Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Satiagraha e grampos, acusação e prova

Autoridades interceptam de clandestinamente conversas telefônicas e vazam trechos dos diálogos para a imprensa. Investigadores repassam para a mídia informações sigilosas sobre processos em andamento. Na ânsia de sair na frente dos concorrentes, os meios de comunicação publicam o conteúdo antes de investigar. O enredo, que já foi discutido diversas vezes ao longo dos dez anos do Observatório da Imprensa na TV, foi o foco do programa exibido ao vivo na terça-feira (18/11) pela TV Brasil e pela TV Cultura.


Desta vez, estiveram no centro da discussão os vazamentos de informações da Operação Satiagraha, que investiga crimes financeiros, para grandes veículos de comunicação como a Folha de S.Paulo, a TV Globo e a revista Veja. O convidado do programa em Brasília foi o deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados que investiga escutas clandestinas. No Rio de Janeiro, participou Luiz Garcia, articulista de O Globo. O estúdio da TV Cultura, em São Paulo, contou com a presença do jurista Dalmo Dallari.




Dalmo Dallari, jurista, é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP e professor da cátedra Unesco de ‘Educação para a Paz, Direitos Humanos e Democracia e Tolerância’, criada na USP.


Luiz Garcia, jornalista há mais de 50 anos, é articulista do jornal O Globo. Foi editor de Opinião e organizador do manual de redação e estilo do jornal. Participou do lançamento da revista Veja, em 1968, onde foi chefe de redação. Foi correspondente da Editora Abril em Nova York.


Marcelo Itagiba, deputado federal PMDB-RJ, é delegado licenciado da Polícia Federal. Preside a CPI dos Grampos da Câmara dos Deputados, que investiga escutas telefônicas clandestinas. Foi diretor de inteligência da Polícia Federal e secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro.


Antes do debate ao vivo, o jornalista Alberto Dines comentou notícias de destaque dos últimos dias. O primeiro tema da coluna ‘A Mídia na Semana’ foi a cobertura da imprensa sobre um recente acordo entre o Vaticano e o governo brasileiro. ‘O noticiário foi mínimo e deixou o cidadão muito curioso’, avaliou. Dines ressaltou que o tratado pode ferir a separação entre a Igreja e o Estado. Outro assunto da seção foi o artigo do jornalista Elio Gaspari publicado em O Globo e na Folha de S.Paulo no fim de semana. No texto, Gaspari critica a postura das Casas Bahia em relação ao assassinato de um cliente por um segurança terceirizado dentro de uma das lojas da rede. ‘As Casas Bahia nada têm a ver com o crime, mas não deveriam usar o seu poder para esconder o noticiário’, afirmou o condutor do programa.


No editorial sobre vazamento de informações, Dines comentou que a Operação Satiagraha transformou-se em uma ‘bomba de fragmentação que espalha estilhaços por onde passa’. Cada grampo produz um vazamento ilegal para a imprensa. ‘Se os vazamentos são ilegais, por que a mídia os divulga sem qualquer apuração preliminar? Porque são vazados justamente para não serem apurados, apenas para fazer barulho, aumentar a onda e converter suspeitas em certezas’, afirmou. Dines advertiu que se a mídia é de fato independente, não deveria servir de instrumento para as partes interessadas no conflito.


Publicar somente parte de um grampo é ético?


No debate ao vivo, o deputado Marcelo Itagiba avaliou que a interceptação telefônica é um bem necessário à sociedade: um instrumento de combate à criminalidade, sobretudo à corrupção, e que deve ser utilizado. O que prejudica a atividade é a sua banalização. Itagiba afirmou que a imprensa deve refletir sobre o costume de publicar gravações das quais só conhece trechos. Quando fica restrita apenas a uma parte dos diálogos, pode ter uma visão limitada da questão e se precipitar. O deputado acredita que os meios de comunicação só devem publicar as informações quando, além de tomar conhecimento de todo o conteúdo das gravações, analisarem a questão e apresentarem ao público a sua visão do fato, via apuração jornalística.


Publicar apenas um trecho de gravações não é necessariamente antiético, na visão de Luiz Garcia. ‘Depende muito. Se o trecho que se expõe é completo em si mesmo, é alguém dizendo `eu vou matar o fulaninho amanhã às 9h´, você não precisa de mais nada para que esta informação seja legítima’, argumentou. Para o jornalista, em geral, os fragmentos publicados pelos meios de comunicação não dão margem a duplas interpretações e ambigüidades.


