Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Regulação, a discussão interditada





Questão polêmica na cena da radiodifusão no
Brasil, a regulação da mídia eletrônica esteve em pauta na semana passada por
conta do seminário internacional ‘Comunicações Eletrônicas e Convergências de
Mídias’, realizado nos dias 9 e 10 de novembro, em Brasília, organizado pela
Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom). Onze
representantes de entidades reguladoras de diversas nações democráticas
estiveram em Brasília para conversar sobre os modelos adotados em seus países e
mostrar diferentes formas de regulação. Para grande
parte da mídia, a


realização do evento mostrou a disposição do governo federal
em estabelecer meios de controlar e censurar o setor.

Uma das maiores polêmicas do evento foi a crítica de Toby Mendel, consultor
internacional da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO), sobre a interferência política nas concessões de canais de
radiodifusão. Outro ponto controverso levantado por Mendel foi a criação de uma
agência reguladora ou a adoção da autorregulamentação para o setor de
radiodifusão no Brasil. O Observatório da Imprensa, exibido ao vivo na
terça-feira (16/11) pela TV Brasil, discutiu a cobertura do evento e os
principais pontos tratados no seminário.


Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o cientista político
Fernando Lattman-Weltman. Especializado em mídia e política, elites e
instituições políticas brasileiras e teoria política, ele é professor e
pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da
Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV). Em Brasília, o programa contou com a
participação de Venício A. de Lima e Guilherme Canela, que estiveram presentes
no seminário. Sociólogo e jornalista, Venício é pós-doutor em Comunicação pela
Universidade de Illinois e também pós-doutor pela Universidade de Miami-Ohio e
colunista do Observatório da Imprensa online. Acompanhou, como assessor,
a formulação do capítulo sobre ‘Comunicação’ durante os trabalhos do Congresso
Constituinte (1987-88). Guilherme Canela é mestre em Ciência Política pela USP e
coordena a área de Comunicação e Informação do Escritório da UNESCO no
Brasil.


Mídia sem crítica


Em editorial, Dines comentou a resistência da chamada grande mídia em ser
criticada. ‘A mídia brasileira, impressa ou eletrônica, sofre de uma visível
alergia à exposição pública. Não é modéstia ou discrição, parece ser uma aversão
à transparência’, sublinhou [ver íntegra abaixo]. Para o jornalista, a
mídia eletrônica considera qualquer ferramenta de regulação como ameaça à sua
independência.


O Observatório exibiu uma reportagem com trechos do seminário e
mostrou como foi a cobertura da imprensa sobre o evento. Na abertura do
encontro, o ministro-chefe da Secom, Franklin Martins, destacou que a discussão
sobre a regulação da mídia eletrônica no Brasil precisa ser travada. ‘Nenhum
setor tem o poder de interditar a discussão. A discussão está na mesa, está na
agenda. Ela terá que ser feita. Ela pode ser feita em um clima de entendimento
ou em um clima de enfrentamento. Eu acho que é muito melhor fazer em um clima de
entendimento’. No dia seguinte, a maioria dos jornais estampou manchetes
afirmando que o ministro partira para o ataque.


Franklin Martins ponderou que regular o processo de convergência de mídias é
‘um tremendo desafio’ e uma grande necessidade para todos os setores. Para o
ministro, sem regulação não se estabelecem regras claras, não há a produção de
um ambiente estável onde os interesses da sociedade prevaleçam. Outro ponto
levantado pelo ministro foi a concessão de canais de radiodifusão a
parlamentares. ‘Criou-se na área de comunicação uma situação que foi um pouco
‘terra de ninguém’. Todos nós sabemos que deputados e senadores não podem ter
televisão, mas todos nós sabemos que deputados e senadores têm televisões
através de subterfúgios dos mais variados. Está certo? Evidente que está errado.
E por que não se faz nada? Porque eu acho que a discussão foi sendo o tempo todo
contida, evitada, e agora é uma oportunidade para que se rediscuta isso’,
afirmou Martins. ‘Se não houver um processo de discussão público, aberto e
transparente, que coloque na mesa os interesses – legítimos – de cada um, e se
resolva à luz dos interesses nacionais, quem vai regular não é o debate, é o
mercado. Não é o Congresso, quem vai regular é o mercado. E quando o mercado
regula, quem ganha é o mais forte.’


