Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

São brancos, que se entendam

Os jornais de sexta-feira (30/8) rescendem a indignação, com a decisão da Câmara dos
Deputados de preservar o mandato do deputado federal Natan Donadon, de Rondônia, que cumpre o resto de sua carreira parlamentar no presídio da Papuda, em Brasília.

Não faltaram declarações destemperadas, interpretações apressadas e ilações de todos os tipos para explicar o resultado da votação, que em muitos sentidos soa como uma provocação às demandas manifestadas pela sociedade nos últimos meses. No entanto, trata-se de um caso de diagnóstico muito simples: a Câmara agiu movida pelo espírito de corpo.

A imprensa também induz à ideia de que prevaleceu, na verdade, o espírito de porco, ou seja, o primário desejo da maioria dos parlamentares de fazer sujeira e de se lambuzar na lama. Mas isso seria apenas licença poética, e de péssima poesia. O que os jornais retratam, na soma das declarações, opiniões e análises dos votos e abstenções, é que no Congresso Nacional o corporativismo prevalece acima de qualquer outra preocupação. No entanto, esse não é um pecado exclusivo dos parlamentares.

A predominância dos privilégios de classe sobre os interesses da população em geral é característica de todas as instituições da República. Assim como nos paços municipais de todo o país e nas sedes dos poderes estaduais, prevalece em Brasília uma aura de pertencimento que rejeita toda e qualquer interferência exógena.

Qualquer cidadão que não seja reconhecido como parte da ecologia do poder, senador, deputado, ministro ou um simples assessor com aquele crachá pendurado no pescoço por uma fita verde-amarela, é um estranho incômodo nas cercanias das instituições públicas.

O que faz de Brasília um lugar inóspito para os visitantes não é a arquitetura de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, ou o ar desértico que só oferece algum alívio na chegada da primavera: é o conjunto de edificações simbólicas do corporativismo. Essa configuração insular tem a capacidade de incorporar e acomodar todos seus moradores e frequentadores assíduos, inclusive e especialmente os jornalistas.

Brasília representa o ajuste perverso e equilibrado de todos os interesses corporativistas que atrasam a consolidação da democracia e preservam as desigualdades que dividem os brasileiros. Na capital do país, a própria sociedade é tratada como um corpo estranho.

A ilha da fantasia

Embora editados fora do Distrito Federal, em outros centros como São Paulo e Rio de Janeiro, os principais jornais do Brasil são contaminados por esse poder de abduzir e imantar interesses particulares em um sistema de sistemas que se isola do ecossistema social.

Ainda que, eventualmente, como no caso do deputado-presidiário, a mídia tradicional se refira ao Congresso Nacional como uma casa de alienados, e mesmo quando usa a expressão “ilha da fantasia” para definir a capital federal, ela também faz parte desse complexo de interesses.

Observe-se, por exemplo, como os textos que tratam do caso Donadon fazem o leitor imaginar que se trata de uma caprichosa picuinha. A contrapartida é a reportagem sobre o ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, que julga processo de banco em que obteve empréstimo com todas as características de uma ação entre amigos.

Citam-se os casos específicos, mas omite-se o fato de que o conflito de interesses é pecado comum em toda a magistratura, da menor comarca à corte suprema. Ou seja, apontam-se os pecados individuais, dissimulam-se as perversidades do sistema.

O corporativismo que preserva o mandato do deputado que tem mais de treze anos de pena a cumprir, condenado por roubo e formação de quadrilha, parece se configurar como uma provocação do Congresso ao Supremo Tribunal Federal, que mantém com o Parlamento uma desabrida disputa por atribuições.

Sob o olhar da imprensa, trata-se de uma ofensa direta à própria sociedade. E não deixa de ser, mesmo, um atentado ao senso comum. Mas o senso comum também inclui o repúdio a todo o complexo de interesses corporativos, do qual fazem parte o Judiciário e a própria mídia.

Visto de fora, o entrevero lembra a expressão do século 18, segundo a qual “eles que são brancos, que se entendam”.