Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ronaldo Caiado

‘Ao contar a história da agência de propaganda W/Brasil no livro Na Toca dos Leões, o jornalista Fernando Morais publicou uma mentira a meu respeito. Segundo ele, eu teria um plano para esterilizar as mulheres nordestinas se ganhasse a Presidência da República nas eleições de 1989. A mentira foi amplamente divulgada na mídia nacional.

Fernando Morais tem dado entrevistas dizendo que não me ouviu antes de publicar o livro porque confiava plenamente em sua ‘fonte’, o publicitário Gabriel Zellmeister, sócio da W/Brasil. Ao rasgar o Código de Ética do Jornalismo e menosprezar um dos preceitos básicos da profissão, que é o de ouvir todas as partes, o escritor trilhou o caminho sujo da difamação gratuita e covarde.

Interpelado judicialmente por mim, o publicitário Gabriel Zellmeister, ‘homem acima de qualquer suspeita e de caráter’, como costuma dizer Fernando Morais, desmentiu o escritor categoricamente na Justiça.

O que me preocupa é o fato de um cidadão que se intitula jornalista não valorizar a ética profissional, praticar um crime contra a honra e ainda conseguir apoio e vasto espaço na imprensa para, com base no direito de liberdade de expressão, espezinhar outro direito previsto no Artigo 5º, inciso 10 da Constituição, que preserva a honra e a imagem dos cidadãos.

Ao exercer meu direito de cidadão, recorrendo ao Judiciário num caso em que o tema era uma mentira deslavada, e não qualquer crítica, opinião ou notícia, acabei inacreditavelmente tratado como ‘defensor da censura’ e convertido em ‘inimigo da liberdade de expressão’. Curiosamente, nenhum desses críticos lembrou que tenho um longo histórico de luta pela liberdade de imprensa e de expressão.

Agora, o paradoxo. O mentiroso Fernando Morais é autor também do livro A Ilha, em que narra suas impressões pessoais sobre sua visita a Cuba sob o regime castrista. Nesse livro, afirma ter descoberto lá que a liberdade de expressão era apenas um direito sem sentido, mero instrumento de dominação burguesa. Quem quiser conferir, basta ler:

‘Quando perguntei a um influente jornalista cubano se lá existe liberdade de imprensa, ele deu uma gargalhada e respondeu: ‘Claro que não’. E completou, com naturalidade: ‘Liberdade de imprensa é apenas um eufemismo burguês. Só um idiota não é capaz de ver que a imprensa está sempre a serviço de quem detém o poder. E, aqui em Cuba, quem detém o poder é o proletariado. Estamos todos os jornalistas cubanos, portanto, a serviço do proletariado’.

Qualquer pessoa de mente sã reagiria a esses conceitos, que são de uma estupidez racionalmente inaceitável. É esse mesmo escritor apaixonado por Cuba, onde aprendeu que liberdade de imprensa é apenas um ‘eufemismo burguês’, que agora quer dar aulas de liberdade de expressão e, o mais grave, elevar o direito à mentira à condição de cláusula pétrea constitucional.

Gostaria de fazer um chamado à razão. Uma democracia não se consolida só com eleições e com alternância de partidos no poder, nem mesmo com a limitação do poder do Estado. Democracia, fundamentalmente, pressupõe exercício de cidadania. É para situações em que esse exercício implica conflito com o direito de outros que existe o Judiciário.

Somente conseguiremos garantir o Estado democrático de direito se adquirirmos a consciência de que a cidadania se fundamenta, para além dos direitos contra o Estado, nas garantias fundamentais de cada indivíduo que nos salvaguardam de quaisquer ameaças. Até mesmo de abusos praticados em nome de outros direitos fundamentais.

(*) Médico e produtor rural, é deputado federal (PFL-GO) – Texto publicado na edição de 19/11/2005

dep.ronaldocaiado@camara.gov.br’



QUASE TUDO
Luiz Fernando Vianna

‘Livro traz segredos de mulher e de poder’, copyright Folha de S. Paulo, 19/11/05

‘Ao se tornar colunista do ‘Jornal do Brasil’, em 1993, Danuza Leão ganhou enfim uma palavra para escrever no campo ‘profissão’ das fichas de hotel: jornalista. Mas, ao se pensar em Danuza, em que ofício se pensa? Escritora? Ela discorda. Socialite? Ela é capaz de xingar quem chamá-la assim -até porque não é ofício, muito pelo contrário.

