindústria ofendeu publicamente jornalistas, biólogos, economistas e outros profissionais que se opõem à flexibilização das regras para o desmatamento, chamando-os de ‘aloprados’ em artigo publicado no ‘Espaço Aberto’ do Estado de S.Paulo (ver ‘O MDA maior que o Mapa?‘).


Felizmente, nem tudo são arroubos de tecnocratas bem remunerados. Também começam a brotar algumas reflexões que podem conduzir o novo governo a se apropriar da questão e deixar menos à vontade o lobby dos desmatadores no Congresso Nacional.


Soluções duradouras


O Estado de S.Paulo, o jornal brasileiro tradicionalmente mais afinado com o empresariado rural, ainda não tratou do assunto neste novo contexto, mas apresenta, na edição de quinta-feira (20/1), interessante reportagem sobre o desafio que representam, para o governo da presidente Dilma Rousseff, os resultados pouco animadores da reforma agrária.


Segundo o jornalão paulista, a promessa da presidente, de erradicar a miséria, esbarra no fato de que 38% dos assentados em projetos do Incra não conseguem obter renda suficiente para viver de suas lavouras. Associadas a esse tema existem outras questões econômicas e até culturais, como o apego a técnicas agrícolas pouco produtivas, a falta de qualificação, precariedade das comunicações e dos transportes, desorganização ou controle oligopolístico de mercados regionais, etc.


Se mantiver uma abordagem mais abrangente, a imprensa contribui para a solução dos problemas. Mas se voltar ao ramerrão ideológico de sempre, seguiremos atolados na lama.


Mais rigor na lei


De qualquer forma, a relação feita pela Folha de S.Paulo entre o projeto de flexibilização do Código Florestal e os riscos de novas tragédias como a que atinge a região serrana do Estado do Rio faz todo sentido. Na quinta-feira (20), o jornal volta ao assunto, abordado anteriormente no domingo (16), informando que o Ministério do Meio Ambiente vai propor mudanças no projeto em tramitação, que até aqui tem andado sob o comando da bancada ruralista. O jornal lembra que o relatório de autoria do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), aprovado no ano passado por uma comissão especial da Câmara, permite a ocupação de áreas de preservação permanente onde hoje é vedado qualquer tipo de construção.


Como existem áreas de preservação permanente em territórios urbanos, evidentemente uma flexibilização do Código Florestal vai aumentar os riscos de novas tragédias nas cidades. Além disso, não custa lembrar que, em 1967, a catástrofe que arrasou a cidade de Caraguatatuba, no litoral norte de São Paulo, foi provocada pelo deslizamento maciço de encostas da Serra do Mar, na zona rural.


Não há nada, portanto, de aloprado, em vincular a tentativa do movimento ruralista de abrir suas picadas na legislação florestal aos acontecimentos trágicos deste e de outros verões em muitas cidades brasileiras.


Vão dizer os apologistas de má-vontade que o Código Florestal, como é, não impediu as tragédias. Claro. Mas as exigências mais recentes, junto com a pressão da opinião pública, tem permitido reduzir os desmatamentos.


A tendência do governo, segundo o vice-presidente Michel Temer, citado pelo Globo e pela Folha, é criar uma legislação ainda mais rigorosa, inclusive punindo prefeitos que permitem construções em áreas de risco.


O debate sobre o Código Florestal e as catástrofes recentes, com número recorde de vítimas, deve conduzir a uma consolidação das leis para os ambientes urbano e rural. Mas isso tem ser feito agora, e acompanhado pela sociedade, porque a imprensa sabe provocar lágrimas durante as tragédias mas costuma esquecer rapidinho as promessas de mudança, quando determinados interesses entram em jogo.