O agente público que vaza informações sigilosas deve ser responsabilizado com penas severas, na opinião de Marcelo Itagiba. O deputado ressaltou que ‘tudo deveria ser público’, mas deve ficar de fora o que diz respeito à intimidade dos investigados. As interceptações de atividades criminosas precisam ser divulgadas para evitar que pessoas da classe alta sejam privilegiadas em investigações sigilosas. ‘Não resta a menor dúvida de que hoje existe uma proliferação de interceptações telefônicas e, acima de tudo, uma proliferação de divulgações criminosas, indevidas e ilegais’, criticou Itagiba.


Dines perguntou a Dalmo Dallari se a divulgação de um processo que corre em segredo de Justiça é legítima. O jurista explicou que, em princípio, todo inquérito é público, mas não significa que deva ser noticiado com destaque pela imprensa. ‘É público no sentido de não ser secreto’, disse. Em casos em que a publicidade pode atrapalhar as investigações é decretado o sigilo para que a pessoa investigada não crie obstáculos nem destrua provas. Conversas telefônicas sobre crimes não estão relacionadas com o Direito à Intimidade previsto na Constituição. Dallari ressaltou que a mídia atua ‘em nome do povo’, mas que a liberdade de imprensa deve ser exercida com responsabilidade. Para ele, é preciso avaliar os efeitos da publicidade de um processo e ‘fugir da tentação do escândalo, do sensacionalismo e do furo’.


Cuidados da Justiça


Se a imprensa publicasse somente informações confirmadas por conta própria ‘não publicaria nada’, avaliou o articulista de O Globo. O jornalista disse que a gravação é uma informação, uma acusação e uma prova em si mesma. Para Garcia, quem aparece em grampos confirmando a participação em atividades criminosas não deve ser protegido por sigilo. A divulgação de gravações serve ao interesse público: não é invasão de privacidade, é a confirmação de um ato criminoso em andamento. O jornalista ressaltou que há situações em que agentes públicos, para se autopromover, vazam dados para a imprensa e as autoridades devem ficar atentas ao fato.


Dines questionou se o vazamento de investigações de pessoas poderosas ajuda a mobilizar a população. Dalmo Dallari concorda que um dos efeitos da divulgação é chamar a atenção para o problema, mas, por outro lado, acredita que há o risco de que tudo ‘desapareça no espetáculo’ e o essencial seja esquecido. Para o jurista, a ansiedade e a espetacularização não podem prejudicar a análise.


Para Luiz Garcia, os grandes jornais atuam de forma responsável e uma prova disso é que nenhum acusado desmentiu o teor de gravações telefônicas publicadas pela imprensa. ‘O jornal não cria suspeitos, não dirige o noticiário para um alvo. Se chegam às mãos dele uma gravação autenticada, que mostra uma pessoa tratando de um ato criminoso, ele a publica. É muito melhor publicar do que não publicar’, avaliou. Qualquer tentativa de prudência neste caso é ‘uma timidez indevida’ na atividade jornalística.


Para cada vazamento cometido, na visão de Marcelo Itagiba, deve ser instaurado um inquérito policial para apurar as responsabilidades sobre o repasse de informações. ‘A imprensa tem a obrigação constitucional e legal de divulgar fatos e o agente público tem a obrigação e o dever legal de resguardar os fatos que estão submetidos ao sigilo de Justiça’, disse. O deputado acredita que na fase do inquérito, tudo deve estar sob sigilo. Oferecida a denúncia, o processo deve ser público, claro e transparente.


O jurista Dalmo Dallari relembrou que, em alguns casos, a imprensa explorou exaustivamente um dado recebido e, ao final, verificou-se que ‘não era aquilo que foi colocado em manchete, que levou à desmoralização de uma pessoa e produziu resultados trágicos injustamente’. Dallari sugere que quando um juiz autorizar a interceptação de conversas telefônicas, deve exigir que a autoridade competente informe o nome dos profissionais que terão acesso ao conteúdo das gravações para poder encontrar os culpados por eventuais vazamentos de informações.