Danuza, colunista da Folha há quatro anos, é daqueles casos cada vez mais raros de pessoa que transforma o nome em adjetivo de si mesma. Danuza Leão é Danuza Leão. Quem não gosta dela pode acusá-la, portanto, de ser má Danuza Leão.

‘Se tivesse feito tudo o que fiz, mas me chamasse Maria de Lurdes, não seria a mesma coisa. Esse nome diferente ajuda. Mas será que foi só sorte? Podia ter casado com um corretor da Bolsa. Se casei com quem casei e fiz o que fiz, foi por opção’, reivindica ela, que viveu com três homens de imprensa: Samuel Wainer, Antônio Maria e Renato Machado.

O que fez e o que lhe aconteceu, suas vontades e os acasos estão na autobiografia que chega hoje às livrarias. O título ‘Quase Tudo’, retirado de uma lista de sugestões de Millôr Fernandes, e o número de páginas (224) relativamente pequeno para o gênero insinuam que muita coisa pode ter ficado de fora. Mas é ingenuidade tentar atraí-la para essa armadilha.

‘Acho que escrevi tudo o que foi importante. O que não foi não escrevi’, rebate, para encerrar o ponto em seguida com estilo: ‘Quase Tudo’ é porque ainda falta muita coisa para acontecer’.

E, fiando-se nas declarações dela, falta mesmo. Escrever o livro significou encarar fantasmas que, por temperamento, preferia trancar no armário. ‘Estou mais leve. Não tenho mais segredos. Agora, qualquer pessoa pode falar o que quiser da minha vida’, relaxa.

Podem falar sobre coisas difíceis e, também, as supostamente fúteis, como a idade, que Danuza sempre quis tanto esconder que chegou a convencer um funcionário da Polícia Federal a tirar dez anos de seu passaporte -delito depois corrigido. Agora ela assume seus 72 botando banca de quem se sente com a metade.

‘Eu, muitas vezes, não acredito que tenha mais de 35 anos -espiritualmente e olhando para o espelho. Estou melhor do que muita gente de 35’, garante-se.

Disputa

Ao publicar, em agosto do ano passado, um texto em primeira pessoa sobre o agosto de 1954, quando Getúlio Vargas se matou, Danuza despertou um gigante que andava adormecido: o assanhamento do mercado editorial em torno de uma autobiografia sua. Quatro editoras fizeram propostas a ela, e a Companhia das Letras levou a melhor.

‘Tinha um prazo de dois anos, mas acabei em nove meses. Meu ex-analista diz que esse tempo não foi por acaso’, conta ela com uma ponta de orgulho maternal que logo vira uma ponta de insegurança. ‘Tenho medo de que ninguém se interesse pelo livro. Não acho a minha vida importante para merecer uma autobiografia. Não sou uma estrela.’

Talvez o grande charme de ‘Quase Tudo’ esteja aí: ver (ou rever) como alguém que nunca foi protagonista da história parece estar sempre em primeiro plano. Desde os 14 anos.

Nessa idade, ela já estava havia quatro no Rio, depois de dez passados na Itaguaçu natal e em Cachoeiro do Itapemirim, ambas no Espírito Santo. Descoberta por um olheiro, foi convidada para um baile no Copacabana Palace. Destacou-se, apareceu pela primeira vez na imprensa e ainda ganhou uma passagem para Paris. Mas não foi.

Foi pouco tempo depois, e aos 17 anos já estava morando na capital francesa, como modelo de Jacques Fath e, na falta de palavra melhor, amante do ator Daniel Gélin, seu primeiro grande amor -mas não seu primeiro homem, que não é identificado no livro.

‘Perdido, casado e cheio de charme e sedução, daqueles a quem não se resiste -e não resisti. Toda mulher deveria conhecer um homem assim na vida. Menos nossas filhas, claro’, escreve sobre Gélin com ironia típica.

