Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Religiões avançam no mundo digital

Santo Isidoro – que nasceu no ano 560, em Sevilha, na Espanha – foi eleito pelos próprios internautas o padroeiro da rede de computadores. Ainda não consta que ele já tenha realizado algum milagre no mundo virtual. Mas as mudanças que a tecnologia tem promovido no cotidiano de diversas religiões são de saltar aos olhos.


A recente estreia do papa Bento XVI no YouTube ou mesmo o lançamento do iBreviary, sistema criado pelo Vaticano que permite colocar nos iPods o breviário – livro das leituras e orações usado pelos sacerdotes – são apenas alguns exemplos de como essa absorção tecnológica tem transformado o dia-a-dia das religiões, uma tendência que tem ganhado força no Brasil e que abrange crenças de todas as vertentes.


‘Ficou praticamente impossível pensar em religião sem o uso de tecnologia’, diz Mario Sergio Cortella, filósofo e professor do departamento de teologia e ciências da religião PUC/SP. ‘Desde a década de 40, quando pela primeira vez o papa Pio XII usou o rádio para fazer sua pregação, o uso de tecnologia se espalhou, se consolidou com a TV e hoje é a internet que chega para potencializar tudo isso.’


É o que está ocorrendo na Basílica de Nossa Senhora Aparecida, no interior de São Paulo, onde uma equipe de 11 pessoas só pensa em ‘web 2.0’. Valdir Vieira da Silva, gerente de tecnologia da informação (TI) do santuário, lidera o time que, nos próximos meses, vai colocar no ar um ‘portal colaborativo’. O site, que já permite que as pessoas rezem usando um terço virtual e baixem imagens sacras para o celular, vai ganhar ferramentas para que os católicos troquem informações e criem comunidades de interesse.


Faz sentido


A busca pela colaboração e troca de ideias via internet também fez com que a Congregação Israelita Paulista (CIP) renovasse seu site. De uma página institucional, o endereço passou a trazer informações sobre a doutrina judaica e um canal ‘Pergunte ao rabino’. Vídeos de festas realizadas pela comunidade judaica também foram parar no site e no canal que a CIP mantém no YouTube.


Marcos Zeitoune, coordenador de comunicação da CIP, afirma que o site também ganhou um viés de prestação de serviço. Para que o judeu não erre o minuto exato do início e do fim do Shabat – o dia de descanso semanal no Judaísmo, que começa com o pôr-do-sol da sexta-feira e acaba no pôr-do-sol do sábado – está disponível um calendário digital, que exibe o horário certo em cada semana do ano. A internet também virou ferramenta de estudo para a cerimônia do bar-Mitsvá, que marca a passagem dos garotos de 13 anos para a vida adulta. Todo o conteúdo da cerimônia, as músicas e a liturgia que o jovem precisa aprender estão disponíveis em formato digital. ‘As crianças usam um tocador de MP3 para baixar o conteúdo e ouvir em casa’, diz Zeitoune.


Para o Centro Islâmico no Brasil, que administra a Mesquita do Brás, a web tornou-se um recurso de disseminação das ideias de Maomé. O site recebe entre mil e 1,5 mil visitantes por dia e boa parte dessa audiência não é de praticantes da religião, diz Nasser Khazraji, responsável pelo departamento de comunicação. Quem navega pela página da instituição aprende os princípios do Islamismo, acompanha os horários das orações diárias e pode ler o Alcorão em português. Os internautas também podem enviar perguntas sobre a religião e, uma vez por semana, o xeque da mesquita responde as dúvidas.


À primeira vista, pode parecer inusitado que religiões milenares estejam cada vez mais próximas das novidades ‘high tech’. Uma analise mais minuciosa, porém, mostra que isso faz todo sentido. Lideranças das mais diversas crenças perceberam que recursos tecnológicos – em especial a internet – são uma ferramenta poderosa para disseminar suas religiões, estreitar laços com os fiéis e atrair novos adeptos.


Sermão da montanha


Não é de hoje que algumas religiões – principalmente as cristãs – passaram a investir em meios de comunicação como o rádio e a TV para ampliar seu alcance. Já faz décadas que o templo deixou de ser o único local onde se pode ouvir a palavra transmitida por padres, pastores, rabinos ou xeques – o que não significa que as mídias tenham substituído os cultos presenciais.


A internet engrossa esse caldo ao oferecer novos recursos, em geral mais interativos que os da mídia tradicional, para aproximar as religiões de seus seguidores. Sites católicos, por exemplo, permitem aos fiéis acender velas virtuais, enquanto a Igreja Assembleia de Deus oferece sessões de chat com pastores


Não se trata de um fenômeno exclusivamente brasileiro. Nos EUA, o portal GodTube – agora rebatizado de Tangle – recebe 2 milhões de visitantes únicos e tem 16 milhões de páginas vistas por mês. O site, criado por um produtor de TV e um pastor da Igreja Batista de Dallas, é uma versão cristã de redes sociais como Facebook e MySpace e de sites de compartilhamento de vídeos como o YouTube. O modelo deu tão certo que, no ano passado, o Tangle recebeu um aporte de US$ 17 milhões da GLG Partners, empresa de participações com sede em Londres.


