Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Remédios para o destempero golpista

Se o presidente Lula não for reeleito no primeiro turno, vão dizer que foi por se recusar a ir ao debate da Rede Globo. Se ocorrer o contrário, a alegação vai ser que seria reeleito de qualquer forma – e que perdeu votos pela ausência no debate. A mídia corporativa, como tenho repetido, é arrogante. Mantém essa postura por causa da facilidade com que obtém o que quer, impunemente, de políticos e governantes.


Nenhum presidente tem de ficar de joelhos frente a impérios de mídia – nem Lula, ícone da força do povo, prova viva de que a elite branca pode ser vencida, nem governante algum. Proporcionalmente à área limitada do alcance de seus veículos, os privilégios do império Globo superam os desfrutados pelos cinco maiores do mundo. Nesse sentido, ninguém no planeta foi mais poderoso do que o sr. Roberto Marinho.


Digo isso com a tranqüilidade com que no passado alertei para o poder desmedido das Organizações Globo no Brasil e ao mesmo tempo observei que pior seria nos livrarmos delas e ver tal força migrar para algum dos impérios-gigantes de fora. Mas o grupo Globo devia ser grato a Lula e não derrubá-lo: graças ao atual governo, sua dívida em dólares (4 bilhões? 2 bi?) despencou, após estourar com o dólar de FHC a R$ 4.


Por que favores oficiais à mídia?


Tanto o grupo Globo como seus aliados da mídia, na obsessão do golpe – Abril (da Veja, dos Civita e de Diogo Mainardi), Estadão (dos Mesquita), Folha (dos Frias) etc. –, serviram antes à ditadura. Por duas décadas a maioria cresceu, comprou prédios novos, prosperou, mamou nas tetas do Estado. Depois, nas privatizações de FHC, foi subornada com telecoms. Lula errou por entrar e deixar tudo como estava.


Outro erro foi manter a publicidade oficial na mídia, mesmo em volume menor. Se a mídia alternativa fosse contemplada de alguma forma, na busca de equilíbrio, ainda se entenderia. Nunca foi o caso. O Estado não tem que anunciar – nem Banco do Brasil, nem Petrobras, Caixa Econômica, Correios, nada. Se o governo tem algo a dizer, que requisite as TVs – como FHC fazia para satisfazer a própria vaidade.


No Brasil, a Rede Globo parece considerar obrigação do Estado o co-patrocínio de seus grandes (e mais onerosos) eventos, em especial internacionais – impinge sempre uma parcela ao governo. Isso agrava o desequilíbrio na mídia e amplia o superpoder dessa rede. Para um presidente que age assim, é um tiro no pé – senão haraquiri. Logo ele vê a rede, com o poder redobrado, ser usada na obsessão de derrubá-lo.


Lições que Lula não aprendeu


Tais lições Lula já devia ter aprendido. Ele perdera em 1989 para Fernando Collor, devido à edição facciosa do último debate – malfeitoria de Alberico de Souza Cruz e Ronald de Carvalho, por encomenda pessoal do presidente das organizações. No final de 1992 foi chamado ao gabinete de Marinho, no prédio do jornal. ‘Você perdeu porque ficou contra nós. Agora pode ganhar, fique conosco’, disse a Lula.


Reproduzo a frase de memória, já que o episódio me foi relatado em fevereiro de 1993 pelo jornalista Ricardo Kotscho, então assessor de Lula. Trabalhando para um produtor britânico que fazia documentário sobre o poder da Globo e seu presidente (Beyond Citizen Kane), eu tinha pedido a Kotscho um depoimento de Lula sobre as coberturas da emissora nas greves do ABC, na campanha das Diretas e na eleição de 1989.


O jornalista, velho amigo, contou a história ao explicar que depois daquela reunião Lula decidira não falar nunca mais sobre a Globo. Collor tinha sido defenestrado (ou melhor, ‘renunciado’) e Lula já liderava então todas as pesquisas para a eleição presidencial do ano seguinte (seria atropelado pelo Plano Real, do presidente Itamar Franco, que mudaria o rumo e daria o poder a FHC).


Como estudioso das relações entre mídia e governo, acho agora que – qualquer que seja o resultado da votação – a liderança atual de Lula nas pesquisas, como a ausência dele no debate da Globo, expõem o desgaste no poder dos maiores veículos de comunicação de massa no país. A mídia não reflete a opinião pública – está de um lado e o povo do outro. Antes era impensável alguém ser capaz de sobreviver a cobertura tão uniformemente facciosa de todos os grandes veículos.


Vivandeiras, juízes e procuradores


O único exemplo semelhante que me ocorre é a campanha do mar de lama liderada por Carlos Lacerda em 1954. Claro que a 24 de agosto tudo aquilo se desfez como pó – pelo trauma do suicídio do presidente e ainda pela própria inconsistência da trama golpista. Mas Vargas, ao menos, tinha dois jornais a defendê-lo na capital, a Última Hora e O Radical. Nem um só no país defende hoje o atual presidente.


O que as forças políticas minoritárias dos Jereissati e Herr Bornhausen, sem votos até para se reelegerem, já prometem desde já é a campanha, ao lado da mídia capitaneada pelo império Globo, para derrubar Lula a qualquer preço. Sem os militares golpistas do tempo das vivandeiras histéricas à porta dos quartéis, buscam juízes e procuradores levianos que namoram primeiras páginas e horário nobre da TV.


Na atual macumba do golpe, que exclui os quartéis, esses novos atores têm papel central, ao lado da mídia e dos políticos sem votos – não por acaso, beneficiários da corrupção na venda do patrimônio dos brasileiros. Talvez sejam os mesmos que encomendaram a pesquisa Estadão-Ibope que concluiu: só brancos são éticos; pretos, pardos, nordestinos, etc. – enfim, o povo – são corruptos, votam em Lula. É o sonho de Bornhausen, ‘ficar livre dessa raça’.

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Jornalista