Por esse amor, até heroína ela experimentou. Voltou dessa viagem e voltou ao Brasil. Aos 19 anos, a convite insólito de um amigo, foi conhecer na cadeia Samuel Wainer, então 41. Apaixonou-se e sua vida mudou para sempre. ‘Eu apresentei Samuel à vida glamourosa e sofisticada, e ele me apresentou ao poder’, resume ela.

No segundo governo Vargas (1951-54), Wainer estava dentro do poder. Seu jornal, a ‘Última Hora’, era a principal trincheira de Getúlio contra os ataques de Carlos Lacerda. Este, durante a primeira gravidez de Danuza, em 1954, lançou uma campanha contra Wainer, que teria nascido na Bessarábia -o que, hoje se sabe, é verdade- e só poderia ser dono de jornal se fosse brasileiro.

Após a polêmica, nasceu Deborah, logo apelidada de Pinky por causa de sua pele rosa. Em 1955, veio Samuel Wainer Filho, o Samuca, e em 1960, Bruno.

‘Não fui boa mãe. Nenhum mãe se sente boa. E, se se sente, cobra dos filhos. Eu jamais cobrei. Acho que deixar meus filhos livres foi uma maneira de ser boa mãe’, desqualifica-se Danuza. ‘Não tenho assunto com crianças. Quando crescem, vai dando para conversar de igual para igual. Não é o sangue que me aproxima das pessoas, mas o temperamento, as conversas.’

Ouvido pela Folha, o caçula Bruno, que a incentivou a escrever ‘Quase Tudo’, discorda. ‘Ela é uma ótima mãe, cada vez melhor’, diz, afirmando que não se sentiu exposto ao ver parte de sua vida em um livro, inclusive seu envolvimento com drogas no passado. ‘Sou filho de Danuza Leão e Samuel Wainer. Não dá para me sentir exposto.’

‘Estou mais leve. Não tenho mais segredos. Agora, qualquer pessoa pode falar o que quiser da minha vida’

Pinky, que cuidou da autobiografia do pai (‘Minha Razão de Viver’), saiu pela tangente: ‘Ainda não li, mas tenho certeza de que o livro é sensacional. Mas não vou gastar meus elogios nem tratar de assuntos pessoais no jornal’.

Samuca, jornalista como o pai, morreu em 1984, em um acidente de carro quando voltava com a equipe da TV Globo de Macaé, onde fora cobrir a morte de 14 colegas por causa da queda de um avião que os levaria a uma plataforma de petróleo.

Existe dor maior do que perder um filho? ‘Não, nenhuma. Mas estou melhor hoje. Só não gosto de ficar olhando para a foto dele’, diz ela, com dor, mas sem lágrimas, no mesmo tom que os acontecimentos daquele final de junho são relatados no livro.

‘Demorei a escrever. Mas em um fim de semana decidi que tinha que enfrentar. Foram 15 horas no sábado e 15 horas no domingo. Não queria ser piegas, melodramática. Acho que consegui.’

A morte de Samuca está inserida no que Danuza chama de ‘período de trevas’ de sua vida -e também do livro: além do filho, perdeu Wainer em 1980, o pai em 1983 (um suicídio planejado em detalhes), a irmã Nara Leão, nove anos mais nova, em 1989 (tumor no cérebro diagnosticado dez anos antes), e a mãe em 1993. Feridas que nunca fecham e derrubam qualquer estereótipo de mulher fresca que tentem colar nela.

Antônio Maria

Bruno assume que leu em ‘Quase Tudo’ coisas que mal sabia. Em especial, os lances que levaram a mãe, entre 60 e 61, a trocar o ‘casamento feliz’ com Wainer a ‘quase quatro anos de paixão intensa’ com Antônio Maria. Sedutor, de ‘personalidade exuberante’, um dos maiores cronistas do país -escrevia na ‘Última Hora’, de onde teve de sair por causa do caso com a mulher do patrão-, Maria também se mostrou, segundo Danuza escreve pela primeira vez, extremamente ciumento, tornando a relação insuportável em 1964.

Não há dúvida de que, do livro, Wainer sai como um homem quase perfeito, enquanto Maria soa como um obcecado, doente do coração nos dois sentidos -morreu no mesmo 1964 por causa de um deles.

‘O Maria ficou pior na foto [no livro], mas eu deixei o homem perfeito [Wainer] pelo imperfeito. Eu me apaixonei por esse homem imperfeito’, diz Danuza, como se tentasse mostrar que não há maniqueísmos quando o assunto é paixão.