Mercado e regulação


O programa mostrou as opiniões outros participantes do evento, como José
Amado da Silva, presidente da Anacom e José Alberto Azeredo Lopes, presidente da
Entidade Reguladora para a Comunicação Social, ambos de Portugal; Ángel García
Castillejo, conselheiro da Comissão de Mercado das Telecomunicações da Espanha;
Vincent Edward Affleck, diretor internacional do Office of Communications
(Ofcom), do Reino Unido; Susan Ness, ex-comissária da Federal Communications
Commission, dos Estados Unidos e Gustavo Bulla, da Autoridade Federal de
Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina.


No debate ao vivo, Dines comentou que a cobertura da imprensa sobre o
seminário dava a impressão de que o governo agia como um ‘rolo compressor’ e
pediu para Venício Lima avaliar a repercussão do encontro. O sociólogo confessou
ter ficado entristecido com a cobertura porque esperava que a presença de
representantes de organismos internacionais que tratam da questão da regulação
em diversos países fosse objeto da atenção jornalística da grande mídia.
‘Realmente, foge da minha capacidade de entender’, disse. Venício criticou a
forma com que o discurso do ministro Franklin Martins, na abertura do evento,
foi distorcido pelos jornais. ‘A fala dele foi uma fala cujo tom principal foi o
entendimento, a busca da negociação, a necessidade de se fazer regulação, que é
uma coisa comum nas democracias do mundo. E, no entanto, o que se pinçou da fala
dele foi uma frase isolada no contexto onde ele estava fazendo a defesa do
entendimento, e não do enfrentamento, como apareceu na grande mídia’, disse.


Guilherme Canela tem uma visão ‘mais benevolente’ da cobertura do seminário.
Para o representante da UNESCO, apesar das falhas do trabalho da imprensa, é
preciso observar que houve destaque para a realização do encontro e que o tema
da regulação entrou no espaço público de debate de maneira contundente. ‘Foi um
momento muito interessante para o cenário brasileiro na semana passada’, disse.
De acordo com Canela, independentemente da recomendação específica que os
consultores da UNESCO fizeram sobre o caso brasileiro, expressada por Toby
Mendel no seminário, a organização tem um conjunto de recomendações genéricas a
todos os seus Estados-membros sobre esses temas.


Regulação independente


No documento ‘Indicadores de desenvolvimento da mídia’, da UNESCO, um dos
primeiros pontos é a necessidade de que as concessões sejam administradas por um
órgão regulador independente. Canela ponderou que não cabe à UNESCO analisar se
há interferência política na outorga das concessões – este papel seria da
sociedade e de diferentes órgãos de fiscalização. ‘O que nós estamos dizendo é
que, do ponto de vista dos padrões internacionais, não só para o Brasil, como
para qualquer democracia, a boa prática é manter as concessões em um órgão
regulador independente. A nossa impressão é a de que isto não deveria causar
espanto a nenhum dos atores que trabalham há tantos anos neste sistema porque
esta é uma recomendação que todos os organismos internacionais vêm fazendo sobre
esta agenda’, disse o cientista político.


Fernando Lattman-Weltman ressaltou que o tema é complexo porque reúne uma
série de interesses conflitantes e chegou de forma tardia à agenda pública. A
questão envolve problemas estruturais antigos da sociedade brasileira, como a
dificuldade de relacionamento entre o espaço público e o privado. A regulação da
mídia eletrônica, na visão do professor, sempre foi colocada de lado ao longo de
todo o processo de transição democrática. ‘Tentou-se discutir o tema na
Assembléia Nacional Constituinte, foi motivo de debates e houve avanços
importantíssimos, mas ao mesmo tempo houve fatos políticos importantes e nós
sabemos quantas concessões foram dadas na calada da noite durante a
Constituinte’, relembrou.