‘Lembremos que o significado da palavra `eclésia´ [a assembleia popular em Atenas, que mais tarde foi associada à igreja cristã] tem uma relação direta com internet, ela remete a encontro, reunião de pessoas’, observa Cortella, professor da PUC. ‘É essa tecnologia que permite que o jogador Kaká, lá da Itália, e um fiel do bairro do Belenzinho, em São Paulo, acompanhem juntos um culto da Igreja Renascer em Cristo.’


Será possível que, com toda essa modernidade, exista no futuro um templo 100% digital? Cortella não tem dúvida. ‘É uma tendência muito forte e acredito que caminhamos para isso.’


Algumas igrejas de inspiração católica não reconhecidas pelo Vaticano, diz ele, já recebem até confissão pela internet, algo que, segundo a Igreja Católica Romana, exige a presença física do fiel. ‘O que são ferramentas como o MSN e o Orkut, se não grandes confessionários virtuais? No século XIX a poesia era a saída para a confissão, no século XX foi a vez da igreja, no século XXI é a vez dos blogs.’


Se o sermão da montanha acontecesse hoje, comenta Cortella, as coisas seriam bem diferentes. ‘Tudo teria transmissão simultânea, em tempo real, o mundo assistiria aos vídeos de Cristo, com links e espaço para comentários.’


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Mórmons querem ser o `google´ das famílias


Uma montanha de granito nos arredores de Salt Lake City, no Meio-Oeste americano, esconde o tesouro da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. É lá que os mórmons, como são apelidados os praticantes da religião, guardam as bases do que eles pretendem transformar numa espécie de ‘google’ para buscar pessoas e famílias. Em corredores intermináveis escavados no interior da montanha, arquivos em microfilme e, agora, grandes servidores, armazenam nada menos que 1 trilhão de registros de indivíduos (há repetição de nomes, daí o número astronômico).


Esse enorme banco de dados é fruto do trabalho da Sociedade Genealógica de Utah, instituição sem fins lucrativos mantida pelos mórmons. Com funcionários espalhados ao redor do planeta, eles colhem informações para criar a maior árvore genealógica do mundo. ‘Na doutrina da Igreja, os relacionamentos familiares são eternos, não acabam com a morte. Daí a importância de as pessoas conhecerem a fundo a origem de suas famílias’, afirma Mario Silva, diretor responsável pela coleta das informações genealógicas na região que abrange Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai.


Para isso, uma equipe de dez operadores viaja pelos rincões desses países levando uma parafernália que inclui câmera fotográfica, lente de aumento e uma mesa especial para acomodar os documentos que serão fotografados. Eles saem em busca de registros que comprovem a existência de uma pessoa e deem pistas sobre suas relações familiares. Esses documentos são fotografados e, posteriormente, catalogados. Tudo fica armazenado na montanha de Salt Lake City em rolos de microfilme e, mais recentemente, na forma de arquivos digitais.


Registros coletados


Pode parecer curioso, mas a Igreja Católica Romana é o principal aliado dos mórmons na empreitada. As paróquias são fontes valiosas de informação porque guardam registros de batismos e casamentos. ‘O registro civil só se tornou obrigatório no país em 1920 e até hoje tem muita gente que nasce e morre sem ser documentada’, observa Silva. Os inventários também são peças importantes no quebra-cabeças genealógico. ‘Muitas vezes, um filho fora do casamento só é reconhecido no testamento.’


Esse material pode ser consultado gratuitamente por qualquer pessoa, ligada ou não aos mórmons, em centros de pesquisa criados com essa finalidade. Só no Brasil, há mais de 200 deles.


De uns anos para cá, a Sociedade Genealógica passou a investir na digitalização dos arquivos e criou um site (http://www.familysearche.org) onde é possível pesquisar nomes de pessoas, montar a árvore genealógica de uma família e encontrar documentos (por exemplo, a folha do livro onde está registrado o casamento de seus bisavós). Esse é um processo em andamento. A maioria dos registros ainda não está on-line.


O desafio é ainda maior porque a digitalização é feita enquanto os mórmons continuam coletando registros. Eles estão longe do fim. Boa parte das paróquias e cartórios brasileiros não foi sequer percorrida. ‘Com todos os nossos esforços, mal arranhamos a superfície’, diz Silva. ‘É um trabalho eterno.’ (André Borges e Talita Moreira)