Vale-tudo em busca do furo


Sob os holofotes da mídia por presidir a comissão que investiga os grampos ilegais, Marcelo Itagiba afirmou que não repassa informações sigilosas para a imprensa. O deputado contou que constantemente recebe jornalistas em busca de um furo de reportagem e de um diferencial para suas matérias, mas que respeita o segredo de Justiça. A busca pela novidade é legítima, mas é preciso cuidado para não desmoralizar o trabalho da CPI e manter a imprensa dentro dos seus limites. Itagiba comentou que a imprensa poderia ajudar a esmiuçar informações repassadas à comissão como a suposta compra de equipamentos capazes de fazer escutas pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN).


Um telespectador perguntou a Luiz Garcia se a imprensa poderia criar um órgão auto-regulamentador como o Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar). Na opinião do jornalista, lamentavelmente não é possível. No ramo da publicidade há um grande número de agências representadas, o que permite um julgamento objetivo. Na mídia, o número de veículos importantes é muito pequeno e todos são rivais diretos uns dos outros. ‘São muito próximos e muito poucos os protagonistas para se produzir uma distribuição de Justiça’, explicou.


Dines afirmou que a imprensa tem esse órgão de regulamentação, a Associação Nacional de Jornais (ANJ), mas que ele funciona no sentido contrário da reflexão e evita o confronto. ‘Ela recomenda que não haja debate na imprensa porque teme situações antigas, de duas ou três décadas atrás, quando os jornais se engalfinhavam e isso tirava a credibilidade da imprensa. Hoje, a imprensa já não discute.’ O jornalista destacou que as divergências de pontos de vista entre os jornais precisam ficar claras: ‘Se a imprensa não se discute, o resto da sociedade não se discute – é evidente.’


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Vazamento de informações


Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 487, exibido em 18/11/2008


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


Há quatro meses vivemos sob a égide de uma misteriosa palavra. Embora envolvida com o misticismo oriental, tornou-se a mais explosiva do noticiário. Satiagraha, a firmeza da verdade, converteu-se numa bomba de fragmentação que espalha estilhaços por onde passa.


Os investigadores passaram a investigados, o Judiciário converteu-se num campo de batalha entre as diferentes instâncias, a Polícia Federal se divide e surge uma nova personagem, a ABIN, que não deveria aparecer nesta história. O protagonista, o banqueiro Daniel Dantas, continua como protagonista mas, desta vez, a mídia não sairá incólume.


E o que interessa a este Observatório é justamente o papel desempenhado pela mídia numa sucessão de escândalos que já se estende por uma década. Cada interceptação telefônica, vulgarmente chamada de grampo, produz um vazamento para a imprensa, sempre ilegal, porque os inquéritos deveriam correr em sigilo.


Se os vazamentos são ilegais, por que a mídia os divulga sem qualquer apuração preliminar? Porque são vazados justamente para não ser apurados, apenas para fazer barulho, aumentar a onda e converter suspeitas em certezas.


Se a mídia é independente – e é imperioso que o seja numa sociedade democrática – não deveria se transformar em instrumento nas mãos dos interesses em conflito. Enquanto não se decide se Daniel Dantas é inocente ou culpado, o que interessa é recolocar a imprensa na função de buscadora da verdade. Sem este requisito mínimo, Satiagraha, a firmeza da verdade, será uma farsa.


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A mídia na semana


** Com as bênçãos da igreja e do governo, a imprensa escondeu a assinatura de um importante tratado com o Vaticano que segundo alguns fere a separação entre a igreja e o Estado. O noticiário foi mínimo e deixou o cidadão muito curioso. Ora, se o papa agradeceu ao presidente Lula, por que razão não conhecemos o teor do acordo que mereceu o agradecimento?


** Conformado com o anúncio da sua morte, o jornalismo impresso contenta-se em ser lembrado através de uma onda de livros marcados por um saudável saudosismo. Dois deles sobre a falecida revista Manchete, rival de O Cruzeiro. Mas no lugar da nostalgia, melhor seria discutir por que desapareceram sem deixar vestígios.


** A rede varejista Casas Bahia é o maior anunciante do Brasil. Isso talvez explique o pouco destaque dado ao assassinato de um cliente por um segurança numa de suas lojas em São Paulo. As Casas Bahia nada têm a ver com o crime, mas não deveria usar o seu poder para esconder o noticiário.

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Jornalista