Em Paris, no exílio por causa da ditadura militar, Wainer voltou a ser o marido de Danuza, mesmo quando morando em apartamentos separados. No início do namoro que daria no terceiro casamento, com Renato Machado, em 1972, Wainer tomava uísque com o casal no sofá, como um pai a (tentar) zelar pela filha.

Até sua morte -ocorrida na época em que escrevia na página 2 da Folha, assinando ‘S.W.’-, ele continuaria cumprindo essa função. Mas, segundo escreve Danuza, ao término da relação com Maria, ela se condenou a ser livre.

‘Ser livre é fazer só o que eu quero. Eu posso escolher ser escrava de um homem, mas é uma opção. O problema é que todo relacionamento exige concessões. Sempre há um dos dois que manda no controle da TV. Eu não quero que ninguém mande no meu controle’, delimita ela, que nos últimos anos passou, assumidamente, a igualar liberdade e isolamento. Embora no final de ‘Quase Tudo’ ela conte uma incrível história de sexo casual ocorrida neste ano em Paris, apaixonar-se de novo parece uma missão quase impossível.

‘Quando se é jovem, a gente se apaixona fácil. Depois de uma certa idade, mais calejada, começa a fazer radiografias dos homens que conhece e já sabe mais ou menos o que pode acontecer. Com mais idade ainda, você já faz tomografia: vê tudinho. Aí fica difícil, porque a paixão é não saber, é o mistério’, diagnostica.

Danuza, que foi a locomotiva da noite carioca dos anos 70 como directrice -era como se chamava a responsável por atrair gente, em especial famosos, ao local- das boates Regine’s e Hippopotamus, hoje quer distância de noitadas. ‘Paguei meu carma. Nunca mais pisei em uma discoteca’, afirma. Diz que não vai a show nem se pudesse ver João Gilberto e Tom Jobim juntos de novo. Sua felicidade está em ficar em casa, um espaçoso apartamento em Ipanema, ler livros, ver DVDs, cuidar dos dois gatos e encontrar os poucos amigos (‘Não passam de seis’).

‘Estou tratando de ser feliz agora, porque não me falta muito tempo. Quero fazer tudo o que quiser e nada que eu não queira. Quero ser o mais feliz possível. Acho que tenho esse direito. E qualquer pessoa tem. Tirando as brabeiras que aconteceram na minha vida, posso dizer que estou na fase mais feliz da minha vida’, vibra Danuza. E isso não é pouco. É quase tudo.

Quase Tudo

Autora: Danuza Leão

Editora: Companhia das Letras

Quanto: R$ 38 (224 págs.)’



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‘Amigos aguardam autobiografia’, copyright Folha de S. Paulo, 19/11/05

‘Se houve alguém que soube explorar a capacidade que tem Danuza Leão de ser estrela sem estar em primeiro plano, esse alguém foi Glauber Rocha. Em ‘Terra em Transe’ (1967), ela não fala nem uma palavra sequer, e, no entanto, é difícil pensar no filme sem se lembrar de Danuza.

‘Ela entra muda e sai calada, mas, quando está em cena, você só olha para ela. Danuza atravessa a tela’, exalta Zelito Viana, produtor do filme, lembrando que Glauber a convidou porque ‘queria alguém que fosse o símbolo da mulher daquele momento, e ela estava no auge da forma’.

A carreira cinematográfica de Danuza só teria mais um capítulo: ‘A Idade da Terra’ (1980), o último filme de Glauber. Nesse ela falou, de improviso, atendendo às ordens do diretor.

Mas é nítido que a vida de Danuza, assim como deu livro, dá filme. Seu filho Bruno, que é produtor de cinema, diz que teria distanciamento suficiente para levar ‘Quase Tudo’ às telas. Não sabe se vai fazer isso um dia, mas se um outro fizer, que se prepare.

‘Eu vou ficar em cima do felizardo ou condenado. Não vou largar do pé porque esse assunto eu conheço muito bem’, avisa.

Maria Rita, filha de Antônio Maria, conhece bem a parte mais apimentada desse assunto. Era uma adolescente quando seu pai e Danuza se apaixonaram e terminaram os respectivos casamentos. Apesar do sofrimento de sua mãe e dos momentos difíceis, sua lembrança é boa.