Para Weltman, o assunto não é debatido com profundidade porque os setores
mais poderosos das comunicações no Brasil têm exercido um poder negativo de veto
à discussão antes mesmo de ela ser travada. O professor afirmou que a regulação
é necessária para a própria atividade. ‘Eu não acredito que os nossos
concessionários de rádio e de televisão vão querer um vale-tudo porque daqui a
pouco vai ter rádio pirata e sinal pirata invadindo o sinal e vai ser um caos,
ninguém vai falar para ninguém’, disse. O Estado, neste caso, pode ser um agente
facilitador da organização do setor. ‘O problema é que o campo está minado; nós
temos que fazer um grande esforço para tirar as minas e dizer ‘olha, não se
trata aqui de censura e nós estamos querendo rediscutir esta questão e tentar
criar um marco que seja de interesse da sociedade como um todo’’,
destacou.


Conglomerados de mídia


Na avaliação de Venício Lima, quando os grupos tradicionais de mídia no
Brasil repercutem o debate sobre alguma proposta de regulação, a ênfase é feita
apenas na regulação de conteúdo. É neste ponto que se abre margem para acusações
de que regulação significa censura. ‘No entanto, eu pelo menos, quando penso em
regulação, eu estou pensando em regulação de mercado. O que não existe no Brasil
é a regulação de mercado, não existe no Brasil a competição. Existe a
concentração da mídia porque no Brasil nunca houve controle, por exemplo, sobre
a propriedade cruzada dos meios, ou seja, um mesmo grupo empresarial, em um
mesmo mercado, controlando rádio, televisão, jornal, revista, provedor de
internet’, criticou. Para o sociólogo, enquanto se debate uma eventual regulação
de conteúdo, deixa-se de lado questões que estão previstas na Constituição
Federal de 1988, como a devida regulamentação dos artigos do Capítulo V, ‘Da
Comunicação Social’.


***


Cobertura passada a limpo


Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na
TV nº 572, exibido em 16/11/2010


Quando a mídia é notícia, um dos dois tem problemas – a mídia ou a notícia.
No nosso caso é diferente, quando a mídia é notícia, tanto a mídia como a
notícia estão complicadas. Isto ficou visível exatamente há uma semana, durante
e em seguida ao seminário internacional sobre convergência de mídias.


A mídia brasileira, impressa ou eletrônica, sofre de uma visível alergia à
exposição pública. Não é modéstia ou discrição, parece ser uma aversão à
transparência. Ela que tanto clama por claridade e limpidez, justamente quando
os holofotes se voltam para ela, o resultado sai truncado.


Ora, a mídia e a imprensa são ferramentas da sociedade, ela não apenas
precisa saber o que se passa no campo da comunicação, mas tem o direito
inalienável de ser informada com precisão sobre tudo o que lhe diz respeito. E
justamente nesta questão crucial a mídia oferece ao seu público um material
informativo distorcido e manipulado.


A controvérsia é simples: a mídia não admite qualquer regulação porque
considera regulações como interferência e ameaça à sua independência. Sob o
ponto de vista teórico, é correta esta posição das corporações de mídia. Mas há
regulações e regulações, há restrições arbitrárias e restrições necessárias.


Nossa Carta Magna, por exemplo, interfere na programação de TV obrigando-a a
ajustar-se às faixas etárias. Nos Estados Unidos, pátria da livre iniciativa,
uma comissão do Senado criada há mais de 70 anos impede a concentração de
empresas de mídia numa mesma cidade. Neste mundo globalizado, interdependente,
sujeito a tantas bolhas e rupturas, sem um mínimo de regulação, teremos o
caos.


A cobertura do seminário de Brasília foi capenga, para dizer o mínimo.
Precisa ser passada a limpo. É o que pretendemos nesta edição do Observatório
da Imprensa
.

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Jornalista