Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ronaldinho e a solidariedade

‘O mínimo que eu posso fazer é dar oportunidade a quem precisa’, disse o jogador Ronaldo em entrevista ao Jornal Nacional, na última quarta-feira (26/05), na ocasião em que fazia uma doação de 150 mil reais para reforma do prédio da associação dos moradores de Cidade de Deus, a famosa favela do Rio de Janeiro. A reportagem informa que o prédio vai ser transformado em espaço cultural com um teatro com 120 lugares, onde haverá exibição de filmes e oficinas de arte.

A notícia ganhou destaque em toda a imprensa. ‘Na Cidade de Deus, gol de Ronaldo’, dizia a manchete do jornal O Globo, no dia seguinte. Uma foto dos meninos da favela cumprimentando o ídolo ganhou o alto da página do Jornal do Brasil. ‘Ronaldo experimenta dia de santo na Cidade de Deus’, anunciou a Folha de S.Paulo.

Ronaldo tem razão. Fez o mínimo. Não é de se duvidar e nem de se discutir aqui as intenções do jogador ao fazer a doação. Como alertou William Ryan, ‘é importante não nos iludirmos pensando que as monstruosidades ideológicas foram construídas por monstros’. Ações desse tipo têm o aval não somente da imprensa como também da própria comunidade, onde ninguém mais espera que o Estado construa teatros nem cinemas, incapaz que é de garantir ao menos a segurança e as condições básicas de saúde e educação. O poder público vai, aos poucos, se desviando da sua função original, que passa a ser cumprida por organizações não-governamentais e cada vez mais pelos próprios indivíduos.

‘Correu atrás’

A diminuição do papel do Estado nas últimas décadas não é assunto novo nos meios acadêmicos e tem sido constantemente abordado por intelectuais na própria imprensa. As razões que levaram a essa mudança, cuja base reside fundamentalmente no pensamento liberal e nas atuais transformações do próprio capitalismo, são complexas e delicadas para se tratar neste artigo. Entretanto, o que deve estar na pauta do dia é a privatização dos problemas sociais globais. Se o Estado não constrói teatros nem cinemas, quem vai construir? E com que autoridade moral? Com que interesse? Por que o indivíduo se sente hoje em dia nessa obrigação? A crença de que nós somos os responsáveis não poderia nos impedir de fazer uma crítica radical ao próprio sistema?

O sociólogo Zygmunt Bauman nos dá as primeiras dicas:

A mais seminal das privatizações foi a dos problemas humanos e a da responsabilidade por sua solução. A política que reduziu as responsabilidades assumidas em relação à segurança pública, retirando-se das tarefas da administração social, efetivamente dessocializou os males da sociedade e traduziu a injustiça social como inépcia ou negligência individual. (1999)

Estamos diante de um fenômeno novo. De todas as dúvidas, resta a certeza de que a imprensa, na sua ânsia de espetacularizar até o mais trivial, transforma fatos como a ida de Ronaldinho à favela em emocionantes histórias: ‘Faltou pouco para [Ronaldo] não cair no chão. Puxaram sua camisa, arrancaram o seu boné, rasgaram sua camisa e de tão arranhado que seu Land Rover ficou, Ronaldo teve que levá-lo ontem mesmo para a oficina. Mas, nada disso, o irritou. E ele acha que valeu’, diz o Globo.

Já o Jornal Nacional não se preocupou sequer em informar o valor da doação e foi ainda mais longe: ‘Hoje a Cidade de Deus se uniu. Crianças e adultos ansiosos esperaram pela visita de um ídolo (…) Ronaldo se emocionou. Não pensou que fosse fazer tantas pessoas felizes’. A quantia em dinheiro é mesmo um detalhe irrelevante, diante das imagens do jogador escondendo as suas lágrimas e das crianças sorrindo por estarem perto do ídolo. Ninguém, claro, se preocupou em informar o que representam 150 mil reais diante dos ganhos milionários do atleta. O importante é a ação, a solidariedade, o amor ao próximo.

E essa mesma solidariedade é sinônimo de indiferença e de transferência de responsabilidade individual pela sua condição social. Leiamos atentamente a declaração do jogador, divulgada no Jornal Nacional: ‘Quando eu era criança, eu tive poucas oportunidades. Pouca gente me deu a oportunidade de ter algum lazer. Eu corria atrás do meu lazer. Então, o mínimo que eu posso fazer é dar oportunidade a quem precisa, a quem quer ter oportunidade’.

Ronaldo deu a oportunidade àqueles que querem ter oportunidade. Ponto. O resto é responsabilidade dos moradores, não é do Estado nem de ninguém. O atleta, sem tantas oportunidades, como ele mesmo disse, tornou-se famoso, depois de ter vivido uma infância pobre, semelhante à daquelas crianças que tanto o admiram. Mas o atleta ‘correu atrás’, é ele mesmo o responsável pelo seu sucesso. As crianças de hoje também são responsáveis e têm em mãos uma oportunidade. Mas nem todos terão o sucesso do ídolo.

Citando novamente Bauman: ‘O esforço é pessoal. E igualmente o fracasso do esforço. E a culpa pelo fracasso. E a conseqüente sensação de culpa’ (idem). O espaço cultural é retratado pela imprensa como um símbolo da esperança de mudança social. Mas é de fato mais uma possibilidade de se culpar a vítima pelo fracasso.

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Jornalista