‘A memória que eu tenho é de duas pessoas muito apaixonadas e felizes. Íamos todos para a casa que eles tinham em Cabo Frio e era muito bom’, conta.

O perfil excessivamente ciumento de seu pai, traçado por Danuza no livro, Maria Rita confirma, mas acredita que houvesse ciúmes ‘de ambas as partes’. E ainda diz que não havia motivo para Danuza supor que ela e seu irmão, Antônio Maria Filho, a culpassem de alguma forma pela morte de Antônio Maria.

‘Era para ele ter morrido no primeiro infarto, quando Danuza cuidou dele. Não morreu porque era um cavalo de forte, mas não tinha muito tempo de vida. Danuza foi muito legal e é uma pessoa muito querida’, procura frisar Maria Rita, que diz estar se preparando para ler o livro. ‘Sei que vou me emocionar, essas coisas mexem muito. Vou ter que ler devagarinho.’

Renato Machado sabe do livro o pouco que a própria Danuza lhe adiantou. Ele diz que aprendeu muito durante os quatro anos e meio de casamento com ela, entre 1972 e 76. ‘A não ser o vinho, que eu nem ela conhecíamos bem na época e eu fui estudar depois, Danuza me ensinou muitas coisas. Ela conhecia o mundo, e eu estava entrando no mundo’, diz.

‘Renato não podia -e continua sem poder- ver um rabo-de-saia, o que para mim não dá’, escreve Danuza ao falar do fim do casamento. Mas os dois são amigos até hoje.

Amizade mais antiga, Danuza tem com Carmen Mayrink Veiga, colega de viagens à Europa quando ambas eram jovens modelos. ‘Carmen era a mais bonita de todas; bonita não: deslumbrante’, exalta Danuza no livro.

‘Em Paris, enquanto eu queria jantar no Maxim’s e andar emperiquetada, ela circulava pela Rive Gauche usando jeans, com o cabelo curto avermelhado. Era uma bossa completamente nova. Danuza sempre fez o que quis’, diz Carmen, que já desistiu de convidar a amiga para programas sociais. ‘Nem ouso. Ela diz: ‘Carmen, me esquece’, diverte-se.

Lily de Carvalho Marinho, cujo filho Horacinho namorou Danuza nos anos 60 e que se tornou grande amiga dela, diz guardar para sempre uma impressão: ‘A de uma mulher em que nada era convencional, desde a beleza estranha até as tiradas irônicas, desde a elegância natural até a sinceridade de ser coerente consigo’.

Foi sobre o mundo dos ricos que Danuza orientou Sílvio de Abreu nas novelas ‘Sassaricando’, ‘Rainha da Sucata’ e ‘Deus nos Acuda’, na qual ela atuou como produtora de arte e consultora informal. ‘Ela é simples e ao mesmo tempo extremamente sofisticada, sabe apreciar uma polenta frita com o mesmo requinte com que saboreia um escargot’, resume Abreu.’



Carlos Diegues

‘Livro é uma lição de vertigem e pudor’, copyright Folha de S. Paulo, 19/11/05

‘Existem várias maneiras de aprender as coisas. A mais convencional delas é a do discurso pedagógico, a fala organizada que pretende nos ensinar o que precisamos saber. Mas aquela que nos marca de modo mais profundo e duradouro é sempre a da observação do gesto do outro, o exemplo do qual somos testemunhas e cujo significado reconhecemos visceralmente.

É assim que nos sentimos diante de ‘Quase Tudo’, o livro de memórias de Danuza Leão, que, sem ter a pretensão de nos ensinar nada, nos põe diante de várias linhas de narração, que vão desde as revelações íntimas de uma mulher sobre os modos de viver o cotidiano (e sobretudo amar) no seu tempo de vida até a história mundana e política do Brasil da segunda metade do século passado.

É muito raro encontrar, num mesmo livro, confissões privadas tão contundentes e revelações públicas tão preciosas.

Danuza Leão faz isso sem recorrer a métodos de rigor literário ou científico, através do simples desfiar de suas lembranças, nem sempre cronologicamente ordenadas, mas constantemente arrebatadoras de sinceridade e clareza. Através de seus conturbados romances com o ator francês Daniel Gélin ou com o jornalista brasileiro Antônio Maria, ficamos conhecendo as personalidades e os hábitos privados ou públicos de um determinado tempo, como se estivéssemos num romance de Stendhal (embora, segundo ela escreve, Danuza prefira Balzac e Eça de Queiroz) ou num desses compêndios científicos de história dos costumes.

A partir dos anos 1950, uma sucessão de mulheres independentes e corajosas começaram a inventar publicamente um outro jeito de ser mulher no Brasil, rompendo as tradições e os preconceitos ibéricos e patriarcais de nossa sociedade. É claro que já havia, em nossa história, os exemplos solitários de mulheres como Pagu, mas agora essa revolução se dava como uma clara e explícita missão. Danuza Leão foi, digamos assim, a pioneira involuntária desse movimento que teve seu apogeu na consagração pública de gente como sua irmã, Nara, ou como Leila Diniz.

É com muito pudor que Danuza narra a evolução dessa história em seu livro que, embora escrito na primeira pessoa, como qualquer autobiografia deve ser, parece tratar de um personagem que ela mesma descobre à medida que nos revela a certa distância.

Dos deliciosos costumes provincianos de sua família, ainda na capital ou no interior do Espírito Santo, durante sua infância e adolescência, à vida cosmopolita e vertiginosa em Paris ou Nova York, a partir de sua juventude de sucesso precoce, Danuza nos narra suas instantâneas e compactas experiências, em quantidade e velocidade estonteantes. Dificilmente um ser humano normal, num só tempo de vida, seria capaz de viver tantas e tão variadas experiências com a mesma intensidade das suas.

Com a mesma e discreta precisão, o livro nos fala de uma vida de menina à beira de rios do interior, às voltas com comidas típicas que o pai curtia e tragédias amorosas como a de tia Nóbila, que fugiu com um tenente que perseguia Lampião e foi supostamente morto por pai e irmão ofendidos.

Como nos fala da elite intelectual do Rio de Janeiro dos anos 1950, que conheceu ao chegar à então capital do país, para onde se mudara com o pai, a mãe e a irmã mais nova. Ali, ela passa a conviver intimamente com gente como o poeta Vinicius de Moraes, o banqueiro Walter Moreira Salles, o pintor Di Cavalcanti, o arquiteto Oscar Niemeyer, o jornalista Rubem Braga, o escritor Fernando Sabino, uma turma de dar gosto.

A vertigem existencial de Danuza prossegue em seu ritmo frenético quando, aos 17 anos, ela viaja para Paris e se torna, na casa de moda do famoso Jacques Fath, a primeira modelo brasileira de carreira internacional. Ela passa a fazer parte de um mundo freqüentado por milionários, estrelas do cinema, ‘performers’ internacionais, vagabundos profissionais, gente famosa do mundo inteiro, no delírio de drogas, dinheiro e poder que a ‘dolce vita’ daqueles anos cultivou.

Mas a história dessa mulher especial, que foi amiga de Miles Davis e Bobby Short, de Diana Vreeland e Richard Avedon, de James Baldwin e Françoise Sagan, do Aga Khan e de Heini Thyssen, não se encerraria na falta de sentido e na monotonia do jet set.

Casada com o jornalista Samuel Wainer aos 19 anos (ele tinha então 41), pai de seus três filhos, esse foi o mais importante ‘turning point’ de sua vida, o ponto de equilíbrio em que ela ganhou o estilo de seu futuro. Mesmo depois de separada dele, conforme a própria Danuza relata no livro, Samuel Wainer estaria de algum modo presente em sua vida, até sua morte prematura no início dos anos 1980.

Samuel Wainer, um homem do mundo, moderno, inteligente e desprendido, era o dono da ‘Última Hora’, o único jornal que, naquele momento crucial, defendia o presidente Getúlio Vargas, então ameaçado de deposição por golpe de Estado. Danuza se viu no centro do poder político do país, envolvida nas lutas e intrigas que culminaram com o suicídio de Vargas e prosseguiram, se sucedendo a isso, até o golpe de 1964 e a resistência a ele.

Além de se relacionar com os políticos mais importantes do país, ela se aproximou também de seus congêneres mundiais, como Nikita Kruschev e Mao Tsé Tung, que ela conheceu em Pequim, na década de 60, durante as festas do décimo aniversário da Revolução Chinesa.

Essa incrível história de uma heroína stendhaliana vai aos poucos se concentrando na reflexão ativa de uma mulher que tenta entender o mundo a partir de suas experiências pessoais, tomando os sentimentos e suas conseqüências como padrões de comportamento da humanidade. Fruto de seu instinto, mas também de sua erudição, Danuza mantém um espírito crítico sobre o que vê diante de si, com uma espécie de iluminismo existencial, no qual a razão tenta entender com nobreza os sentimentos. E vice-versa.

Depois de um período de sua vida, que ela mesma chama de sombrio, no qual perde, de maneira sempre inesperada e às vezes trágica, o ex-marido, o pai, a irmã, um filho e a mãe, Danuza se recolhe, por escolha própria, a uma espécie de solidão luminosa, em que faz de seus textos uma continuação de sua vida, uma reflexão sem lições expressas, mas cheias de coragem e até de um certo e delicado estoicismo.

Poucas pessoas no mundo poderiam nos contar a eletrizante história autobiográfica que se encontra em ‘Quase Tudo’. E nenhuma faria isso com o mesmo pudor inteligente e a mesma delicadeza moral de Danuza Leão.

Carlos Diegues é cineasta e conclui seu 17º longa-metragem, ‘O Maior Amor do Mundo’. Foi casado com a cantora Nara Leão, irmã de Danuza.’



O LUAR E A RAINHA
Mario Sergio Conti

‘Ivan Lessa: Londres amena e serena’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 20/11/05

‘Tem livro novo de Ivan Lessa na praça. Chama-se ‘O luar e a rainha’, foi publicado pela Companhia das Letras, tem 286 páginas e custa 44 mangos. O livro é muito engraçado. É ótimo para ler assim, digamos, numa tarde de chuva, escarrapachado no sofá. Ou à beira da piscina. Porque o livro é feito de crônicas ligeiras, absolutamente despretensiosas. Mas não a ponto de que seja possível lê-lo na praia, num domingo de sol forte. ‘O luar e a rainha’ requer uma certa calma, para que se possa aproveitar bem as tolices que Ivan Lessa enumera, seus arabescos estilísticos, sua graça.

O livro é resultado de um percurso curioso. Ele é uma seleta de crônicas que o autor escreveu nos cinco últimos anos para a BBC de Londres. Depois de escritas, Ivan Lessa as lê (recita? declama?) no seu programinha, que é retransmitido por um punhado de emissoras brasileiras. Depois de lidas, as crônicas (serão mesmo crônicas? ou serão artiguetes, mini-reportagens, comentários?) são publicadas no sítio da BBC. E ali, na página de Lessa (ou devo chamá-lo de Ivan?), além de ler seus troços, é possível, a um clicar no teclado, ouvir o autor falando o que está escrito na sua frente. É engenhoso. Envolve escrita, rádio e internet. E agora livro.

Não sei bem por que, as crônicas ficaram melhor em livro. Como não sei, dou uns chutes. Talvez porque ler em livro é mais cômodo que em computador. Talvez porque, apesar de feitos para serem falados, os textos funcionam mais por escrito. Talvez porque, ao lê-los de enfiada, se perceba o desenvolvimento de temas e raciocínios, se compreenda melhor o escopo e objetivos do autor. Ou talvez porque, na sequência, se perceba o desenrolar de certos temas, uma evolução, um enredo, um fiapo de historinha.

Essa última hipótese pode ser comprovada. Em ‘O luar e a rainha’ está a crônica no dia 12 de setembro de 2001, na qual o autor reage aos atentados da véspera em Nova York e Washington. Ivan Lessa comoveu-se. Ficou emocionado à maneira dele, uma maneira contida, quase calada, mas cheia de ódio. A emoção perdura durante vários dias, semanas. Depois, lentamente ele começa a fazer umas gracinhas. Na invasão do Iraque, está a mil, descascando os americanos.

***

Fiz umas contas. Leio Ivan Lessa há mais de trinta e cinco anos. Devo ter lido tudo que publicou. Considero-o, de longe, o melhor – aí começam as dificuldades. O melhor o quê? O melhor texto da imprensa brasileira? O melhor escritor-humorista? O melhor frasista? O frasista mais engraçado? O comentarista mais original? O mais rabugento? O mais livre? O melhor cronista? Pensando bem, essa história de ‘o melhor’ não está com nada. É um recurso hiperbólico, tolo, vazio. Literatura não é campeonato. O que quero dizer: é difícil definir a arte (se é que é arte) de Ivan Lessa, em que consiste o seu talento, que, não obstante, é imediatamente percebido.

Numa resenha simpática e inteligente de ‘O luar e a rainha’, publicada na semana passada na ‘Folha’, Marcelo Coelho tenta definir o talento de Ivan Lessa. Ele escreve que uma multidão de assuntos serve para que o autor escreva ‘um tipo de crônica que não aposta no lirismo, na reflexão melancólica, nem mesmo na ironia, e sim numa beleza especificamente jornalística: a da nitidez dos fatos, do recorte preciso de uma situação, que cabe reproduzir quase sem comentário, numa nota rápida e informativa, como que vaidosa de sua desimportância’. Está bem sacado e exposto.

Marcelo Coelho prossegue: ‘a linguagem de Ivan Lessa acaba chamando a atenção pela simplicidade: na voz desse senhor de 70 anos, palavras como ‘tacar’, ‘babau’, ‘cataplum’ são ao mesmo tempo uma lição de modernidade e uma discretíssima, para não dizer britânica, expressão de nostalgia. Nostalgia, provavelmente, de um espaço público mais desarmado, cordial e frouxo, onde pessoas podiam sentar-se num banco de praça ou de bonde e trocar – como se dizia – uns dois dedos de prosa’.

Nostalgia, certo, é uma palavra-chave. Mas, me parece, não a nostalgia de um espaço público mais desarmado. Nostalgia mesmo. Saudade do que era bom, era melhor, e se perdeu: ‘Passada certa idade, o que se faz com mais autoridade nesta vida é reclamar da decadência de tudo’. Além da nostalgia, um embate direto com os fatos, horrores e besteiras do presente. Fosse francês, Ivan Lessa seria um desconstrucionista de mão cheia, um guru de Derrida.

Por fim, atenção para a simplicidade da linguagem. Ela é um disfarce. Há várias coisas acontecendo ao mesmo tempo nessa aparente simplicidade, há trabalho e leitura à beça: paródias, pastiches, alusões, eufonias, dissonâncias, aproximações surreais e, sobretudo, metalinguística de caráter crítico. O autor sempre avisa que está indo de lugar-comum e de clichê, o que é uma maneira de chamar atenção para eles, de subvertê-los.

***

Ivan Lessa vive há vinte e sete anos em Londres. Não voltou nunca ao Brasil. ‘Sequer para umas feriazinhas’, escreve. ‘O luar e a rainha’ trata primordialmente de Londres, cidade amena e serena. O livro de Ivan Lessa, meio que mimético, é também ameno e sereno. Aqui e ali, aparece o cotidiano do cronista. A BBC. O metrô. Os jornais. O indiano da esquina. A volta das férias em Portugal. A vizinha. O apartamento. A mulher. A gata. Tudo tranquilo. (Exceto quando a filha casa, e o cronista derrama sentidas lágrimas.) Uma espécie de volúpia da solidão: ‘Eu, que já amei estar no meio da multidão, gente suada, pulando e gritando, hoje vejo mais de seis pessoas no mesmo lado da calçada e sinto falta de ar e palpitação’.

E há as decantadas excetricidades dos britânicos, que o autor destrincha e desmistifica.

O Brasil entra de passagem, de relance, no mais das vezes para fazer um papel rapidamente ridículo. É uma pena. Quando o Brasil de hoje passa na frente de Ivan Lessa ele empomba, vai para cima, chama para a briga, parte para a grossura. O seu humor muda, fica mais ácido. Mas compreende-se essa ausência de Brasil: o empregador, afinal, é a BBC. A pena maior é outra. A de que nenhuma publicação brasileira tenha Ivan Lessa em suas páginas. É um sinal inequívoco, definitivo, que a imprensa brasileira atingiu o fundo do poço.’